CORAÇÃO DE PAPEL
 
     Eles liberaram o corpo de Manuela por volta das 17h20. Não pude parar de chorar ao vê-la dentro daquele caixão úmido e gelado, toquei sua pele, beijei-a, mas tudo que pude sentir era dor e saúde — Maldita morte, porque não me levou também. Passei os dias seguintes numa praia, olhando as ondas e horizonte, tentando enxergar sentido nas coisas, afogar-me talvez não seria uma solução, seria muito doloroso sufocar até a morte, isso se alguém não me salvasse antes. Podia dar um tiro na minha cabeça, mas do que adiantaria, a bala poderia ricochetear se não tivesse sorte, na melhor das hipóteses ficaria deitado numa cama sem poder me mover e na pior, entraria em estado vegetal e ai meus familiares teriam de arcar com o sofrimento.
      — Ó vida, porque fez isso comigo, porque logo minha filha.
      Mesmo que a questionasse não teria resposta, afinal estamos fadados a isso, todos que vivem encontraram a morte um dia, inclusive eu. Maria viu meu desabafo nas redes sociais, minha dor, era médium a pouco mais de vinte anos e se identificou com minha história — Mulher tenta se suicidar após filha de sete anos morrer atropelada por motorista alcoolizado.
     Maria veio do Acre, trouxe consigo um medalhão cor de vinho e duas velas vermelhas que disse ser consagrada por um monge espanhol de cem anos. Ela não tinha cara de farsante, mas só deus conhece as pessoas deste mundo e Maria desencadeou algo que nunca sequer poderia imaginar existir. Durante a sessão Maria pediu que desligasse todas as luzes de casa e desenhou em cada porta de cada cômodo uma estrela de Davi e forrou de sal as brechas das portas. Fico até constrangida de contar isso, afinal, Maria nem sabia o que estava fazendo.
      — Começamos agora...
      Maria pediu que forrasse a mesa da sala com um pano escuro e ascendeu as velas.
      — Espíritos de Shum-b´balar, manifestem-se a mim eu ordeno. Em nome de Ball, peço que ouça o pedido desta mulher, chamo os espíritos antigos para que se revelem a nos... Não fiquei com medo se algo acontecer, eles nos deixaram vê-la se tudo der certo.
      Não tinha visto ela colocar um dispositivo em baixo das cadeiras, então fiquei convencida quando os moveis começaram a tremer. Então uma voz surgiu do escuro, num tom seco e engasgado, ecoante e austero. Maria abriu os olhos e começou a suar, vi sua expressão de espanto inflamar seu rosto em tom vermelho-escuro.
      — Diga... quem nos invoca...
      — Por favor, deixe-me ver minha filha, é só o que peço.
      Não ouvimos mais a voz e Maria atônita colheu suas coisas ligeiramente e fugiu de minha casa o mais rápido que pode. Enquanto arrumava a casa, um dos espelhos na sala caiu da parede, e enquanto recolhia os cacos, ouvi a voz de Manuela, alto e claro.
      — Não mãe, o que você fez, o que você fez.
      Vi o rosto de minha filha estampado nos cacos, e a suas costas sombras estranhas que a rondavam. Não sei dizer o que, nem como, mas antes de poder olhar para trás, algo me golpeou na cabeça. Acordei num lugar escuro e deserto, havia uma janela próxima de mim, pelo vidro podia enxergar minha casa. Meu corpo estava estirado no chão. — O que? Eu morri. Não pode ser.
       — Não morreu... a pena daqueles que se aventuram além dos limites da vida é o purgatório. Não saíra daqui nunca mais...
       As sombras estavam do lado de fora, ao lado do meu corpo, sorrindo, gargalhando alto. Então, quando menos esperava, meu corpo abriu os olhos...
 
Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 26/01/2018
Código do texto: T6237201
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