Caça e Caçador (2ª versão)

Era apenas mais uma noite de inverno fria e com muita chuva, mas não daquelas chuvas torrenciais causadoras de enchentes e outros desastres. Não, era apenas uma daquelas chuvas que servem apenas para atrapalhar o transito nas ruas e molhar os pés dos transeuntes nas calçadas.

Independente da chuva que caia e alheio a todo aquele transtorno urbano das pessoas que acotovelam como formigas disputando os ínfimos espaços embaixo das marquises e ameaçando os olhos uns dos outros com os guarda-chuvas, um homem caminhava impassível pela rua. Suas vestes negras, recobertas por um pesado casaco de couro, contrastavam com sua pele alva, emoldurada por longas madeixas castanhas. Seu olhar era frio, seus passos decididos e sua presença invisível para as demais pessoas.

Anos atrás, em Paris, alguns reconheceriam aquele sujeito como Jean Baptiste Quebaud; um homem simples, casado, professor em uma escola secundária, com contas, hipoteca, carro e etc. Um homem normal, com todos os demais itens de uma vida normal, normalmente vivida por uma pessoa normal. O anormal foi que um belo dia, ou melhor, uma bela noite, sua vida foi virada de cabeça para baixo, pelo ataque de um vampiro. Os detalhes haviam se perdido nos cantos mais obscuros de sua mente, porém a pior das conseqüência ainda lhe era bem viva na memória: a morte de sua amada mulher.

Jurando vingança, Jean Baptiste se dedicou de corpo e alma a um árduo treinamento físico e a muita pesquisa em antigos tomos por informações concretas sobre tais criaturas. Anos se passaram e toda aquela sua vida normal fora ralo abaixo. Agora ele era um autentico caçador de vampiros, que vagava pelo mundo cumprindo sua missão: erradicar tais criaturas a qualquer preço, sem demonstrar dó nem piedade de que ousasse obstruí-lo, fosse um vampiro ou fosse outro humano.

Voltando para a chuva, esta começava a dar uma trégua quando o caçador chegou ao seu destino: um belo prédio, localizado em uma área da classe média alta da cidade, onde morava Jules Rostand. Fora uma longa caçada. Foram precisos muitos socos, murros e até um ou outro nariz quebrado para que Jean descobrisse o paradeiro daquele, que falavam ser um dos lacaios vampíricos de Louis Verne, o vampiro que assassinara sua esposa.

Sua sede por vingança estava próxima de ser saciada. Bastaram algumas horas analisando o prédio para que Jean traçasse o fluxo de pessoas, funcionários além das rotinas de segurança, câmeras e demais itens necessários para a elaboração do plano que o levaria ao covil da criatura, na cobertura do prédio. Feito isso, o que se seguiu foi uma mera questão de aguardar até o cair da noite para que fosse possível colocar esse plano em prática.

Os relógios marcavam meia-noite. Se esgueirando com uma habilidade felina, Jean adentrou o edifício sem grandes dificuldades, se utilizando das frestas e cantos mais escuros e escondidos. Com movimentos planejados, logo o caçador se viu na cobertura, onde um segurança humano guardava a entrada do covil do vampiro.

Se aproximando furtivamente, ele deslizou suas mãos pelas costas do sujeito, que só sentiu o forte apertar em seu pescoço. Eles se olharam por instantes, olho no olho, momentos antes que o vigia perecesse ante o caçador.

O caçador, tomando posse do cartão de acesso que o segurança trazia junto ao peito, deu uma última olhada ao redor e passou o cartão no leitor ao lado. A porta rangeu ao ser aberta, e sorrateiramente o caçador adentrou ao apartamento. Um homem acabara de ser morto por suas próprias mãos, porém sua mente estava em paz, pois sabia que sua missão sagrada lhe garantiria perdão por aquele pecado ante Deus.

Apesar de ser localizado em uma grande cidade do século XXI, a decoração dava a clara impressão de ser do século XIX. Grandes pinturas, bustos neoclássicos e outros ornamentos se enchiam pela sala que se abria a sua frente, onde no final havia uma espécie de lareira com uma poltrona, onde alguém fitava o fogo.

O caçador sorrateiramente se aproximou. Em sua mão esquerda uma estaca repleta de signos arcanos, se posicionava para o ataque. Sempre silencioso, seus pés pouco tocavam o chão, e seus braços tencionavam com precisão, quando ele agarrou o pescoço do velho por trás da poltrona.

“Maldito sugador de sangue! Sua hora chegou!”, ele disse ao seu ouvido.

O velho ostentava um olhar calmo. Sua respiração era serena e seus músculos não mostrava qualquer sinal de surpresa. Muito estranho afinal nenhum vampiro haveria de se deixar capturar tão facilmente. Seria aquele um engano ou uma armadilha?

“Finalmente você chegou”, disse o velho com suas presas à mostra. “Se você pensava em me surpreender, esqueça! Meus olhos estão em toda parte. Sabia de sua presença ainda quando cruzava o quarteirão”. Seus olhos brilharam e com uma velocidade impressionante ele se livrou das mãos que o prendiam e se levantou, jogando seu agressor ao chão.

O caçador no chão olhava aturdido o vampiro que o fitava em pé a sua frente. Com a queda, a estaca caíra de sua mão. Ensaiando uma reação ele pulou para onde esta ela estava, porém o vampiro, que antecipara seu movimento, pulou ao seu encontro, o imobilizando no chão.

Homem e monstro disputavam sua força. Jean era forte, treinado e se encontrava em pleno auge de sua forma física. Joules era velho, porém o sangue vampírico que corria em suas veias, lhe permitia disputar de igual para igual.

De súbito, Jean se livrou de Joules que rolou para o lado, permitindo ao caçador sacar de seu casaco um amuleto repleto com estranhas runas entalhadas. O vampiro que apesar da surpresa não perdeu tempo ao ver amuleto pulou para cima do caçador, fincando suas presas em seu pescoço e permitindo a este colar o amuleto em seu coração.

As velhas histórias de pessoas que se tornam vampiros quando são mordidas por outros são falsas. Em anos, Jean nunca conhecera alguém que houvesse sido transformado em sugador, porém ele bem sabia que através do sangue os vampiros encontravam o caminho mais fácil fechar um elo mental com humanos, que lhes permitia influenciar seus pensamentos e emoções.

Homem e vampiro estavam unidos em um grotesco e bizarro abraço de dor e sofrimento, onde um sofria em sua mente outro em sua alma. Os signos sagrados provocavam uma dor terrível ao demônio. Ambos gritavam e tinham espasmos, porém permaneciam em um cabo de força aparentemente insolúvel.

Muitas perguntas passavam pela mente de Jean. Seriam os vampiros, os verdadeiros anjos enviados pelo céu para vigiar a humanidade? Ou seriam eles seres puros que se alimentam da essência mais pura dos seres? Seriam eles os vingadores da natureza? Seria a vingança um motivo sublime o bastante para se justificar tal guerra santa? Seria a humanidade pueril o bastante para deixá-lo sozinho em sua valorosa empreitada? Tantos humanos que morreram por estar entre ele e os vampiros: sua missão realmente valia o sacrifício de tantas vidas?

Sua mente estava em torpor, porém a força da vida ainda corria por seus braços. Já os danos causados no vampiro pelos signos eram severos o bastante que este afrouxasse o elo mental por alguns instantes, tempo o suficiente para que Jean se livrasse do abraço, se esticasse até a estaca e cravasse no peito de sua caça. Litros e litros de sangue escorreram e Jean se viu completamente livre daquele elo mental.

Não fora difícil sair despercebido do prédio. Suas roupas traziam marcas de sangue ainda fresco. Dentro do casaco, alguns itens surrupiados do apartamento que lhe permitiria passar algumas noites em um bom hotel e claro, uma agenda de endereços que trazia pistas de onde encontrar sua próxima caça, Louis.

A chuva dera uma trégua e ele caminhava rapidamente pelas ruas tentando não chamar muita atenção para si. Durante o percurso sua mente pensava o quão eficiente havia sido o ataque daquele vampiro, pois não o debilitara fisicamente e sim psicologicamente, fermentando a seguinte dúvida: afinal, matara ele um monstro ou apenas garantira a sobrevivência de outro ainda pior?

Tales de Azevedo