“A grande mortandade teve início em Avinhão em janeiro de 1348. A epidemia se apresentou de duas maneiras. Nos primeiros dois meses manifestava-se com febre e expectoração sanguinolenta e os doentes morriam em três dias; decorrido esse tempo manifestou-se com febre contínua e inchação nas axilas e nas virilhas e os doentes morriam em 5 dias. Era tão contagiosa que se propagava rapidamente de uma pessoa a outra; o pai não ia ver seu filho nem o filho a seu pai; a caridade desaparecera por completo". E continua: Não se sabia qual a causa desta grande mortandade. Em alguns lugares pensava-se que os judeus haviam envenenado o mundo e por isso os mataram”
 
A BRUXA
 
     01 de janeiro de 1348
 
     Cheguei por volta do meio dia. Já haviam começado a queimar os mortos. Pedi a Aclimei para não fazer, pois poderia provocar ainda mais histeria entre os habitantes do povoado. Havia sangue e corpos por todos lados. Montamos duas barracas pequenas no centro da cidade. Antes de trabalhar com as pessoas, fizeram-me vestir um traje preto, com uma máscara estranha. Restos de animais, estrume e lama enfeitavam a paisagem. Uma fumaça negra cobria o horizonte. Podia sentir o cheiro de carne queimada de longe.
     — Não fique parado ai. Ajude-me. — Gritou um dos médicos.
     Não passava do meio dia quando trouxeram a mesa principal um homem de vinte cinco anos. Ele cheirava a morte. Sua pele parecia um ninho de vermes, cheio de buracos. A parte superior de seu tórax estava cheia de feridas e gangrenava um liquido amarelado. O rapaz segurava em meu braço, queria que o salvasse, mas...
     — Eu não quero morrer... — Guinchava, enquanto vomitava sangue.
     Um dos médicos se aproximou da maca. Dois homens seguraram o rapaz, e ele o aplicou um liquido na nuca. Uma substancia que Isaac nomeara mais tarde de cura prateada, feita a partir de selênio.
Todos se afastaram da maca em seguida. O rapaz parara de se mover após terem lhe aplicado aquela solução. Richard verificou o pulso.
     — Ele ainda está vivo. — Gritou.
     Então, o rapaz saltou da mesa, num movimento brusco e abocanhou o ombro de Richard tirando-lhe um naco de carne. Isaac sacou a pistola que tinha na cintura e disferiu um tiro na face do rapaz. Fiquei indignado com aquilo. Não haviam me contratado para aquele tipo de barbaridade.
     — Outra falha.
     Richard começou a se contorcer no chão. Estrebuchando. Um esguicho de sangue voava de sua ferida aberta no ombro.
Isaac percebeu uma serie de bolhas se formando ao redor da mordida.
     — Desculpe... — Disse Isaac.
     Embora não soubesse ao certo o que estava acontecendo, Isaac parecia ter pleno controle da situação. Ele não se intimidara com nada. Muito diferente do homem que havia conhecido. Ele se aproximou de Richard e tirou sua máscara.
     Richard começara a expectorar sangue pelas narinas e pelos olhos.
     — Me desculpe...
     Isaac sacou uma faca da cintura e disferiu um golpe em sua testa.
     — Levem-nos para a fogueira. — Gritou.
     Não conseguia exprimir palavra alguma a cerca daquela situação. Só observava de longe, imbuído de medo.
     — Podem trazer o próximo...
     Isaac passou o dia inteiro testando aquela solução estranha nos doentes em fase terminal.
 
     02 de janeiro de 1348
 
     — Não podemos continuar com isso. Não está vendo. Não há cura.
     — Meu jovem... para tudo há uma cura.
     Quando o sol nascera naquela manhã cinzenta e nublada. Já não conseguia mais contar os cadaveres que haviam passado por aquela mesa. Fiquei abominado. Chocado com a sanguinolenta campanha de Isaac, atrás de uma cura.
     Isaac só me respondia uma coisa, quando o questionava.
     — Para chegar a um objetivo deve-se fazer sacrifícios. Sacrifícios sempre são necessários.
     Umas cem pessoas já haviam passado por aquela mesa, e morrido ali mesmo. Em seguida seus corpos eram levados para a cova. Um buraco feito pelas autoridades locais para que sessem queimados, pois acreditava-se que se queimassem os mortos, a doença não se espalharia, mas isso não ocorreu...
     Isaac aprofundava-se em sua bestial loucura imersiva que o devorava a cada falha. Ele já começara a ser chamado pelos locais, pela alcunha de o médico da morte. O povo se recusava a encontra-lo, tinham medo. Mas o governo o obedecia com veemência. Acreditavam que em seus erros ele poderia encontrar uma cura. Os soldados traziam do povoado local, arrancando os doentes em fase terminal de dentro de suas casas, do seio de suas famílias. As pessoas que se negavam a obedecer eram mortas. — Tudo para um bem maior. — Diziam os soldados.
     Naquele dia, acabaram de tirar de uma família, duas crianças com menos de dez anos de idade. Os trouxeram aos gritos até a cabana, e amarraram-nos nas macas. Um dos garotos vomitava sangue, enquanto o outro delirava, dizia ver coisas que não existiam, mas provavelmente era por conta de seu estado.
     Isaac aplicou uma substância a base de magnésio dentro do globo ocular do garoto, que em seguida desmaiou. Antes de poder tratar o outro, Harry, o gêmeo, já estava morto, havia morrido a alguns minutos de uma taquicardíaca fatal.
     Oliver, o outro garoto ao contrario acordou. Seu olho direito começou a esbugalhar, como se fosse sair para fora. Ele gritava. Isaac pediu que colocassem um pano em sua boca. O menino se debatia na maca como um animal.
     — Meu filho. Não tema. Deus sabe que está sofrendo. Deus vai poupa-lo desta dor. — Disse Isaac, passando a mão sobre a testa do garoto.
     — Mais uma falha pensei.
     Queria parar Isaac, mas se o fizesse acabaria morto.
Isaac preparara a substância em uma sala secundária. Espreitei por uma pequena abertura na tenda. Isaac tinha uma cicatriz no rosto. Um corte transversal que vinha do lóbulo direito até a ponta da boca, próximo do queixo, na lateral direita. Quando colocou a máscara sobre uma escrivaninha, ele parecia fraco. Vi ele tremendo, então começou a chorar, dizendo... — Vou cumprir nossa promessa, Ana Mélia.
     Percebi que seus braços estavam preenchidos por diversas manchas vermelhas, inclusive seu rosto.
     Havia um pequeno espelho dentro da tenta. Isaac entreolhou-se.      Um de seus olhos estava com a íris branca. Ele passou a mão sobre a face, enquanto lacrimejava.
     — Droga, doença desgraçada.
Isaac colocou a máscara novamente. Com a máscara tomava uma outra personalidade, mais cruel e desprezível.
     — O que está fazendo aqui?
     — Aclimei me pediu para lhe entregar este documento.
Isaac me observou por alguns instantes, imóvel e tomou o papel amassado de minha mão com violência.
     — Malditos... eu sabia.
     Naquele dia Isaac partiu de Avinhão às pressas, deixando-nos com uma pandemia incontrolável em mãos e uma população desesperada.
 
     18 de janeiro de 1348
 
     — Precisamos conter a população Aclimei. Eles não podem fugir. Peça que faça um campo de concentração e os deixe em quarentena.
     — Uma carta chegou essa tarde. Isaac está retornando.
     — Ele trará ainda mais morte. Aquilo que faz não é certo.
     — Mas quem vai lhe parar?
     — Ele é a morte. Não vê como os chamam no povoado. Não ouve os rumores.
     — Rumores. Não precisamos de rumores. Vemos suas barbaridades aqui, de perto.
     — Quantos mais morreram por causa dele.
     — Quantos forem precisos para sua obstinação doentia.
     — Deixe que venha. Esta noite. Ele não continuará com a morte.
     Quando se aproximou das onze horas da noite. Isaac chegou pela estrada principal a cavalo. Trazia consigo uma mochila carregada de equipamentos e substancias.
     — Anthony, peça que tragam mais alguns pestilentos. Uma meia dúzia.
     Não queria obedece-lo, mas se não o fizesse poderia acarretar minha morte. Pedi para um grupo de oficiais trazerem os doentes, mas a população estava cada vez mais arredia. Um homem matou um dos oficiais no comando, enfiando uma lança no seu pescoço. Daí em diante o pânico tomou o povoado. Duas dúzias de manifestantes e três de nossos homens foram mortos. Só depois deste massacre as pessoas pararam de reagir, mais até ai, não sabíamos, mas alguns de nossos soldados haviam contraído a doença. A peste negra se espalhara nocivamente.
     — Já trouxeram. Já trouxeram eles.
     — Estão nas macas.
     Levei Isaac até a cabana principal, ele não parava de tremer, por um momento senti um cheiro de podridão vindo de dentro daquele traje, como se estivesse apodrecendo.
     — Tragam-me o primeiro.
     O primeiro que trouxeram era uma mulher, gravida. Não parava de gritar. — Vocês mataram meu filho. Meu filho está morto dentro de mim. Ele está morto.
     — Acalme-se senhora. Acalme-se. Seu filho está vivo.
     — Não, ele está morto. Eu não sinto mais nada dentro de mim.
     — Acalme-se, você vai vê-lo. Logo...
     Um dos soldados tossiu, uma tosse rouca e pigarrenta. Então um filete de sangue escorreu de sua máscara, pingando no seu braço.
Isaac o observara, enquanto levavam a mulher para a maca.
     — Você foi exposto.
     — Não senhor. Eu não foi. Estou bem. — Gritava o soldado.
     Isaac aproximou-se abrupto e arrancou sua máscara com força. O soldado tentou impedi-lo, mas Isaac o tirou de forma ligeira, sem dar oportunidade de reagir. Então todos viram, seu rosto estava cheio de manchas vermelhas, e pequenas bolhas que se formavam ao redor da bochecha, além disso, seu nariz sangrava, o sangue tinha uma textura diferente, menos vivida e mais amarelada, como se fosse pus.
     — Esse homem está infectado, tirem-no daqui.
     — Não meu senhor eu estou bem.
     — Anthony, peça aos oficiais para se reunirem mais tarde.
     — Não. Senhor eu estou bem. Isso é apenas uma gripe.
     Enquanto levavam o soldado para a ala de quarentena, Keller, roubou uma pequena adaga do bolso de um dos oficiais.
     — Se me colocarem lá, eles vão me matar. Eles vão me matar.
     Enquanto Keller tentava se proteger, empunhando a adaga na direção dos outros soldados, Isaac o surpreendeu pela retaguarda, cortando sua garganta. Um jato de uma gosma amarelada voou sobre o traje dos outros soldados. Enquanto Keller sufocava com o próprio sangue.
     Enquanto limpava a lamina da adaga. Isaac gritou.
     — Levem isso daqui. Já está fedendo.
     A mulher gravida já se encontrava fraca e quase sem energia.      Isaac havia lhe administrado uma substancia a base de silício fazia cerca de duas horas e quando retornou a ela, pegou uma pequena navalha em seu estojo de ferramentas medicas, aproximou-se dela, subiu sua blusa amarrotada de lã e começou a abrir sua barriga, fazendo um corte do umbigo até próximo do tórax. A mulher nem quase sentia ele a abrindo, a peste já havia destruído seus nervosos internos. Isaac, abriu-a coo um porco, e durante o processo, a mulher permaneceu acordada, dizendo coisas estranhas como;
     — Eles não queriam que eu fosse com você papai. Eles não queriam.
     — Não deixe Sofia descobri que fiquei velha. Ela vai me bater.
     — Hoje é o dia mais maravilhoso da minha vida.
     A mulher estava delirando.
     — Pobre coitada. — Disse Isaac.
     Isaac fez-me observar, junto a um grupo de vinte soldados sua      horrenda cirurgia.
     Quando conseguira abrir a barriga dela, a mulher desmaiou, então ele colocou as mãos dentro de sua barriga, até seu ventre e arrancou a criança, estourando o cordão umbilical. Elisabeth como se chamava nunca mais acordou. Mas a criança... a criança nasceu saudável. O vírus havia retrocedido.
     Todos gritamos de felicidade, pois após muita brutalidade, uma esperança surgira.
     Isaac morrera dias depois pela mesma praga que havia ajudado a curar. Morrera em seu quarto na França.
 
     30 de julho de 1349
 
     Havia conseguido o caderno de Isaac fazia duas semanas. Roubei de seus subalternos de confiança, Alexei Ryand e Muscolare. Fui perseguido por quase uma semana. Agora tento me esconder em Londres. Não sei falar muito bem Inglês, mas já venho me acostumando desde então.
     Aclimei havia morrido a dois dias. O enterrei em Moscou. Próximo do tumulo de sua esposa, como queria.
O caderno de Isaac era de certa forma um enigma, não consegui traduzi-lo e por mais que tentasse, o idioma empregado era desconhecido, porém, algo sempre se repetira em minha língua, uma palavra borrada, escrita às pressas — Bruxa.
     Naquele mesmo dia, uma mulher de sotaque Russo surgiu a minha porta. Trajava um vestido escuro e um chapéu negro. — Dei-me ele... — Surrou.
     — Quem é você? — Perguntei.
     A mulher estranha, pôs-se a me entreolhar, e permaneceu parada a frente da porta por um bom tempo. Seus olhos penetravam em minha mente, como uma cortina de sede e pó, hipnotizando-me. Ela estendeu o braço... então, tirei o caderno de Isaac do bolso e a entreguei. Ela foi embora logo em seguida, desaparecendo.
Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 06/02/2018
Código do texto: T6246869
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