O esquecido

Desço do táxi.

— Espere-me, não vai levar mais do que cinco minutos.

Enfio a mão no bolso e retiro uma lembrancinha que não me custou mais do que dois reais.

Viro e olho para a casa.

Vejo um terreno baldio.

Um terreno de cento e vinte metros quadrados vazio.

Olho ao redor.

Ah, nada mudou nos últimos 40 anos.

Não.

Eu não errei o endereço.

Estou de frente para o número 538 da Rua Santo Antônio.

Bato na porta da casa ao lado.

Sai um velho de 80 anos ou mais. Tão magro e seco que me dá pena.

— O que aconteceu com a casa que estava no terreno baldio ao lado?

Ele me olha. Franze a testa branca cheia de feridas. Abre a boca sem dentes e raspa o catarro da garganta e dá uma cuspida e o cuspe cai ao lado do meu mocassim do pé direito.

— Você sabe muito bem que nunca houve uma casa neste terreno baldio.

Pego o velho pela gola da regata branca.

— Deve estar esclerosado, velho louco!

Empurro o velho para o lado e entro na sala.

— Há alguém aqui que esteja são da cabeça?

Ele não responde.

Olho para o penico transbordando de urina amarela ao de um sofá todo rasgado. Há cheiro de fezes no ar. Tampo o nariz e vasculho a casa, mas só encontro degradação e desmazelo e abandono.

Na cozinha, vejo uma pia apinhada de louça suja e na mesa jaz um prato com restos de comida e duas ou três varejeiras estão zanzando por cima e botando seus ovos ali.

Volto para a sala e vejo o velho deitado no sofá e seus olhos estão pregados na TV que passa o programa do Faustão e está acontecendo um concurso de dança com gente famosa.

Vejo um porta-retrato na estante da TV e na foto vejo a minha mãe e meu pai e no meio deles há um garotinho que creio ser eu.

— Acho que me enganei de endereço.

Espero o velho dizer algo, mas ele nada diz.

Caminho para a porta e antes de sair, viro-me e olho mais uma vez para o velho deitado no sofá. Ele está deitado em posição fetal com os braços agarrados ao peito como se estivesse com frio.

Saio e fecho a porta atrás de mim e tenho o cuidado de não pisar em cima do catarro que o velho cuspiu e que quase sujou o meu mocassim Lacoste.

Entro no táxi e fecho a porta.

— Pra onde, chefe?

— Para qualquer lugar bem longe daqui. Pago o dobro se você for a mais de cem.

O motorista acelera.

Ponho a mão no bolso e acho a lembrancinha. Abro a janela e taco-a para a rua e fico imaginando se alguém irá se dá ao trabalho de agachar e apanhá-la, guardá-la no bolso e levá-la para uma pessoa especial.

Não sei se alguém irá fazer isso, mas sei que tenho inveja de quem fizer.

Batuta Ribeiro
Enviado por Batuta Ribeiro em 17/02/2018
Reeditado em 17/02/2018
Código do texto: T6256529
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