TRILHOS DA MORTE - CLTS 02

A ansiedade fazia com que o misterioso senhor conferisse de tempos em tempos o velho relógio de bolso. Sentia-se oprimido estando ali naquela estação quase às escuras. Além dele, o bilheteiro cochilava trancado na cabine enquanto alguns funcionários da ferrovia conversavam displicentes sentados sobre algumas caixas a serem embarcadas.

A impaciência era visível, gostaria de ter seguido a cavalo, mas estava com pressa e a viagem se estenderia por mais dois dias. Ele havia jurado que nunca subiria naquela monstruosidade, também não tencionava retornar ao antigo lar, mas assuntos familiares demandavam sua atenção.

Já passava das 23:45, horário anotado no bilhete em suas mãos e nem sinal da composição. O trem era misto, levava cargas e passageiros, nos dois primeiros vagões, aventuravam-se viajantes corajosos nesta nova modalidade de transporte, nos outros acondicionavam-se as encomendas das mercearias distantes.

A brisa morna trazia o cheiro de terra, enquanto ele remoia os fatos que o levaram a fazer aquela viagem, se não fosse tão tarde daria meia volta fingindo que nada daquilo lhe interessava, porém sons de passos apresados interromperam suas lamentações. Uma tênue luz brilhou entre os trilhos, apertou os olhos por traz dos óculos de armação dourada, conseguindo ver o homem que caminhava a passos largos tendo na boca o cigarro de palha. Ao subir na plataforma, saudou-o desejando-lhe boa noite meneando de leve a cabeça ameaçando tirar o chapéu. Ele retribuiu de igual maneira.

Apesar da pouca luz oriunda dos lampiões a gás, dava para notar a cara de poucos amigos do recém chegado, o chapéu de feltro com abas caídas escondia sua vasta cabeleira que se misturando à barba conferia-lhe o semblante canino. O corpo estava coberto por uma sobrecapa surrada que mantinha fora das vistas o facão e a pistola atrelados à cintura. O fim da escravidão acabou com a lida dos capitães do mato e estes descobriram novas ocupações, agora eram jagunços defendendo as terras de seus coronéis.

O bilheteiro foi alertado pelo sonoro apito do trem bem a tempo de emitir a última passagem da noite, agora dois embarcariam naquela estação.

Era uma locomotiva a pouco adquirida junto aos ingleses, movia-se rasgando o vale fazendo com que a vegetação beira-linha chacoalhasse com seu hálito quente, da chaminé, a grossa coluna de fumo escapava em direção às inúmeras estrelas do céu de verão.

Ele checou novamente as horas, apanhou a mala dirigindo-se ao comissário que validava o bilhete do homem que por bem pouco não perdeu a viagem. Passou com cuidado sobre a pequena prancha de madeira que unia o vagão ao piso da plataforma. No trem, buscou privacidade, não foi difícil, pois àquela hora os bancos estavam quase todos vazios. Além deles, somente três pessoas estavam ali.

Tirou o chapéu e cumprimentou retoricamente os presentes. Um jovem rapaz no fundo do vagão aconchegava a esposa que nitidamente fingia dormir. Não se deteve, sentou no primeiro banco próximo da janela, o ar das montanhas lhe faria bem. À esquerda, quase no meio do vagão, um negro forte com roupas simples conservava os olhos baixos. Não era prudente encarar pessoas desconhecidos.

O outro passageiro ainda estava de pé quando ele tomou assento. Do lado de fora, os carregadores terminavam o trabalho embarcando e fechando as portas por dentro. Ele ainda viu quando o funcionário da estação apagou os lampiões.

Agora o apito avisava o momento da partida. O forte solavanco fez estremecer até a alma da mulher que fingia dormir. O trem se arrastou lentamente tentando ganhar força e velocidade. O foguista atiçava a fornalha da caldeira, o maquinista habilmente combinava os movimentos das alavancas tentando vencer a inércia para seguir viagem.

Aquela foi a última parada, menos de oito horas lhe separava do passado, estaria em casa, um lugar abominável que jamais fora seu lar. No bolso do paletó, o telegrama que anunciava a morte do pai bem como a necessidade de sua presença no ato da leitura do testamento e partilha dos bens, quem assinava a missiva era o cunhado, homem que ainda não conhecia. Era costume os casamentos arranjados e por não querer ver a irmã tendo a mesma sorte da mãe se absteve de comparecer a cerimônia.

Apoiando a mão suavemente sobre o papel, duvidas lhe perturbavam o juízo. O pai era um sujeito rude, grosseiro. Espancava os filhos sem piedade. A esposa, coitada, morreu de febre. Ninguém comentava, mas todos sabiam que grávida da terceira cria, não aquentou tanta maldade. Ficou com a criança morta no ventre por dias até que finalmente sucumbiu, deixou de viver, descansou como diziam os simplórios do povoado. E agora aquele velho orgulhoso, numa crise de bebedeira se deitou nos trilhos do trem, provavelmente o mesmo em que estava viajando. Era inconcebível, nem mesmo o remorso o faria cometer tal ato, não abriria mão da vida se não pudesse levar consigo o que até então havia acumulado. Algo muito grave devia ter acontecido.

No fim aquela morte lhe trazia tranqüilidade, estava aliviado. Por ele jamais voltaria onde só lembranças tristes existiam. Não precisava do dinheiro, deixaria para irmã que por muitas vezes escapou do castigo graças a ele que tomava seu lugar. Sentia-se culpado por não tê-la levado consigo quando abandonou aquele inferno. No começo não sabia das dificuldades pelas quais passaria na capital, mais tarde com trabalho e estudos adiantados poderia buscá-la, mesmo depois de amealhar a própria fortuna não teve coragem, temia o mal que lhe causou com sua ausência. Era o momento de certificar-se do bem estar da única pessoa que amava, a antiga companheira de infortúnio.

A locomotiva investia contra o pé da serra, serpenteava ao lado da margem do rio com movimentos cadenciados, pela janela observava as sombras dos arbustos que pareciam ganhar vida sob a luz da lua, mesmo não desejando, o sono se aproximava, o barulho da caldeira era tudo que o mantinha de olhos abertos enquanto o tempo passava ligeiro.

Alheios a sua atenção, os outros passageiros trocavam olhares. Às vezes a mulher inconformada cochichava algo ao esposo, este, atencioso lhe respondia pedindo calma, breve chegariam. O homem de sobrecapa estava prestes a sacar sua arma quando observou de canto de olho o escravo recém liberto. Instintivamente o negro pousou a mão no cabo da faca que mantinha oculta. O casal parecia prever os próximos acontecimentos. Havia se criado um impasse naquele momento, o clima tenso era prelúdio de tragédia.

Entravam no último quarto da viagem, já estavam bem próximos da estação final, bastava atravessar o Coração da Montanha para avistarem os primeiros raios de sol, logo após encontrariam as casas do povoado.

A ferrovia trouxe progresso para toda região, abriu novas fronteiras, a produção do café e demais cargas circulavam com rapidez e segurança, os lucros vinham mais cedo naquelas serras esquecidas por Deus, mas por muito pouco o projeto não se tornou inviável. Os trilhos não conseguiam acompanhar o relevo, contornando, dando voltas. O tempo gasto na viagem tornaria dispendioso o transporte. Por influência dos ingleses um túnel seria escavado.

Nunca se viu tanto movimento naquele rincão. Especialistas europeus, engenheiros brasileiros e toda sorte de migrantes se juntaram no pé daquela serra. Devido à grande extensão, os operários diziam que chegariam ao coração da montanha, com o passar do tempo o apelido ficou.

Obra gigantesca também teve seu alto preço. Durante as escavações inúmeras vidas foram perdidas, não se sabe quantas ao certo, pois aqueles homens não tinham quem lhes reclamassem os corpos, ali mesmo eram sepultados em meio aos entulhos.

Sabendo das histórias contadas na infância, do receio natural que possuía daquela monstruosidade mecânica e vendo os paredões da encosta guiar a locomotiva rumo às entranhas da terra, sentiu a espinha arrepiar-se num agouro tétrico, parecia que seu falecido pai lhe soprava uma onda de azar na nuca. Lembrou das primeiras mortes acontecidas quando ele ainda nem tinha idade para chegar aos limites de suas terras. Ao fechar os olhos, via o semblante retorcido em agonia dos homens que foram soterrados logo nos primeiros meses de labuta.

Escavaram menos de oitocentos metros terra adentro, sinais que algo poderia dar errado eram vistos no céu de nuvens agitadas, geralmente naquele mês fazia muito frio, não haviam tempestades, trovoadas ecoaram na mata. Dentro do túnel, o suor escorria pelo corpo enquanto a terra era violada, não se alarmaram, os homens continuaram cavando, nem conseguiam ouvir a chuva grossa cair provocando corre-corre no acampamento, tinham que proteger as plantas, os cálculos não poderiam se perder. Lá dentro, os trabalhos seguiam. A chuva se infiltrou pelo solo, das paredes bem escoradas filetes de água escorriam vermelhos como sangue da ferida recém aberta. O peso do teto fez ranger as estacas, não deu tempo para que todos fugissem. As luzes se apagaram. A terra cedeu obstruindo a entrada. Foram duas semanas até chegarem aos trabalhadores. Estavam juntos, alguns abraçados com os olhos esbugalhados querendo fugir das orbitas, nas faces a expressão do medo ao terem suas vidas arrancadas lenta e dolorosamente.

Não foram apenas estas mortes, outras ocorreram mesmo depois da inauguração.

Indo em busca de trabalho, uma família pobre quis diminuir a distância cruzando o túnel, não faziam idéia dos horários do trem. Foram surpreendidos a meio caminho da saída.

Ao sentir a vibração dos trilhos, viram o farol iluminar a escuridão, tentaram correr, mas o percurso era longo e as crianças pequenas. As duas meninas morreram agarradas ao pai, a mãe foi atirada contra a parede rolando por cima dos trilhos, morreu no fim da noite com as pernas amputadas sem condições de estancar a hemorragia. O garoto com doze anos não foi ferido. Retiraram-no do local ensopado de sangue e sem juízo. Vive de esmolas perambulando pela cidade.

Estas lúgubres recordações, sem motivo algum, afligiam-lhe o espírito. Estava prestes a entrar pela garganta da montanha, sentia-se desconfortável. Ter tanta terra sobre a cabeça imaginava apenas após a morte. E era de encontro a esta que seguia. A morte misteriosa do pai.

O maquinista acionou o apito. Repetiu por duas vezes antes de mergulhar na escuridão do túnel. Passou a ser praxe, avisando caso alguém desrespeitasse a proibição de entrar em local tão perigoso.

Não tinha mais estrelas, agora a lua não brilhava. A pouca iluminação do vagão era propicia ao ataque. A mulher puxou o marido pelo braço, este ficou alerta. Os dois homens sinistros ergueram-se quase que instantaneamente. O primeiro sacou a pistola, o outro empunhou a faca de cabo prateado. O viajante distraído sentia saudades da irmã. Queria novamente envolvê-la em seu abraço fraterno, verter as lágrimas de arrependimento pela ausência tão demorada, pedir perdão por tantas noites de desamparo.

Na penumbra os agressores esperavam um pela iniciativa do outro, o serviço seria rápido, o corpo sem vida arremessado para fora do trem meses depois talvez fosse encontrado, ninguém faria alarde, acreditariam ser mais um indigente bêbado a se perder nos trilhos da morte.

Sem aviso algum, o maquinista se pendurou na corda do apito, o som estridente ecoou entre as paredes claustrofóbicas do interminável corredor. Os freios foram bruscamente acionados. O pobre foguista quase foi junto com a pá de carvão alimentar a fornalha. Iluminado pelo facho de luz do farol da locomotiva, o maquinista jurou ter visto um homem idoso de pé entre os trilhos. Foi instinto tentar parar o comboio apesar de que não daria tempo. Arrastando ferro contra ferro, fagulhas cintilantes eram deixadas para traz, até que o choque seco da locomotiva encontrou não o homem, mas sim uma grande pedra que cederá do teto obstruindo a passagem. O trem descarrilou jogando os vagões contra as paredes do túnel, se não fosse a presteza do funcionário as perdas seriam maiores. Ele e seus companheiros de trabalho tiveram alguns ferimentos, o pobre foguista se queimou nas brasas da caldeira, um dos carregadores que dormia no vagão de carga teve os ossos da perna esquerda partidos.

Mortes, somente dos passageiros.

O viajante saiu quase ileso. Muito perto da parede, no primeiro choque se agarrou no que viu protegendo-se dos solavancos. O antigo escravo morreu tendo o peito perfurado pela própria arma, as fraturas no corpo quase não tiveram influência, seu parceiro foi arremessado através da janela. O corpo despedaçado quase foi impossível de recuperar. O esposo da jovem, atirado de um lado a outro nem sentiu ao ter o pescoço quebrado.

Depois do baque final, quando os feridos gritavam buscando socorro, sozinha no escuro, com o peito sangrando pela força do choque contra o banco da frente, a mulher recordava a infância, lembra das intrigas que fazia por ser a queridinha do pai, da alegria que tinha ao ver sua mãe chorando vítima das constantes agressões instigadas por ela até que sem forças se foi. E do patético irmão, era só fazer algo errado, correr para ele dizendo que ia apanhar que inocente assumia a culpa sendo castigado e odiado pelo pai, aquele velho idiota que depois de tudo buscou consolo na bebida, sentia tanto remorso que só falava em reencontrar o filho perdido, se jogar a seus pés pedindo clemência. Isso jamais aconteceria, foi fácil convencer o marido largar o velho bêbado na linha do trem esperando pela morte, pena que deveria dividir a herança. Último passo foi contratar os dois criminosos, assim estaria livre de qualquer empecilho.

Enquanto o dia ia clareando, as pessoas da cidade corriam em auxílio aos feridos, lentamente ela foi perdendo a vida, sufocando em sua própria maldade enquanto seu pai no além finalmente encontrava a paz.

Temas: Ferrovia, família e lembranças.