TÉPIIIIII!!!!!!– CTLS 02

“_ A gente olhava lá pro alto, lá pra cima do monte e se apavorava! Era muita bala zunindo pra cima de nós, pertinho de nossas cabeças. Todo mundo rastejando e tentando se esconder atrás dos troncos das árvores que os alemães cortaram na subida do monte. As lurdinhas não paravam! Era só tá-tá-tá-tá-tá ... Toda hora tinha um grito de alguém que levava tiro. Os sargentos e os oficiais tocavam a tropa adiante: “ _Avança, diabo! Avança! Não recua!” E eles mesmos seguiam iguais a uns desgraçados, avançando no rastejo, atirando e se abrigando ao mesmo tempo. Tiro de cima pra baixo e a gente subindo! E um frio danado! Era muita coragem. Ou muita loucura... Até hoje eu não sei.”

Durante a narrativa, sua respiração se tornava ofegante e o rosto sulcado pelas rugas tornava-se uma máscara de pedra.

Adorávamos ouvir as estórias de meu avô sobre a Segunda Guerra Mundial. O velho Manoel nos contava a mesma estória, sempre com a mesma vibração. A tomada do Monte Castelo. E eu, então nos meus cinco anos de idade, não entendia muita coisa, a não ser que ele estava com os amigos lutando na guerra, como eu via nos filmes. Meu irmão mais velho, já com 13 anos de idade, me explicava que Lurdinha não era uma mulher malvada que atirava no nosso avô, mas uma arma que foi apelidada assim. Vô Manoel era muito orgulhoso dessa passagem de sua vida.

Uma coisa de que ele muito se orgulhava era de ter sido elogiado pessoalmente pelo próprio General Cordeiro de Farias, que ao fim da batalha, segurou-lhe forte no ombro e disse:

“_ Lembre-se sempre disso, meu rapaz! Leve esse momento terrível, porém glorioso, no seu coração para o resto da sua vida. Você foi um guerreiro intrépido e valoroso. Agora é hora de voltar para casa. “

“Intrépido... Que diabo era isso? Essa gente estudada elogia a gente com um palavrório que mais parece xingamento...”. Para descobrir o significado, recorreu ao médico do grupamento:

_ Intrépido, cabo Manoel, é um homem muito valente, muito corajoso.

Sempre que podia, vôvô empregava esta palavra que impressionou seu ouvido de homem rude do campo. Assim, não foi nenhuma surpresa que ao ganharmos um filhote de cachorro, vô Manoel lhe tenha dado o nome de “Intrépido”.

A bolinha de pelo corria pela casa e mordia nossos calcanhares com aqueles dentinhos agudos de filhote, que espetavam como agulhinhas. Minha mãe se agoniava com o “tubarãzinho” mordendo-lhe os pés, enquanto lidava com as coisas da cozinha.

O nome dado ao cachorro era impronunciável para mim, mas ele atendia toda vez que eu o chamava. Ele entendia perfeitamente o meu chamado infantil.

Intrépido tornou-se o meu grande amigo para as brincadeiras no quintal e das correrias na rua. “Lutávamos” entre as mangueiras do quintal imitando os episódios de Ultraman, mas o "monstro canino" dava mostras de que passaria a ganhar todas as lutas futuras dado o aumento de tamanho e de peso que estava sofrendo. Corríamos muita durante nosso combate entre as árvores. De vez em quando, derrubávamos o fumo de rolo que vô Manoel havia cuidadosamente preparado para seus cigarros. Os severos olhos negros se estreitavam e a bronca que se seguia era como uma trovoada, tamanha a fúria do velho. Afinal, era a mesma falha se repetindo por várias vezes. Quando era o cachorro que derrubava o fumo, vovô pegava qualquer ripa de madeira, ou pedaço de galho, que estivesse perto e acertava no lombo do pobre. Mas Intrépido absorvia bem os golpes, pois como descobrimos depois ele era mestiço de vira-latas com pastor alemão. Isso explicava o porte físico avantajado do bicho.

Em nossas primeiras corridas pela rua, era comum que os vizinhos se apavorassem achando que o cão gigante estava correndo atrás de mim para me morder. Com o tempo entenderam que era uma brincadeira com o cão da família. As outras crianças da rua juntaram-se a nós na folia.

Entretanto, o gosto que o cão desenvolveu pela perseguição de galinhas gerou alguns embaraços. Ele entrava nos quintais vizinhos, e eventualmente, matava alguma ave. Além de termos de pagar as galinhas, tínhamos de enfrentar a fúria dos donos.

Numa dessas invasões, Intrépido entrou no quintal da velha Veridiana. A correria das crianças parou imediatamente. Observamos, petrificados, o avanço do cão em direção ao quintal “maldito”. Creio que todos esperávamos que ele desistisse no meio do caminho. Mas essa esperança desapareceu quando o cão pulou a cerca e desapareceu por trás dela.

A casa de Veridiana era um lugar proibido para todos nós. Nenhuma criança se arriscava ao menos a ficar em frente a ela. Até mesmo alguns adultos evitavam o local. Quando era inevitável passar por ali, faziam-no com celeridade e receio.

A velha tinha a fama de ser bruxa. Meu avô repelia com veemência essa crença da vizinhança. Afirmava que era “tolice de gente atrasada”, pois “essas coisas não existem”. Entretanto, nossas mentes infantis não se convenciam tão facilmente. Além do mais, as raras aparições de Veridiana em sua janela só contribuíam para corroborar o boato.

Os cabelos eram longos, brancos e desgrenhados emoldurando uma face enrugada e ossuda. Os olhos muito verdes e vivos davam uma aparência de loucura. E a boca desdentada, que parecia estar sempre sorrindo, completava uma visão de tal forma repulsiva, que era impossível para nós, crianças, contemplá-la sem correr aterrorizados.

Os moradores antigos diziam que Veridiana descobriu que estava sendo traída por Antônio, seu marido, e foi ao trabalho dele cobrar explicações. Lá chegando, tiveram uma discussão feia e o marido a humilhou, impiedosamente, na frente de todos. Contam que Veridiana chegou em casa cobrindo o rosto com o lenço de cabelo, mas que nitidamente soluçava. Um soluço forte que lhe estremecia o corpo.

Quebrou tudo dentro de casa. Chorava e gritava. O alarido de seu desespero chamou a atenção de quem passava pela rua. Os vizinhos perceberam que ela se trancou com o filho e botou fogo na casa. Vô Manuel foi um dos que arrombaram a porta para salvá-los.

O filho, Hélio, também a abandonou depois desse surto de loucura, indo morar com o pai. Veridiana nunca mais se recuperou.

Foi quando surgiram as estórias sobre sua transformação em bruxa. O desejo de vingança a teria dominado de forma tão obsessiva que ela, por fim, fez um pacto com o demônio.

***

Paralisados na rua, ouvíamos o barulho de coisas quebradas, enquanto Intrépido corria pelo quintal da velha. Quando finalmente Veridiana se manifestou, ouvimos sua voz esganiçada proferindo impropérios:

_Vira-latas desgraçado de uma figa! Vou te matar, seu merda! Vou fazer uma sopa com a sua cabeça!

O cachorro pulou a cerca de volta para a rua, com o mesmo ânimo estabanado com que havia pulado para dentro do quintal. A velha apareceu jogando pedras e quinquilharias no bicho, como uma caneca metálica toda distorcida que caiu perto dos meus o pés.

Ao ver-nos, sorriu de forma debochada, mostrando as gengivas desprovidas de dentes. Girou a cabeça em direção ao ombro e encarou-nos fixamente. Seus olhos deram a impressão de faiscar dentro das covas fundas que eram as órbitas escavadas em seu rosto. O esgar naquela face imóvel, como um arremedo de sorriso, me lembrou das máscaras do teatro grego, que eu havia visto num dos livros de minha mãe.

_ Querem doces, crianças? – disse ela, com uma voz repentinamente adocicada.

Saímos correndo em disparada para nossas casas, cheios de medo daquela figura sinistra. Para nós não havia dúvida: a velha era uma bruxa!

Entrei em casa contando o acontecido para minha mãe e meu avô:

_ Mãe! Vô! A bruxa disse que vai fazer uma sopa como nosso cachorro e quis dar doces enfeitiçados para nós!

Numa atitude natural em adultos, os dois riram e me advertiram para que não voltasse a perturbar a pobre infeliz:

_Não fale bobagens, menino! _ disse vovô _ Pare de leseira! Não quero mais essas estórias aqui. Deixe a criatura em paz. Vou falar com os pais dos outros tolos para que corrijam seus filhos bocós!

Mamãe fez coro com seu pai:

_ Se você aparecer de novo com essas conversas de criança besta, vai ficar de castigo sem brincar na rua. E ainda dou o seu amigo pulguento para alguém que more bem longe daqui. Você vai ver! – arrematou com o dedo em riste.

A última ameaça foi a mais assustadora. Até meu irmão, que estava escondido atrás de mamãe e vovô, debochando de mim, enquanto eu levava a bronca, parou assustado quando ouviu que poderia ficar sem o amigão pulguento que tanto amávamos.

***

Naquela noite tive um pesadelo horroroso. Sonhei que estava em minha cama vendo tudo ao redor como se estivesse acordado e repentinamente uma fumaça esbranquiçada ,como a neblina que eu via nas noites frias de festa junina, invadia nosso quarto. O quarto onde todos dormíamos juntos. A neblina se adensava perto do rosto de vô Manoel e puxava uma outra neblina que saía de dentro dele até que ele ficava seco e imóvel com a boca aberta e o rosto morto voltado para mim, me encarando. Eu tentava gritar, mas nenhum som saía de minha garganta.

Depois de matar meu avô, a neblina deslizou para cima de minha mãe e em seguida, de meu irmão sorvendo-lhes o hálito da vida e deixando-os com as faces mortas e ressecadas viradas para mim.

Aí então, a neblina começou a se concentrar ao meu lado e foi tomando a forma de uma pessoa: Veridiana!

Ela olhou firme em meus olhos, com a mesma cara de máscara que vimos de tarde e começou a aproximar sua boca banguela de meu rosto, chiando como uma cobra.

Eu corri para me esconder no tosco banheiro de madeira que ficava no quintal de nossa humilde casa.

Nesta altura do sonho, acordei com o coração disparado e o corpo coberto de suor.

Pela manhã, não contei meu pesadelo a ninguém.

***

Depois daquele episódio com o cachorro e as crianças, Veridiana voltou a ser assunto nas conversas da vizinhança. Um grupo de amigas da minha mãe, que sempre se reuniam lá em casa para fazer as unhas, pintar cabelos e fazer fofoca da vida alheia, seguiu naturalmente,

a tendência do momento. Falar sobre a vida da assustadora e amarga velha. No meio de tantas informações alternativas, uma das mulheres, Dona Dora, lembrou-se de um fato importante:

_ “Virge” Maria! Vocês sabiam que o Hélio completa dezoito anos neste mês de agosto em que estamos? _ perguntou, arregalando os olhos e deixando a boca aberta ao fim da frase, para demonstrar espanto.

_ Mas ele mora com o Antônio há muito tempo. O desalmado abandonou a mãe completamente. Nunca mais apareceu aqui! _ disse mamãe.

_ Mas Dona Gracinha, ela tentou se matar levando o menino junto. Tentou botar fogo na casa e matar o menino... – disse uma outra mulher, uma gordinha de rosto avermelhado.

Mamãe fez um gesto de meia concordância, erguendo as sobrancelhas e meneando a cabeça positivamente.

_Mas o Antônio, eu vejo quase sempre, quando vou à feira do outro lado da ponte. –disse mamãe.

_ Finge que não vê a gente. –emendou.

***

A primeira noite de lua cheia daquele mês de agosto deixou um rastro de sangue e espanto entre os moradores. Antônio e sua mulher foram encontrados destroçados dentro da casa em que viviam, do outro lado da ponte.

Os vizinhos contavam que havia pedaços deles espalhados por todos os cômodos. Diziam que havia profundos cortes em todos os pedaços, mas que os troncos foram as partes mais atingidas. Eu ouvia as conversas dos adultos, até que se tocavam da presença de uma criança e me enxotavam para longe deles.

Fui me achegando a alguns grupos de adultos, que comentavam o assassinato. Eu ouvia suas conversas, tanto quanto podia, antes que me expulsassem.

Ninguém sabia o que aconteceu com Hélio. Tudo o que sabiam, inclusive os policiais que foram ao local, era que o rapaz não estava morto naquela casa. Poderia estar vivo em outro lugar ou poderia ter sido levado para ser assassinado longe dali.

Ninguém considerou a hipótese de o rapaz ser o assassino. Os corpos devem ter sido desmembrados por alguém muito forte e dotado de ferramentas de corte bruto.

Minha mãe aventou a hipótese de uma onça ter atacado o casal, mas nenhuma onça jamais havia sido vista ali.

***

A casa de Veridiana estava apresentando uma animação jamais vista. A voz da velha era ouvida a cantar e mesmo a gargalhar. Foi até mesmo vista na janela tentando sorrir para quem passava.

Mas sua alegria durou pouco. A velha foi a próxima vítima da fera da lua cheia. O bicho que matou seu marido e a nova esposa dele continuava à solta.

Como de hábito, as pessoas acorreram à casa da infeliz para ver o que aconteceu. E as crianças iam junto. Foi assim que pude ver várias partes quebradas da casa. E vi, também, a coisa mais espantosa. Uma imagem que até hoje é nítida em minha memória: a cabeça decepada de Veridiana! A cabeça estava jogada ao pé da porta, invertida com o corte do pescoço para cima. A mesma expressão de máscara estampada na cara morta. O mesmo esgar, como se sorrisse no momento em que a cabeça foi arrancada. A poça de sangue ao redor... Tudo formava uma imagem pior do qualquer um de meus pesadelos.

Vô Manoel, usando de usas prerrogativas de morador muito antigo e homem valente, ignorou a necessidade de esperar a chegada da polícia e entrou na casa. Passou pela cabeça caída na porta, sem esboçar emoção. Deve ter visto muitas cenas semelhantes na guerra.

Se meu avô entrou na casa de maneira firme e desafiadora, algo mudou muito em sua atitude ao sair. Ele saiu apressado e pálido. Tentou disfarçar o pavor e o nervosismo com um tom de voz elevado e uma irritação simulada. Na sua mão direita, trazia um pequeno livro. A maioria dos moradores presentes era muito pouco afeita à leitura e não deu importância a este detalhe. Vovô me pegou pelo braço e me levou para casa. Entretanto, na saída, disse para todos que ali estavam:

_ Vão para casa e não saiam de lá. Não andem à noite enquanto a lua cheia não passar!

Sei que muitos não entenderam, mas obedeceram. Vovô era muito respeitado na vila.

Naquela noite, todos fomos colocados para dentro de casa, inclusive o cachorro, por causa de um perigo que nem eu, nem meu irmão, sabíamos o que era. Só meu avô e minha mãe sabiam.

Eu tinha certeza de que as ruas da vila estavam desertas por causa da fala de meu avô. A mistura de medo da morte e obediência ao sábio velho esvaziaria as ruas. A lua cheia brilharia em vão, sem ninguém para contemplá-la.

Mas como diz o ditado: “casa de ferreiro, espeto de pau”. Foi justamente na casa de meu avô que alguém desobedeceu sua ordem . Eu.

A umas tantas horas da madrugada, acordei com uma vontade imensa de urinar. A casa era um silêncio só, pois todos dormiam. Até o cachorro ressonava imóvel, enrodilhado perto de minha cama. Dormia como todos os demais ocupantes daquele quarto.

Abri a porta como de costume e, me dirigi ao banheiro no quintal. Entorpecido pelo sono, não me lembrava dos avisos ou dos perigos. Andei poucos metros na direção do banheiro. Foi quando vi algo que me gelou o sangue e me fez relembrar todos os horrores dos últimos dias. Uma sombra se moveu entre as mangueiras. Escondida na escuridão sob a copa das árvores, a sombra me observava. Olhos brilhantes, como os de um gato, moveram-se adiante. Pude, então, ver a horrenda figura em toda a sua apavorante plenitude. Era como um homem todo coberto de pelos. Tinha a cabeça de um cão com uma expressão cruel nos olhos vermelhos. Senti a urina descer escorrendo por minhas pernas. O monstro rosnou baixo e caminhou em minha direção. Como no pesadelo, tentei gritar, mas não consegui.

De repente, com muito esforço, consegui gritar um pedido de socorro:

_ Tépiiiiii!!!!!!

Meu imenso amigo pulguento surgiu correndo e rosnando pela porta aberta. Furibundo, foi na direção da monstruosidade que me ameaçava.

Tépi, que era como eu conseguia pronunciar o nome de nosso cão, engalfinhou-se com o monstro de tal maneira que a ferocidade dos dois se confundia, assim como suas formas. O sangue espirrava sem que eu soubesse precisar qual dos dois estava sangrando a cada jorro que tingia o chão.

Acordado pelo barulho da luta entre o cão e o monstro, vô Manoel saiu pela porta empunhando sua espingarda. Colocou-se do meu lado e tentou mirar no invasor, mas não conseguiu. Por fim, Intrépido destruiu a garganta do monstro a dentadas. Logo, os dois jaziam inertes no chão.

Intrépido estava muito ferido, com o tronco aberto esvaindo-se em sangue. Olhou-nos pela última vez e foi-se com um ganido. Chorei.

O monstro morreu, dando lugar a um homem. Hélio, o filho da bruxa.

***

Hoje, nos meus cinquenta anos de idade, ainda guardo o livro que meu avô tirou da casa de Veridiana. Nele, a velha narrou como enfeitiçou o odiado filho que a abandonara para tornar-se sua arma de vingança contra Antônio, o marido que a havia humilhado e desprezado.

Hélio tinha se tornado um lobisomem por obra de um feitiço de sua mãe rejeitada. A vingança de Veridiana era ver a nova família de Antônio morta por um de seus membros.

Nunca soube que destino dar a tal livro. Ele permanece comigo, como uma advertência contra os horrores do mundo.

***

Minha esposa e meu filho acostumaram-se ao zelo que tenho por uma velha foto em preto e branco na qual eu apareço, ainda menino, ao lado de um enorme vira-latas.

Meu grande amigo Tépi. Meu salvador.

FIM

TEMA: FAMÍLIA