Ecos da Valachia

“Pentru ca mortii umbla Repede”

(“Porque os mortos viajam rápido”)

-Bram Stoker, “Drácula”

Quanto terror um homem é capaz de suportar antes de enlouquecer e perder por completo a própria sanidade?

Esta foi a pergunta que me fiz na noite em que aquele sujeito saiu das florestas da Transilvânia, aos prantos e mergulhado no mais completo e profundo desespero. Sem fôlego de tanto correr, semi-desidratado como se tivesse por três dias sem água, ele caiu de joelhos na entrada da cidade de Bucareste, usando seus últimos resquícios de ar para berrar a plenos pulmões. “Ele está vivo! Ele vive! Ele jaz na floresta, mas ainda jaz vivo!”

De início não compreendemos. Os homens da cidade agarraram o vagante pelos ombros e braços e o conduziram até o mosteiro mais próximo, onde freiras trataram se suas feridas e o deram de beber e comer, e o enveloparam em grossos cobertores para espantar o gélido ar noturno.

Juntos, eu e outros homens e rapazes, munidos de armas de caça se aglomeraram ao redor do leito.

As roupas do andarilho estavam úmidas pelo orvalho e sua pele continha uma infinidade de arranhões e escoriações, provavelmente causadas pelos espinhos das plantas da floresta. Em seu peito havia um grande ferimento, como que um rasgo que se escancarava, revelando a carne rubra por trás da pele alva.

“O que aconteceu?”

“Este andarilho... arde em febre e diz coisas delirantes!” disse uma das freiras.

“O que nos preocupa e a razão de estarmos aqui é aquilo que o conduziu ao delírio. Ele de fato apresenta sinal de alguma doença ou há a possibilidade de que tenha visto algo na floresta que o conduziu a este pensamento?”

“Pela ferida em seu peito,” disse um dos homens presentes, enquanto engatilhava seu rifle de caça “provavelmente teve um triste encontro com um lobo ou predador na floresta. A ausência de água e comida somada a ferida em seu peito o conduziu ao delírio.”

Todos ponderaram por alguns minutos.

“Se é de fato isso, então devemos preservar nossos rebanhos e nossas crianças. Achemos o lobo que espreita nas redondezas da floresta e matemos, antes que volte a atacar.”

E todos assentiram, crendo que aquela seria a melhor solução para o caso. Deste modo, todos engatilharam seus rifles em resposta e deixaram o recinto.

Quando eu me voltei para a porta, ouvi o andarilho murmurar.

“N-Não foi lobo. Não foi lobo ou predador animal, embora ele seja também animalesco. Não era lobo, mas ele tinha poder sobre os lobos e sobre os morcegos e sobre tudo que caminha, voa e rasteja na noite.”

“O que você está dizendo, homem...?”

“Não foi também alucinação ou ilusão. Ele estava lá. Todos nós achamos que ele estava morto, mas ele está somente metade morto mas metade vivo. Eu havia saído com meu grupo de caça, assim como você. Havíamos montado em nossos cavalos e engatilhado nossas armas, assim como vocês farão.

Mas balas não podem ferir aquilo que não é deste mundo! E por Deus! Por Deus que lhe juro, o chumbo quente o atravessou como a um fantasma, sem produzir ferida alguma, não conseguimos ver uma simples gota de seu sangue – enquanto com suas garras ele e seus acólitos noturnos faziam jorrar nosso sangue como um rio! E o sangue escorrerá em cascatas dos montes Cárpatos, porque ele jaz VIVO!”

Eu me virei novamente para o leito, olhando o andarilho nos olhos. Suas pupilas dilatadas à luz das lamparinas expressavam o mais puro horror. Sua face pálida congelada num grito silencioso, enquanto suas palavras saíam em sussurros, como se dirigidas somente a mim.

Era uma estátua esculpida do próprio pavor, pelas mãos do próprio Phobos, deus do medo da antiga Grécia.

“Acalme-se. Foi apenas um animal que o feriu...”

“Já disse que não era animal! Eu o vi com estes próprios olhos, lentes de espelho do medo! Ele já não mais assenta seu trono no castelo de obsidiana do alto da montanha! Ele não mais viaja pelas cortes nobres da Hungria ou entrava batalhas na Turquia! Ele reside na floresta! Seu trono de mármore negro vindo do próprio orco. Sentado, em esplendida visão de horror e êxtase, com sua pele macilenta e pálida, seus longos e ondulados cabelos negros e sua boca adornada com dentes afiados, tais quais presas de marfim! Seu manto branco tingido de vermelho pelo sangue coagulado expõe no peito uma tatuagem de dragão, embora ele não mais seja da Ordo Dracul de São Jorge, mas da Ordem do Dragão Vermelho Infernal. Ele bebe taças de lágrimas e devora a carne dos vivos – pois ele mesmo precisa disso pra manter a essência de sua vida! O coro ao seu redor é o canto dos gritos de dor de suas vítimas empaladas. A floresta que o cerca não é mais de árvores, mas de corpos humanos erguidos em longas estacas de madeira que são como árvores! Ele retornou ao teatro dos horrores deste mundo e isso será o fim de todos os tempos, pois o Inferno o segue!”

Eu permaneci ali, parado no limiar entre o quarto e o corredor do mosteiro, encarando o homem naquele leito, meu corpo presente, mas meu espírito atormentado e imaginação guiada pela suas palavras repousavam sobre a floresta transilvana.

“É apenas um lobo. E eu irei matá-lo”. Eu disse com convicção e firmeza que não possuía, antes de deixar o local e me dirigir até meus companheiros de empreitada.

Ajeitei meu chapéu de três pontas e puxei o sobretudo azul escuro sobre meu corpo, barrando o vento noturno que acariciava minha pele. Montei em meu cavalo e empunhei o rifle com firmeza, indo até a frente dos homens.

Encarei um por um, muitos rostos joviais, cujas faces jamais veriam a luz do dia novamente, muitos não mais veriam suas esposas e filhos.

Um uivo ecoou pela floresta. Mas não era um uivo de lobo ou guinchado de morcego, ou sequer ruído animal ou humano, mas uma fusão de ambos.

E naquele momento eu soube em meu coração que o Príncipe da Valachia havia retornado e retomado seu trono usurpado. E ele havia retornado como uma sombra, um espectro sombrio, um Eco daquilo que fora um dia.

E esse Eco ressoava seu nome escondido naquele uivo, entre os corpos de vítimas empaladas na floresta que se erguia sob o céu avermelhado, como prelúdio do sangue que seria derramado.

E seu nome era Príncipe Vladislav Tepes Aka Dracula.

Damien Void
Enviado por Damien Void em 08/03/2018
Código do texto: T6274014
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