69.6


 
— A Skol está quase acabando. Vai lá em casa em pega algumas latas. — Pediu Rodrigo.
— Pega você, folgado. Não vê que tô ocupado. — Respondeu Alisson, sintonizando o rádio.
Ainda que não estivessem bêbados o suficiente, Rodrigo começara a notar uma dormência nas mãos, mas não o suficiente para parar de beber, naquele momento pensara que mais algumas latinhas não fariam mal, ou pelo menos não o deixaria bêbado para fazer alguma idiotice. — Onde você colocou...
— Procura cara! — Gritou Alisson.
As vezes Alisson poderia ser um cara legal, mas as vezes ele era só mais um otário. Os vinte cinco quilômetros de Mairiporã não existiam mais que fazendas e sítios desertos. Como um Mairiporense, Rodrigo conhecerá bem a região, e em uma de suas incursões festivas acabou encontrando uma pequena casa de barro perdida próxima de um matagal. Eles conseguiam transformar um Ford Focus 2005 em um Camaro naquela estrada de terra, enquanto fumavam maconha e xingavam como queriam.
— Ei, ei... Alisson, não está me ouvindo, droga. — Chamou Rodrigo pela janela da casa.
— Cadê as latinhas.
— Puts, eu deixei do lado de umas pedras aí dentro. Procura direito.
— Não tem nada aqui. — Respondeu Rodrigo, enquanto seus olhos turvavam.
Alisson girou o botão do rádio com força o suficiente para quebra-lo. — Olha só o que você fez eu fazer.
— Mano esse carro é do meu pai, que droga você fez.
­— Você fica perguntando cadê a lata, cadê a lata. Eu já disse que deixei lá dentro, mas você...
— Vai lá merda, vê lá dentro então.
Alisson se levantou do banco do motorista, seu estado era pior que o de seu amigo, não conseguia andar em linha reta e seus olhos giravam, tonteando.
— Oxi, eu deixei aqui. — Disse Alisson vendo que as latas não estavam dentro da casa.
— Você se esqueceu.
— Droga, eu deixei em baixo da pia lá em casa.
Alisson começou a rir, apoiando-se na janela da casa.
­— Já tá chapado?
— Calma cara, ainda nem traguei.
Enquanto conversavam, Rodrigo conseguiu encaixar o botão do rádio no painel, mas algo estava errado, só havia estática. Alisson aproximou-se enrolando um baseado.
— Cara, ouve só... o rádio ficou estranho.
­— Não vou pagar nada.
— Relaxa, acho que concertei, mas tá estranho.
­— O que foi?
— Ouve...
— Bela dama como pode ser tão... — Uma voz ressoava pelo rádio.
— Esta ouvindo?
— Mostre-me seus mistérios, e seu dom...
— Acho que é a voz de uma mulher.
— Cara, você nem trago ainda e já assim. Não estou ouvindo nada.
— Presta atenção...
— Deixei seu corpo naquela estrada, e não voltei, não voltei mais. Ó bela dama, perdi seus olhos pra sombra.
A voz parecia triste, mas cantava como se estivesse apaixonada. Alisson duvidava que Rodrigo pudesse estar tão chapado como ele, mas tinha certeza que não ouvira nada no rádio.
— Se não estivesse tão chapado, diria que ficou louco, mas como estou, vou ficar quieto.
Rodrigo observou o rádio, e percebeu que estava sintonizado em uma rádio que nunca havia visto antes 69.6. Ele passou os olhos de relance pela janela direita e percebeu uma luz azul vinda do escuro, próximo a estrada, mas a luz desapareceu quando virou o rosto.
— O que tinha naquela cerveja.
— Vou saber. Meu tio é louco como eu, sabe disso.
— Uhum.
Rodrigo saiu do carro, sentando-se na grama. Seu primeiro trago proporcionou uma sensação única de leveza.
— 69.6.
— O que disse?
— Nada. Só pensando alto.
Eram oito horas da noite, e se não estivessem tão chapados, poderiam ter conseguido voltar para casa, mas adormeceram ali mesmo, ao lado do carro, olhando para o céu e curtindo o pouco de tempo que tinham antes que Rodrigo se mudasse para São Paulo. É engraçado como as horas podem passar tão rápido quando se esta dormindo, Rodrigo lembra-se apenas de piscar os olhos e então acordo horas depois...
— Alisson...
O carro desaparecera abruptamente, enquanto ao lado de Rodrigo aparecera dezenas de bitucas de cigarro, dos quais não se lembrava de ter trazido, algumas ainda saindo fumaça. O vento estava forte naquele horário e boa parte do céu estava coberto por uma manta negra de nevoa.
— Há, há, muito engraçado cara.
Rodrigo virou-se para trás e para os lados, mas não conseguia encontrar seu Ford, nem Alisson. A princípio imaginou que fosse alguma brincadeira, contudo, ouviu um grito vindo de dentro da casa. Fora um grito tão alto e hediondo que Rodrigo se arrepiou todo de medo. A voz não podia ser de Alisson, pois era um tom feminino.
Havia alguém olhando para ele da janela da casa. Um rosto pequeno, careca, sorrindo, com os dedos longos apertando a bochecha direita.
— Porque você me deixou morrer naquela estrada... — Ouviu o rosto falar.
Ele tentou correr, mas caiu... tropeçou em uma caixa de latas de Skol. No chão, viu alguma coisa arrastar o corpo de Alisson para dentro da casa. Seus olhos se encheram d´agua e começou a gritar. Rodrigo correu até chegar na estrada, onde viu uma luz muito forte vindo em sua direção, ele acenou que parasse, mas o carro aumentou a velocidade atropelando-o em cheio.
Seu corpo caiu desengonçado após subir dois metros. Um de seus olhos havia pulado da orbita, enquanto outro continuou fitando a estrada vidrado... era seu Ford Focus, parado a alguns metros, não havia ninguém no banco do motorista, e antes que pudesse morrer, ouviu — Deixei seu corpo naquela estrada, e não voltei, não voltei mais. Ó bela dama, perdi seus olhos pra sombra.
 
 
 
Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 06/08/2018
Código do texto: T6411523
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