ESTRANHO


Mal era possível enxergar na escuridão, ainda assim Lucas forçava a vista entorno da área tentando manter-se calmo. ­— Dani... — Gritou ele, num tom mais rouco do que o comum. Haviam muitos pontos barrentos naquela região, parecia até que ia afundar no chão a qualquer momento, mas não aconteceu. Estava cansado, e suava por debaixo daquela regata branca apertada. — Que droga... Daniele... — Berrou novamente.
— Precisa voltar idiota, ou vai se perder, se já não estiver... — Pensou.
— Não é hora de perder a calma. Respira. — Falou indiscretamente.
Não tinha como seu grito ter vindo de tão longe, e dois quilômetros e meio de caminhada já tinham começado a deixa-lo nervoso. Impressão ou não, sua confiança definhava, pensando que seria quase impossível encontra-la se ela não estivesse consciente, ou ainda mais perdida que ele. Parte dele queria voltar e tentar encontrar o caminho para a praia, mas se o fizesse estaria sendo um covarde egoísta, tal como havia sido no verão de 1999. Naquela tarde de sexta-feira devia estar fazendo uns quarenta graus em Governador Valadares, ou talvez mais, não tinha certeza. Ele voltava da padaria com uma sacola de pão e um saco de café moído, quando ouviu três garotos gritando do outro lado da rua, eles choravam tentando escalar o portão, mas não tinham como, pois, eram pequenos demais e seus braços finos pendiam desajeitados, enquanto tentavam se suspender na grade, escorregando, direto para a boca de um Pitbull coberto de sangue.
O cachorro latia com os dentes arquejados, latia com tanta força que era quase impossível não ouvir o som de sua mandíbula abrindo e fechando. Ficou paralisado durante os primeiros segundos, até que correu na direção deles, largando tudo que tinha na mão sobre a calçada.
— Aju-da. Por-fa-vor. — Esguelhou-se um dos meninos quase sem voz.
Uma poça se sangue escorria de dentro da casa vindo na direção de seus pés, fora a primeira vez que viu tanto sangue daquela forma, e se perguntou porque tinha um aspecto diferente de quanto se cortava ou se machucava andando de bicicleta. Ao lado do cão, pedaços de um vestido vermelho e mais sangue, mais adentro do quintal, próximo da porta da casa havia uma senhora caída, seu rosto estava inclinado para frente com metade de seu maxilar arrancado brutalmente. Lucas não tinha como pedir ajuda sem que os deixasse, e sabia que eles não aguentariam mais se segurar na grade, faltava pouco para o menor se desequilibrar e vir ao chão.
— Segurem-se, vou tentar puxa-los por cima.
— Rápido moço, eu vou cair, eu vou ca... — Falou um dos garotos antes de cair.
Os outros dois garotos que mal se sustentavam na grade viram seu irmão caçula cair, estavam em pânicos chorando e começaram a gritar ainda mais quando o cão começou a morde-lo. Lucas ficou desesperado, não teve como segurar o choro, ou o terror. — Não... — Gemeu atônito.
Seus olhos congelaram, tal como o resto do seu corpo, ele via os dentes do cachorro abrirem e fecharem, em seguida carne e sangue. Um grito baixo e engasgado soou, até que não ouvisse mais o garoto gritar, e mais sangue escorreu para fora do portão.
Uma ambulância do SAMU dobrou a esquina quase vinte minutos depois, os socorristas, encontraram Lucas sentado ao lado da calçada, com as mãos no rosto, chorando em silencio abalado. — Ele comeu todos eles... — Disse Lucas num inaudível.
Um deles, o mais alto de cabelos escuros aproximou-se do portão, o sangue já havia chegado até a via próximo de um bueiro. — Ele comeu todos, comeu todos, comeu todos...  Os olhos do cão pareciam duas bolas de gude azuis, fixados nos paramédicos do lado de fora, enquanto babava, com quase todo o pelo manchado de sangue, ao lado dos corpos.
— Daniele... — Gritou com a garganta inchada.
Ouvia o grito dos garotos mortos em seu pensamento, o grito deles enquanto o cachorro os devorava, aquele som dilacerante dilatava em sua mente como um sino alto e desagradável.
Com uma meia hora caminhando, imaginava poder ter se perdido, e não sabia mais de qual direção o grito de Daniele tinha vindo, mas continuou seguinte a fumaça que vinha ao norte, até encontrar uma velha cabana caindo aos pedaços, a fumaça parecia vir de uma fogueira recém apagada. Lucas caminhou devagar até próximo da fogueira, mas parou antes de chegar mais perto. ­— Merda. — Falou ao ver um pedaço de um braço carbonizado ao redor das brasas.
A porta da cabana rangeu entreabrindo-se com o vento, ele sabia que não deveria entrar, porém entrou. Estava uma zona lá dentro, os moveis haviam sido destruídos, e tinham pedaço de papeis velhos por todos os lados dos quais não era mais possível lê-los já que a tinta havia desbotado. Mais à frente, abaixo da janela encontrou uma espécie de diário, ao lado de vários ossos empoeirados. A capa dizia; 1981. Em letras itálicas.
— Passamos uma noite nesta ilha do diabo, meus companheiros se perderam como eu. Ouvi seus gritos, ouvi eles morrendo, mais nunca os encontrei...
Lucas virou a página.
— A ilha é uma armadilha, todos que vieram estão mortos, NÃO HÁ COMO SAIR DESTA ILHA, eles nos observam, nos observam esperando nos perder, NÃO HÁ COMO SAIR DESTA ILHA, eles estão lá fora...
As próximas páginas estavam praticamente ilegíveis, cheias de rabiscos abstratos que representavam talvez rostos, vários rostos chorando ou em desespero, pedindo socorro.
— Eles entraram... — Uma mensagem escrita no rodapé da última página escrita.
— Lucas... ­— Ouviu a voz de Daniele do lado de fora. ­— Lucas cadê você.
— Daniele? — Respondeu.
Lucas tentou encontra-la, observando pela janela, mas não via ninguém dali de dentro, somente o mato alto e a floresta ao redor da cabana.
— Lucas, socorro, vem aqui fora... — Ouviu, largando o caderno no chão.
Ele a procurava, sondando a área pela janela, estava escuro, então ficava mais difícil enxergar.
— Daniele. — Chamou-a, observando pela janela.
— Dani...
Lucas caminhou até a porta após ouvir passos apressados se aproximando. Em seguida, uma claridade peculiar, talvez uma tocha. — Daniele. — Chamou-a um pouco mais abaixo percebendo que havia alguém atrás da porta.
Daniele não respondeu novamente. Entretanto, havia alguém parado do lado de fora, uma sombra projetava-se pelo vão da porta por conta da luz. Lucas afastou-se da porta ao perceber que podia não ser Daniele. Segundos depois, começaram a forçar a porta. Meio quilometro dali à cabeça de Daniele pendia sobre uma rocha.
 
Continua...
Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 13/08/2018
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