A CULPA É DA LOUCURA
 
 
— Oh, mãe... como chegamos a este ponto. — Sussurrou Fernanda, num tom abafado.
Adelaide não respondeu, estava presa a um coma fazia dezessete anos.
— Sempre teve a pele tão bonita mãe, tão bonita.
— Não vai deixa-la sofrer... — Ouviu uma voz latejar em seus pensamentos.
As vezes não tinha como ignorar a própria consciência, — a mulher dentro de toda a mulher — e Barbara tinha certeza que cedo ou tarde teria que a enfrentar. Na cama havia uma garrafa de Vodca aberta e uma taça rachada, ambos enfileirados sob os pés de Adelaide. Naquele horário, depois das onze, quase todos moradores do cortiço já tinham fechado suas portas. Do quarto era possível ver pela janela o breu do corredor que seguia uma distância de dez metros até o portão principal. Barbara ouvira o entonar grave de um grilo perdido vindo do lado de fora, e aquele som a deixara louca, quis fechar a janela, mas não conseguira se levantar da cama, estava bêbada demais.
— Já disse. O tempo dela chegou e já se foi... aproveite que está bêbada e acabe com isso. Ninguém vai descobrir, e mesmo que dessem conta da velha, não ficaria presa por muito tempo, não aqui... não no Brasil.
Barbara arregalou os olhos impávida, contraindo o nariz e franzindo a testa, enquanto respirava profundamente. Uma figura aproximou-se de seus olhos, uma mulher loira de trinta anos, com um longo vestido vermelho com detalhes em cetim.
— Não pode ser tão fácil se esquecer quem é de verdade, acha que a vida toda foi uma pessoa boa, que cresceu e arrumou um cara bom e depois montou uma família perfeita... não se engane Barbara é uma mulher quebrada, todo lixo e merda que carrega foram contraídos por suas próprias decisões, agora não soube lidar com as consequências e se sente péssima por isso. Quem matou essa mulher que está em cima desta cama foi você.
— Cala a boca, chega... ­— Berrou Barbara.
— Não devia pedir isso a mim... — Respondeu a mulher a sua frente, sentando-se eroticamente sobre a cama.
— Ela está viva. Ela está viva me ouviu.
— Claro que está. Está viva a dezessete anos... viva, viva, viva, tão viva que nem abrir os olhos consegue. Tão viva que nunca mais acordou depois de ver você matando o esposo.
Uma segunda voz se aproximou, num tom masculino.
— Disso ela está certa amor. Me matou como uma covarde não é Barbara, só porque eu gostava de pular um pouco a cerca.
— Com homens. — Divagou Barbara, apertando o lençol.
— Não sei do que está falando... — Ouviu a voz do marido penetrar em sua mente como um explosivo.
— É Barbara, ele realmente não sabe... está vendo, matou um cara inocente. — Respondeu sarcástica.
­— Saiam da minha cabeça. — Falou, fechando os olhos.
Após abrir os olhos, ambos tinham sumido, tanto a imagem de si mesma, como de seu falecido esposo. Barbara apertou a mão de sua mãe, contraindo os dedos e as unhas. Havia mais problemas na vida de Barbara naquele momento que em qualquer outro de sua vida, ela tinha sido demitida por justa causa, perdeu a casa após levar um golpe de um estelionatário e agora morava em cortiço junto a sua mãe em coma e uma diarista que cuidava de Adelaide.
Enquanto enxugava as lagrimas um pouco de Vodca caiu sob a cocha direita de Adelaide.
— Desculpe mãe, vou limpar...
Barbara tentou se levantar, mas no exato minuto que o fez suas pernas bambearam como duas varetas ao vento, ela estava ainda mais tonta do que imagina. — Droga, droga, droga. — Gritou apoiando-se no criado mudo ao lado da cama.
— Sabe quem queria poder estar bêbado agora... eu... — Disse a voz de seu falecido esposo.
Ela se desequilibrou com o susto, caindo de rosto no acoalho.
— Não deve dor. Esta anestesiada. — Ouviu sua voz.
Barbara se apoiou na cama e tentou se erguer, uma fita de sangue escorreu de sua testa, descendo simetricamente pelo nariz e pingando no chão. Não estava sentindo nada. Sua expressão fechada recuperava-se do susto, e quando conseguiu se levantar, voltou a cama, apoiando-se nos pés de sua mãe.
— Me perdoa mãe. Me perdoa por tudo.
Adelaide moveu o dedo indicador quase que imperceptivelmente. Moveu tocando sua mão.
— Mãe. — Engasgou, fixa no dedo.
— Quer mesmo que ela acorde Barbara.
— Acho que não deveria deixa-la acordar. Se acordar ela vai contar tudo. — Falou o marido, segurando a garrafa de Vodca. — Já está vazia.
— Melhor que esteja mesmo querido. Não conseguiria beber se estivesse. — Ouviu-se gargalhar.
— Minha filha, queria tanto que tivesse sido feliz. — Ouviu uma terceira voz gemer de debaixo da cama, num tom senil.
— Olhe para mim Barbara, olhe para mim deitada nesta cama... acha que posso acordar um dia, já estou velha demais e se acordar não terei mais que poucos anos, isso se não meses. Estou sofrendo, estou sofrendo muito e sabe disso, não vou perdoa-la pelo que fez comigo, pelo que fez com todos que a amavam, mas isso não importa, filha... liberte-se deste peso, liberte-se de mim. — Murmurou a voz de Adelaide de debaixo da cama.
Barbara levantou o forro da cama devagar e percebeu cinco pares de pequenos olhos vermelhos no escuro. Pareciam formar até um olho de uma mosca, cheia de pequenos olhinhos minúsculos e repulsivos. Os olhos a observavam como faróis.
— Barbara, barbara... — Chamou uma voz desconhecida de detrás da porta.
Ela voltou a posição original, sentada na beirada da cama.
— Quem é agora?
— Sou eu... a morte...
— Era o que me faltava... ­— Resmungou Barbara jogando a garrafa de Vodca na porta.
Uma luz se ascendeu no corredor, em seguida passos se aproximaram da janela.
— Está tudo bem aí? — Perguntou Roberto, o vizinho.
Barbara levantou-se e num salto rápido fechou a janela sem responde-lo.
— Vá cuidar da sua vida. — Sussurrou fechando o cadeado.
— Há muitos quartos, mas nenhum como este. — Disse a morte, observando-a de detrás da porta.
Sua pele se arrepiou com a voz da morte, que era mais calma e gentil do que esperava.
— Nossa dança continua sem ritmo.
— Porque está aqui?
— Está mesmo querendo conversar com a morte Barbara. — Perguntou a voz de seu falecido esposo.
— A maldição dos fracos é a coragem, meu bem. Coragem demais se torna um pesadelo. — Ouviu a própria voz enrolar-se.
Alguma coisa cutucava seu joelho, arranhando a pele com força até sangrar, mas estava bêbada, então era difícil distinguir dor. Enquanto segurava a mão de sua mãe, a morte lhe observava, ela não conseguia ver a morte, ainda assim, sabia que estava atrás da porta.
— Coloque a mão sobre o peito dela que tudo estará terminado.
— Não vou fazer isso. — Respondeu apertando ainda mais a mão da mãe.
A morte continuou olhando para ela fixamente.
— Sangue... ­— Disse a voz de seu falecido esposo.
Barbara olhou entre as pernas. Sua calça jeans estava praticamente ensopada de sangue no meio das pernas. Ela tentou se levantou de novo, e novamente caiu, desta vez de joelhos, batendo o ombro na quina da cama. Um estalo agudo ressoou pelo quarto, em seguida, Barbara não conseguiu mais mover o braço.
— Tem pouco tempo Querida. Foi tão rápido quando apertou aquele gatilho no meu peito, não vi nem o que me acertou, só me lembro do seu rosto, a maquiagem borrada e uma expressão de terror.
— Ela sabe que precisa fazer... — Ouvi sua voz tremulante.
— Ela me deve isso... — Falou o esposo.
A meia noite todas as vozes pararam, e caída sobre o próprio vomito, carregou a arma que tinha na cintura. O quarto estava tão quieto que só conseguira ouvir seus batimentos naquele momento.
— Tic. Tac. — Disse a morte. 
— Tic. Tac.
 
Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 23/08/2018
Reeditado em 25/08/2018
Código do texto: T6428120
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