CULPA - CLTS 04

O gosto de terra molhada me embrulhava o estomago, por mais que tentasse não conseguia fugir. Os latidos cada vez mais fortes me acuavam como caça na mata, estavam me cercando, me conduzindo por entre as sepulturas intermináveis. No desespero, o cemitério tinha sido o único refugio possível.

Quando a noite chegasse seria meu fim, estaria perdido. Não sei como aqueles três cães raivosos cismaram comigo, do nada estavam ao meu encalço. Não deviam comer a messes e agora se fartariam nas minhas carnes. Do pouco que pude ver, destacava-se o pelo imundo com ossos sobressaindo sob a pele, olhos vermelhos e dentes afiados. No início encontrei casas trancadas e ruas desertas, gritei por socorro constatando ser inútil, esmurrei algumas portas conseguindo apenas ferir minhas mãos, a única porta que se abriu parecia me levar ao fim, entendi minha solidão, morreria exatamente como escolhi viver.

Sempre fui teimoso, não queria me entregar, o desejo de escapar falava mais alto empurrando-me sempre adiante por uma alameda sombria que cruzava por entre os velhos jazigos. Com um pouco mais de tempo conseguiria escalar uma das árvores aguardando em segurança por uma alma viva que viesse me salvar, não tinha como correr tal risco, um descuido e seria alcançado.

Sem noção, embrenhei-me por entre os túmulos, sentia-me mensurado pelos espíritos daqueles ali sepultados, temia que muito em breve fosse um deles. Sem alento, com a garganta estrangulada pela sede percebi a silhueta distante de uma pessoa, rezei para não ser um fantasma. Sem opção corri em sua direção, tentei gritar mas a voz saia rouca.

Agarrei o velho pelos braços implorando socorro. Ele me ouvia com uma serenidade irritante. Os cães faziam o cerco, estavam ali brincando com a caça e o velho apenas sorria.

Olhando para meus pés, aquele misterioso senhor propôs um acordo.

Ele serviria como distração aos cães contanto que lhe desse meus tênis.

Era um par importado, edição limitada pago em euros, tentei até barganhar, tinha comigo algum dinheiro, além de sapatos novos poderia lhe comprar outras coisas. Sem acordo, aceitei as condições continuando descalço minha corrida rumo à salvação.

Não tardou para que eu descobrisse a falha no plano. Ganhei alguns minutos recuperando um pouco de fôlego, mas os bichos estavam próximos.

Haviam algumas covas abertas como feridas a macular a terra, o vermelho da lama era como o sangue a ser derramado naquela cidade de mortos.

Sentia o hálito quente dos cães cada vez mais próximos, minha pele chegava a se arrepiar, a escuridão do fim de tarde roubava a luz da esperança.

Sem saber como ou de onde surgiu. Fui de encontro a uma mulher que provavelmente prestava homenagens a um falecido.

O choque foi tão violento que a pobre foi arremessada a metros de distância. Recuperado do susto, estendi a mão para erguê-la. Seu corpo coberto de lama deixava escorrer água por toda sua roupa.

Desculpei-me tentando explicar a situação. Estranhamente pareceu que ela resignada com o fato não se incomodava com o perigo ou com o frio que fazia.

Ela se ofereceu para me ajudar, em troca lhe daria minha blusa. Não tive como negar. Depois do incidente, era o mínimo de reparação apesar de que aquela era minha camisa predileta, recordação das férias em Madrid. Enfim, ganharia mais tempo em minha corrida sem direção.

A fuligem das chaminés misturada com pequenas gotas da chuva anterior davam um tom avermelhado ao por do sol, meu corpo doía pelo esforço da fuga, cada passo poderia ser o derradeiro. Apoiei as costa no mármore frio de uma tumba opulenta. Acima, um adorno representando o Arcanjo Miguel com suas asas abertas apontava sua espada para minha cabeça prestes a cumprir a sentença.

Enquanto meu peito arfava a procura de ar, um jovem se aproximou displicente. Meu estado não inspirava confiança, parecia mais um louco amante de cemitérios a perambular entre mortos.

Para meu azar, o rapaz confirmou minhas suspeitas. A única saída seria o retorno. Enfrentar tudo aquilo que tanto tinha evitado, retornar exatamente de onde vim ou seguir adiante tendo como parada final uma pequena capela que talvez estivesse aberta proporcionando o abrigo e descanso que tanto necessitava. O regresso era temerário, seguir adiante era tudo que sempre fiz.

Como era habito daquela gente, lá se foram minhas calças em pagamento por uma simples informação, me acostumando com o jeito de barganhar sorria ao pensar naquele garoto maltrapilho pela primeira vez usando uma roupa de grife, em sua vida miserável nunca teria outra peça com tão nobre caimento. Desperto deste devaneio pelos rosnados insistentes dos meus perseguidores, continuei seminu esperando pela salvação que não me cobrasse ônus.

Diante da capela roguei a Deus que ali encontrasse conforto. As portas eram pesadas, as janelas seguras com seus vitrais coloridos. Finalmente a salvação.

Num rompante desesperado invadi o local, lá fora os cães frustrados com a fuga uivavam de forma medonha. Puxei a tranca certificando-me de sua firmeza. Respirei pausadamente por alguns segundos. Imaginando estar a salvo, virei em direção ao altar.

Para minha vergonha as pessoas que tanto busquei estavam todas ali, seus olhares silenciosos atingiam-me como punhais envenenados. Cada um daqueles rostos me era familiar, sabia que os conhecia embora não soubesse mais seus nomes.

Sem jeito caminhei tentando alcançar os fundos da igreja, lá resguardaria minha vergonha. Contava com o perdão do vigário e quem sabe teria até algo que me cobrisse, temia ser taxado como um desses loucos com taras por gente morta.

Próximo ao altar havia um corpo a ser velado, o caixão bem simples cercado por coroas artificiais. Caminhei corado de vergonha, prestes a cruzar com o defunto uma luz muito forte clareou a sala me cegando por completo, senti meu corpo flutuando até sofre um forte baque com o chão.

...

A velha rezadeira não dava muita atenção ao relato que acabara de ouvir. Seus olhos de peixe morto fitavam o vazio. Sobre uma esteira de bambu manchado pelo tempo alguns búzios contavam outra história.

A fumaça do charuto barato misturada ao fedor de cachaça alertava-me do erro cometido, não acreditava como me deixei prestar este papel, como acreditar nestas lorotas de benzedeiras espirituais.

A velha tossiu umas três vezes, seu peito vibrou em espasmos grotescos.

- Sunçê tá cum praga, sô minino!

A voz arrastada não era a mesma da senhora que me recebeu, outra pessoa de um tempo longínquo tomava seu lugar.

- Tem coisa ruim encostada noçê! Cê já sabe qui tem qui fazê. Os cachorro tá vino te buscá. Sunçê tem qui pagá tudo qui deve. A noite tá chegano dipressa... hum... hum... hum...

...

A velha hedionda só me trouxe mais apreensão, meus erros cobrariam seu preço. Sim, eu sabia do que ela falava, não adiantava fingir inocência. Retroceder era a única opção, devia voltar ao passado, rever minhas origens, encarar aqueles rostos que se esvaíram no tempo.

Voltei para minha terra natal de onde por muitos anos nem queria falar. É estranho como fui forçado a realizar tal viagem, o sentimento era um vazio melancólico de alguém que acaba de ser pego roubando doces na mercearia.

Bom Jardim é um lugar pequeno, quase todas as pessoas são parentes ou conhecidas, se passaram quase trinta e cinco anos e muito pouco havia mudado, a igreja da praça principal estava exatamente como me lembrava, o ipê amarelo a seu lado floria acentuando ainda mais toda aquela beleza pitoresca, a pequena farmácia com seu proprietário vigiavam para que ninguém pisasse nas flores.

Parei sob a sombra de uma sapucaia, não queria ser reconhecido, poderia voltar dali mesmo e pela segunda vez deixar o passado se perder. Sem coragem, estático via o tempo fluir até que incomodado pelo calor segui rumo ao lugar onde cresci. Não tinha a menor idéia do que iria encontrar.

Dois rapazes conversavam na beira da estrada, perguntei como chegar à casa do Chico Boiadeiro, temia qualquer tipo de resposta, pois nem sabia se meu pai ainda estava vivo ou se morava em nossa antiga casa. Indicaram o caminho que por anos percorri em direção a escola, a nostalgia e remorso corroíam meu peito.

Da porteira vislumbrei a mesma, porém mais decadente morada, a cerca de arame farpado suplicava retoques, os pés de laranja à muito secaram, o mato ameaçava invadir a pequena varanda onde um velho com seu chapéu de palha mirava o horizonte sonhando com tempos melhores.

Setenta e três anos e meu pai estava ali, as lágrimas escaparam sorrateiras. Tive medo.

- Vamos chegar. Gritou do alpendre.

Limpei o rosto ocultando meus sentimentos. Subi os degraus esperando ser reconhecido.

- Boas tardes. Cumprimentou tirando o chapéu.

Parei com desejo de me jogar a seus pés pedindo perdão. Notei que em seus olhos já não existia vida, cego pela idade jamais veria meu rosto.

- Qual sua graça?

Falei meu nome sem dizer quem era. Ele me convidou a sentar querendo saber quais negócios me levaram a sua porta.

- Recordações. Foi minha única resposta.

- Há muitos anos morei por aqui. Completei.

Conversamos por um bom tempo, falei sobre minha vida no Rio, das viagens, de como consegui uma boa posição na empresa onde trabalho, das alegrias e tristezas. Ele recordou os tempos antigos, uma época onde tudo era mais simples e a felicidade seria encontrada na próxima curva do caminho.

- E a família do senhor? Onde estão?

- Tenho família mais não. Morreram todos!

- E os filhos? Por onde andam? Queria iniciar o assunto, mas a idade parecia ter-lhe roubado estas lembranças.

- Meu filho. Coitado. Vingou não. Era um menino muito fraquinho, até tentou me ajudar na lida de casa, mas Deus o levou.

- Como foi? Queria saber qual história meu velho havia criado.

- Moço, meu menino perdeu a mãe muito cedo, criei ele sozinho, uma criança triste correndo atrás dos bezerros. Num dia demorou a voltar, encontrei ele no curral, as vacas pisaram em cima dele. Morreu em meio à lama.

- E a mãe dele, como foi?

- Lilica, era minha sobrinha, moça bonita, mas muito doente. Ela também não enxergava, só que era de nascença. Quando seus pais morreram ela veio morar comigo. Ai, abusaram dela. A menina nem tinha idade de ter filho. Largaram ela com a criança na barriga. Eu fiz o que pude enquanto ela definhava. Acabou pele e osso.

Já não conseguia guardar os soluços, a história da minha vida, dos meus crimes caia sobre mim como gotas de chuva incandescente.

Quando jovem tinha meus sonhos que com muita luta se realizaram. As viagens, comidas finas, roupas de grife e boas companhias tornaram-se efêmeras, perderam o sentido, o que sobrava era a constante fuga do passado que me guiava por trilhas tortuosas terminando sempre em frustração. Fugi para ter um futuro, temia que aquelas pessoas roubassem meus sonhos, dificultassem minhas conquistas e por mais que seguisse adiante, a sensação que algo me perseguia era constante, uma sombra me espreitando, farejando, se esgueirando disposta a me atacar.

Talvez o inferno se apresente de varias formas, possa ter criaturas com tridentes em meio a chamas devastadoras, talvez tenha corpos mutilados presos a aparelhos sinistros, mas este era meu próprio inferno. Aqui se faz, aqui se paga, como tantos cansam de dizer.

Quando abri meus olhos, estava cercado por pessoas da minha infância, meus amigos da escola a tanto esquecidos, vizinhos matutos com suas caras de reprovação. Por instantes não entedia a situação até que um homem seminu invadiu a capela vindo em minha direção. Tentei erguer-me do caixão.

Antes que a sala fosse tomada por uma forte luz, já sabia por tudo que o rapaz iria passar, tinha perdido as contas das vezes que chorei ao rever meu pai, por mais que me arrependesse, tão cedo o circulo não se romperia. Resignado, me entreguei a meu suplício.

Tema - cemitério, animais, inferno

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 31/08/2018
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