Prisioneiros no espelho

Minha avó dizia que na pequena cidade do interior em que ela viveu quando criança, quando alguém falecia era comum todos na vila cobrirem os espelhos com panos. Desta forma, quando o espírito transitasse pelos próximos sete dias, ele não perceberia que estava morto ao não ver seu próprio reflexo.

Certamente que em minhas andanças por aí investigando fenômenos paranormais, eu jamais pensei que me encontraria no meio de tal situação.

Dessa vez a irmandande me enviou para uma cidade menor de agricultores na Romênia, chamada Brasov. Algumas horas de carro após aterrisar em Bucharest até chegar lá, e me senti dois séculos atrás do mundo moderno.

Durante escavações no lugar, caixões antigos foram descobertos próximos ao convento há anos abandonado, alguns deles do século XVI. Com estes caixões, livros antigos também. Grimórios e tratados de magia dos antigos lordes do local, que foram enterrados junto com seus donos.

Meus companheiros me avisaram que magia negra ainda era comum por lá. Herança dos antepassados. E de fato, eu reparei muitas pessoas utilizando-se de encantamentos menores, como escrever a letra hebraica SHIN no batente da porta para afastar presenças negativas como diz o livro de Salomão.

Fomos recebidos pelo velho senhor que há mais de trinta anos tomava conta do acervo histórico da cidade em um pequeno museu próximo ao centro da cidade. Com um forte sotaque romeno, ele nos recebeu muito bem e com um delicioso café. Estávamos em uma instalação pequena e antiga, com um leve cheiro de bolor.

- Tomem o tempo que precisarem – prosseguiu o senhor.

- Nestes trinta anos encontrando coisas neste lugar, existe algo que o senhor não viu? – brincava meu colega.

O velho senhor parou, olhando para sua caneca. Hesitou por um instante e por fim disse, com um leve senso de humor:

- Um dia normal.

Todos rimos.

Após algumas horas checando o material descoberto, meu relatório não apontava nada de muito particular. Muitas coisas eram ramificações da Goécia, já muito estudada pela nossa ordem. Outros, coisas não tão funcionais como sabíamos hoje em dia, mas não menos interessantes pelo valor do tesouro histórico. Foi aí que meu colega me chamou de volta para a terra, longe dos meus pensamentos. Ele havia encontrado algo realmente interessante.

Eu e meu companheiro de investigações vínhamos procurando nestes últimos oito anos um tratado muito específico, sobre invocações utilizando espelhos como portais. Basicamente, muitas sociedades herméticas continuam utilizando espelhos para rituais ou iniciações. É o caso de ordens como a Rosacruz, por exemplo. Ordens de ramificações templárias também. De fato, este tipo de arte mágica inspirou diversos autores e fábulas. E lá estava ele. Uma cópia diretamente da fonte que estávamos procurando. Algumas páginas estavam danificadas, mas podia-se ver a clareza dos detalhes e das explicações.

Fomos para o hotel com aquele livro na mesma tarde e estudamos ele por horas. E foi aí que surgiu a idéia. A que nunca deveríamos ter tido e que a irmandade jamais aprovaria. Estávamos tão ansiosos pelos resultados daquela informação que vínhamos procurando por tantos anos, que decidimos executar um dos encantamentos descritos no livros. O encantamento se chamava Obscuri Lateris, literalmente traduzido como “O lado obscuro”.

O encantamento era simples. Nas primeiras três horas do cair da noite, uma vela posicionada ao lado esquerdo do espelho deveria ser acendida. Uma tina do lado direito receberia nove gotas de sangue de sua própria mão, e um pentagrama de cabeça para baixo deveria ser desenhado com este sangue no espelho, acima do reflexo de sua testa.

Com a palma da mao direita em cima do pentagrama desenhado, os dizeres seriam proferidos:

“Venire ventus venire, Libertatibus perierat et ignaro in speculum ad imperium”

E assim fizemos. Mas nada aconteceu.

- Acho que precisamos estudar mais – Ria meu companheiro.

- Bom, deixemos para amanhã. Ou para quando voltarmos.

Meu companheiro se retirou do banheiro onde o espelho estava para seu quarto. Eu abri a torneira e comecei a limpar tudo, que estava começando a virar uma meleca. Foi então que senti algo diferente no meu reflexo. Olhei de canto de olho, com dificuldades pela escuridão, sendo a vela o único ponto de luz.

Não era mais o meu reflexo. Ainda era a minha aparência, mas olhava para mim através do espelho, com um leve sorriso perspicaz. Curvei meu corpo e minha atenção totalmente ao espelho. Foi então que percebi que meu reflexo virava a cabeça diferentemente de mim. Meus olhos não eram os mesmos. Eles cintilavam uma espécie de verde diferente. E tinha total atenção em mim. Meu reflexo me analisava. Em menos de um segundo, me virei para chamar meu colega. Não consegui terminar a primeira vogal. Mãos saíram de dentro do espelho, rapidamente. Mas não eram minhas mãos. Eram compridas e totalmente brancas, com cicatrizes, manchas de sangue e dedos e unhas muito grandes. Uma das mãos pegou a parte de trás da minha cabeça com força, levando minha testa contra a parede em um único golpe. Ainda desorientado da pancada, tentei me virar de novo e eis que um segundo golpe novamente levando minha cabeça contra a pequena pia do banheiro. Caí no chão, vendo aquelas mãos compridas com aquelas unhas avermelhadas enormes começarem a sair de dentro do espelho grudando-se na parede. Então vi seu rosto. Não tinha olhos. Não era humano. Tinha presas enormes. Estava agora engatinhando na parede lateral e olhando pra mim, grunhindo. Eu não conseguia falar. Ela pulou em mim, urrando, como uma criatura atacando a sua presa. Antes que ela chegasse, eu apaguei por conta das pancadas.

Quando acordei, sentia a dor fortíssima na minha cabeça. Tentei levantar. Tudo era escuro. Havia uma única luz, um pouco distante. Caminhei, ainda que com dificuldades, até aquela luz fraca. Era uma espécie de janela. Olhei pela pequena janela. Era um banheiro. Eu conseguia ver logo abaixo da janela uma pequena pia suja de sangue. Espere um minuto! Era o meu banheiro! Eu estava do outro lado!

Eu estava acabando de entender o que aconteceu, quando meu corpo surgiu em minha frente, do outro lado. Olhava para mim, com o mesmo sorriso. Meus olhos eram negros. Ele começou a rir. Eu batia naquele vidro, mandando ele me soltar, esperar! Ele apenas virou as costas e saiu.

Eu agora havia entendido o que era este encantamento, porém, muito tarde. Meu corpo está possuído por algo de outra diemensão, e eu estou na dimensão dele. Não sei por quantos milênios ficarei aqui, não sei quando alguém abrirá outro portal. Também não me lembro quanto tempo atrás isto aconteceu. Sigo vagando na escuridão completa desde então e repetindo esta história em voz alta para caso alguém esteja me ouvindo, esperando que outra pequena luz apareça para que eu peça ajuda.

Minha avó também dizia, não brinque com o que você não conhece. Embora eu tenha dedicado toda a minha vida como parte de uma irmandade milenar que investiga e controla a atividade paranormal em nosso mundo, sempre haverá algo desconhecido.

Alguém pode me libertar?

Marcello Morettoni
Enviado por Marcello Morettoni em 12/09/2018
Reeditado em 18/09/2018
Código do texto: T6446230
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