RITUAL

Era uma noite fria e chuvosa. Jogávamos cartas, entre risos, quando escutamos uma forte batida na porta. Daniel e Tom viraram-se, enquanto eu apenas levantei a cabeça num gesto rápido. Por um momento, fez-se silêncio absoluto na casa. Embalados pelo som da chuva, ficamos na expectativa de algum sinal. Mais um batida na porta, dessa vez tão forte que o som ecoou por toda a residência. Tom, o anfitrião, jogou as cartas na mesa e se levantou rapidamente, com o semblante aborrecido. Mal deu um passo e foi interrompido por uma pancada forte. E outra, e mais outra. Alguém batia incessantemente na entrada, de forma desesperada. Tom parou de se mover, assustado. Olhou para nós com um olhar de medo e estranheza, sem entender o que estava acontecendo. Encolhido nas cadeiras, eu e Daniel não estávamos muito diferentes, igualmente assustados. Do lado de fora, escutamos um grito.

- Abram, por favor! É caso de vida ou morte!

Tom ainda recuou um passo, mas logo compreendeu o que se passava, correndo para a porta. Eu e Daniel assistíamos a tudo com a atenção de um leitor fanático que se aproxima do clímax de alguma história. Mal Tom deixou o estranho entrar e o mesmo saltou para dentro, caindo de joelhos no meio da sala de estar. Estava ensopado pela chuva, e percebemos como estava assustado. Levantei de meu assento e me aproximei do homem, sem saber direito como agir.

- O que se deu rapaz? – Perguntei – Por que se encontra em tal inquietude?

O homem levantou a cabeça e me olhou nos olhos. Notei um filete de sangue que escorria por sua têmpora esquerda. Por um momento, tive náuseas.

- Minha mulher, lá fora! Morta! Está morta!

A força de tais palavras chocou a todos no cômodo. Por alguns segundos reinou um silêncio de morte. O ruído da chuva era agora um eco esquecido. Parados em pé, em volta de alguém caído por seu próprio desespero, tal cena mais parecia uma ciranda feita para um ritual macabro do que o resultado de um acidente qualquer.

Foi tudo realmente rápido. Em tais situações, demora-se a entender por completo o que está acontecendo. Apesar disso, ainda se pode agir. Tentando manter a calma, pedi para Tom que trouxesse um copo d’água para o pobre homem, que chorava. Daniel se abaixou e tentou acalmá-lo, sem sucesso. Virei-me e logo vi a porta aberta. O que poderia ter acontecido para ser motivo de tal desespero? Olhei para o homem e em seguida para a porta, sem saber o que pensar. O barulho da chuva voltava à minha mente.

Devagar, me dirigi até a porta e sai da casa. A chuva ainda estava forte e não havia lua para iluminar nada. A rua estava vazia, encurralada por uma mata densa. Por um momento, senti-me numa estória de horror. Na rua não havia qualquer veículo estacionado, também não se via nenhuma mulher. Para falar a verdade, na rua não havia ninguém. Teria o homem saído da mata? Seja o que for, era um caso bizarro. Entrei na casa e fechei a porta atrás de mim, para impedir que pingos de chuva molhassem o tapete da sala.

Daniel estava sentado no sofá com o desconhecido, que segurava um copo vazio nas mãos. Tom havia se acomodado em uma poltrona. Na sala, o silêncio era total.

- Onde está sua mulher? - Perguntei.

O desconhecido me olhou os olhos e me encarou por vários segundos. Estaria ele traumatizado? Era o mais provável. Sem saber como reagir, fiquei parado. Do nada, o homem se levantou e caminhou, com passos lentos, até a porta. Nós três fomos atrás, esperando que ele falasse alguma coisa. Ao chegar perto da entrada, o homem parou e se virou para nós. Paramos, estatelados, com um medo cuja causa era até então desconhecida.

O homem começou a mexer as mãos, lágrimas rolando por sua face. Foi um dos momentos mais estranhos que já presenciei em minha vida. Senti que, após esse dia, aquele homem sempre atacaria minha memória, fossem dez, quinze, ou vinte anos depois.

Tão rápido quanto um flash, o homem soltou o copo, que se espatifou no chão, decorando a entrada com seus pedaços. Ficamos sem reação. Mal se passaram dez segundos, o desconhecido levantou o braço. A luz que vinha da lâmpada da sala iluminou um revólver. A arma tremia na mão nervosa do desconhecido. Por um segundo, o tempo parou. Uma arma? O que ele estava fazendo com aquilo? Seria um assalto?

Não tive tempo de raciocinar mais. Sem conseguir mexer um músculo, só pode olhar nos olhos daquele que ameaçava minha vida. Um arrepiou percorreu-me a espinha. Os olhos baços transmitiam tudo, menos calor humano. A visão de sua face entrou pela cabeça como uma facada. Aquele homem era um louco.

Escutei dois tiros e me joguei no chão, com medo de ser atingido. Na minha mente, o rosto do louco ainda se mostrava presente. Só conseguia pensar em meus amigos e se eles haviam se ferido. Os tiros cessaram tão rapidamente quanto começaram, e tudo ficou em absoluto silêncio. O som da chuva agora se competia com meus gemidos de horror.

Tive certeza de que aquela seria a última noite da minha vida. Parei de tremer, mas ainda não abri os olhos. Se a morte era certa, não adiantava mais lutar. Com uma conformação forçada, esperei minha hora. Porém, nada aconteceu.

Fiquei assim por quase dois minutos, deitado, com as mãos na cabeça e de olhos fechados, sem entender o que tinha acontecido. Em quem o homem atirou? Fomos vítimas de um louco, um maníaco?

Não sentia dores em nenhum lugar, o que me avaliou por um instante. Só conseguia pensar em Tom e Daniel e se eles estavam bem.

De repente, senti alguém me chutando. Uma dor horrível atacou minhas costas.

- Anda! Levante-se seu pedaço de merda!

Levantei a cabeça. Vi, na minha frente, Tom e Daniel, ambos caídos, bem em cima de uma poça de sangue. Fiquei sem ar. O horror que se apossou de mim foi como um tiro na cara. Tentei gritar, mas nada saiu além de grunhidos incompreensíveis. Senti outro chute.

- Levante-se! Canalha!

Era a voz do desconhecido. Até agora, só conseguia pensar na morte. Com medo, me levantei. Na minha frente, o desconhecido, agora com a arma apontada para a própria cabeça. No seu rosto sujo de sangue, o olhar de um louco.

- Consegui! – Gritou. – O ritual está completo!

Dei um passo para trás, com medo de morrer. De repente, uma risada estrondosa tomou conta da casa. Escutou-se mais um tiro. O desconhecido caiu na minha frente, morto. Pelos dez minutos seguintes, só consegui gritar. Lá fora, a chuva caia incessantemente.

Brenno Lima
Enviado por Brenno Lima em 29/09/2018
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