HORA EXTRA

O sol mal tinha anunciado a sua presença e ele já estava de pé. A distância para o trabalho era um combustível eficiente a impulsionar sua vontade nas noites mal dormidas regadas a café e apostilas de estudo. O segundo maior sonho que nutria em seu peito era o de ser aprovado em um concurso público, e assim apagar as mazelas que lhe afligiam a alma de uma maneira perversamente dolorida. Além de proporcionar-lhe condições para aplacar as dívidas, terminar a casa em construção e, quem sabe, ampliar a família, este sim o desejo mais intenso que ardia em sua alma.

Como todas as manhãs, ele colocava as rodas da motocicleta na rodovia federal rogando para que os únicos desafios de seu caminho respondessem pelas crateras sinuosas daquela via mal cuidada, visto que, por mais de uma vez, teve de agradecer aos céus por ter escapado das atividades de indivíduos mal intencionados que frequentemente fechavam a estrada visando atitudes ilícitas. Vítimas da sociedade, diriam uns. Uma ova! Eles eram a escória em forma de gente, era o que pensava. Na mais recente ação dos bandidos, da qual fora vítima, uma pedra de dimensões consideráveis fora arremessada contra o para-brisa do veículo que conduzia e por pouco não ferira com gravidade sua esposa que estava postada no banco do carona. Só de pensar em tal possibilidade, seu sangue fervia. Ele não aguentava mais a onda de violência que cercava seu ir e vir.

Mas, apesar de todo o prognóstico ruim, o único inconveniente que lhe assaltara o percurso naquele começo de manhã fora o de testemunhar um acidente na via, algo trágico, mas que infelizmente representava um episódio corriqueiro na dinâmica do dia-a-dia que vivia.

Não demorou muito para que ganhasse as dependências da grande ponte que ligava sua região à capital do estado. Do vão central da gigantesca serpente de aço e concreto, ele enxergava com melancolia os navios que, como pingentes, enfeitavam o espelho d’água da baía. Houve um tempo em que sua vida seguia de mãos dadas com a estabilidade, na época em que trabalhava num grande estaleiro e o futuro lhe oferecia um sorriso franco. No entanto, a infame recessão tomou-lhe os sonhos e o emprego, fazendo-o resignar-se com uma ocupação medíocre para sobreviver e apostando todas as suas fichas nas incontáveis jornadas de estudo. Definitivamente, olhar diariamente para aqueles navios não lhe fazia bem. Torceu o punho direito como se o ato de forçar a manopla representasse uma esganadura simbólica naqueles que o faziam sofrer.

A motocicleta rasgava o asfalto ziguezagueando por entre os veículos como se estes não existissem. A velocidade andava de mãos dadas com a fé. Esperança de que a estrutura mecânica sustentasse sua vida, ele ainda se lembrava do prejuízo financeiro que tivera semanas antes, quando as engrenagens e canelas da máquina sucumbiram no mesmo local por onde passava naquele instante, no sentido contrário. Por pouco o dano não se estendera também a ele próprio. A sorte não lhe sorriria para sempre, pois ainda se lembrava do grave acidente que sofrera, onde, por intervenção divina, não perdera a mão, as cicatrizes nunca o deixariam esquecer.

Mas nada de ruim lhe acometera e, com o pensamento longe, chegou ao seu destino. E, ao estacionar, teve de engolir em seco a frustração e ignorar o gosto amargo que ela deixava ao descer pela garganta. “É por pouco tempo”. “É por pouco tempo.” Repetia para si mesmo como um mantra, esforçando-se ao máximo para acreditar nas próprias palavras.

Já dentro do escritório, as horas se arrastavam, como era comum em todos os dias, mas as tarefas odiosas não eram nada quando comparadas às pessoas com as quais tinha de lidar. Ele detestava cada uma delas. Talvez, e somente talvez, se aquele lugar fosse povoado por lideranças mais sensatas, até que seria um ambiente menos hostil. Mas ele sabia que nada disso seria possível e a única coisa que amenizava suas considerações era o correr dos ponteiros do relógio, uma jornada que estava quase no fim.

Quando já se preparava para sair, teve seu trajeto interrompido pela voz arrastada e irritante de seu chefe direto. O velho, de rosto sulcado e dentes amarelados, lhe indagava, com toda a ironia do mundo, aonde ele pensava que iria. O rapaz, com a sinceridade que lhe era peculiar, tentou explicar, o mais calmamente que podia, que seu expediente já havia terminado e que, especialmente naquele dia, precisava sair impreterivelmente no horário, pois o aniversário de casamento o impelia a chegar cedo em casa.

O velho gargalhou ao ouvir o que ele considerava tamanha afronta. Apenas uma pilha de afazeres era o que ele teria para comemorar, nada além disso. Inconformado, porém sem ter o que fazer, afinal as contas não se pagavam sozinhas, ele teve de ceder ao descabimento do velho. O miserável parecia sentir prazer com o descontentamento alheio, ele exalava uma aura maligna, algo que o rapaz não conseguia definir exatamente o que era, mas que se fazia presente em seus gestos e palavras, e até mesmo ao seu redor. E, antes de fechar a porta do escritório, enclausurando o pobre rapaz como num mausoléu, ele disse, em resposta à pergunta feita instantes antes: “Você quer uma folga, terá uma folga”. E saiu, tossindo e pigarreando, deixando para trás um rastro de veneno e desprezo.

As palavras do velho ainda ressoaram por um longo período na cabeça do rapaz. Ele olhava para a grande vidraça, que fazia as vezes de janela, naquela sala que mais parecia um contêiner. A noite já havia caído, e seus olhos demoraram a perceber a tempestade que se formava para além da copa das árvores. Quando veio a si, o céu já havia se tornado um manto de trevas e água e um calafrio percorreu-lhe a espinha quando um relâmpago acendeu por uma fração de segundo a escuridão externa e, ele podia jurar que a parede envidraçada refletira uma imagem a qual supostamente estava às suas costas.

O susto o levou ao chão. Seus olhos amedrontados perscrutaram o espaço onde supostamente haveria alguém, mas nada havia, além das placas pálidas que compunham a parede. Ainda no solo gelado, ele teve vontade de sair daquele lugar, ir embora para os braços que lhe aguardavam em casa, mas, ao mesmo tempo, sabia que o passaporte para a liberdade passava pelo crivo das tarefas finalizadas.

Numa tentativa apressada de se recompor, ele ajeitou-se na cadeira, colocando-se à frente do computador. Suas mãos trabalhavam de modo eficiente, logo o trabalho ocupou sua mente, fazendo com que se esquecesse dos devaneios. Mas a dormência nas inquietações não perduraria por muito tempo. A repetição e a monotonia arrastavam suas pálpebras para baixo, e num estado de letargia ele teve a impressão de que órbitas avermelhadas se destacavam por entre os dígitos na tela luminosa à sua frente. Desperto ele gritou, e seu grito encontrou resposta num outro ainda mais estridente, um som que ribombava nas paredes térmicas da sala e arranhavam seus tímpanos. Em desespero ele tentou proteger os ouvidos com as mãos, mas o amparo de pouco adiantou e filetes escarlates escorriam pela pele de seu rosto, misturando-se ao suor de pavor que brotava em seus poros.

O desespero moveu suas pernas e ele decidiu que não poderia ficar mais naquele lugar. No entanto as luzes se apagaram no exato instante em que ele tocou a maçaneta da porta, a qual, temperamental como se tivesse vida própria, negou-lhe a passagem para a segurança. O acesso salvador estava inexoravelmente lacrado.

Com raiva ele socava a folha amadeirada numa tentativa vã de livrar-se da prisão ou, ao menos, de chamar a atenção de alguém. Mas a empresa estava vazia, nem mesmo a guarita dos seguranças parecia ocupada. Lá fora o mundo desabava num oceano vindo dos céus. Dentro da sala, a escuridão era total, mas, ainda assim, ele jurava que uma sombra, ou algo semelhante, se formava lentamente na parede defronte à sua posição. Mas como poderia haver sombra sem luz? Talvez tudo aquilo não passasse de uma ilusão causada pelas suas frustrações e cansaço. Quem sabe a loucura não o estivesse dominando.

Não. Ele não poderia estar louco. Uma sombra de fato ganhava corpo e contornos humanos na exata posição onde ficava a mesa do velho. O olhar de rubra perversidade novamente se mostrava, mas dessa vez de forma direta e incisiva, abrindo mão de subterfúgios ou reflexos. Longos braços se projetavam em cada uma das paredes laterais, como se preparasse um abraço homicida. O rapaz, encurralado pelo próprio desespero, atirava todos os objetos que encontrava pelo tato, de modo que grampeadores, calculadoras e latas de lixo chocavam-se contra a parede demoníaca. Mas, como causar dano a algo imaterial? A retórica não lhe permitia divagações, pois ele tinha absoluta convicção de que o contrário com certeza era mais do que possível, era certo.

E, temendo pelo encontro inevitável com aquelas garras disformes, ele se arrastava pelo chão em busca de um abrigo imaginário, quase sem forças lutava para se erguer e forçar a porta. Os gritos demoníacos continuavam. Intermitentes e cruéis. Frios e pontuais. E como sanguessugas etéreas, eles minavam o líquido precioso de seus olhos, nariz e boca. Ele sentia o fel rasgar sua garganta de dentro para fora. O pulsar acelerado de seu coração era audível em qualquer canto da sala. Ele queria gritar, mas naquela altura sua voz era algo tão morto como ele mesmo estaria, antes mesmo que os grifos obscuros retalhassem a sua carne.

Quase sem vida ele tombou, batendo a cabeça na quina da própria mesa. Quase, pois uma ínfima nesga de energia ainda lhe preenchia. Uma vivacidade que esvanecia lentamente, oferecendo um tempo mais do que suficiente para que seus olhos vidrados ainda pudessem enxergar uma silhueta que não lhe deixava dúvidas, mas se elas se fizessem presentes, o som sufocante de uma tosse cultivada por doses insanas de nicotina trataria de dissipar.

Na manhã seguinte, um feixe luminoso, mas ainda tímido, lançava sua presença pelo vão envidraçado da sala. No assoalho, um corpo sem vida repousava numa poça de vermelho intenso.

A maçaneta da porta girou sem qualquer dificuldade e o velho ganhou o recinto acompanhado dos outros dois funcionários do departamento. Indiferente, ele olhou para o cadáver estirado no chão e apontou para uma das paredes laterais. “Ali! Disse entre pigarros irritantes. Tem um vazamento de água por ali. De certo, o infeliz escorregou, bateu a cabeça e morreu”.

Sem qualquer cerimônia, ele passou as pernas por sobre o corpo do funcionário morto e tomou assento em sua poltrona. Com um semblante de indignação, ele olhava para os outros que permaneciam estatelados no vão de entrada. “Estão esperando o que? Entrem de uma vez! Temos muito trabalho atrasado que o outro não deve ter feito. Pelo menos, agora ele tem a folga que tanto queria...”.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 02/11/2018
Código do texto: T6493017
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