CICATRIZES

Tony quicava a bola com a mão direita, seu olhar estava concentrado ao espaço imediatamente a sua frente. Entre ele e seu objetivo estava Marcelo, com os braços erguidos, exibia um semblante fechado, com o qual dizia de maneira clara: por aqui você não vai passar.

O rapaz, tendo pleno domínio sob a esfera laranja, sorriu para si mesmo e insinuou um movimento para o seu lado direito, para, em seguida, girar em torno de si mesmo e saltar, erguendo o braço. A bola, no voo para a qual fora criada, seguiu seu destino e tocou na tabela, rodopiou sobre o aro e caiu cumprindo seu objetivo.

No entanto, numa descompassada ânsia de defesa, o cotovelo direito de Marcelo atingiu com violência o rosto de Tony, abrindo instantaneamente seu supercílio esquerdo, jogando-o de encontro ao piso cimentado da quadra.

- Tony! Tony! Você está bem, cara?

- Ponto! Foi ponto – limitou-se a responder o rapaz com o rosto ensanguentado.

- Ponto é o que você vai precisar – replicava Cláudio, outro integrante que, juntamente com Caio, formavam o quarteto que disputava a partida amistosa de basquete.

Os amigos, que cresceram juntos, procuravam manter o contato através de encontros semanais no complexo esportivo na praça do bairro. Toda sexta-feira, às dez da noite, o aparelho portátil de som era ligado e o rock nacional dos anos oitenta embalava as animadas partidas que celebravam a amizade do grupo.

- Com certeza você vai precisar de uns três ou quatro pontos, Tony – dizia Marcelo, enquanto limpava o vermelho do rosto do amigo, posicionando uma bolsa de gelo no local.

- Vai ficar uma bela cicatriz, meu camarada – disse Cláudio entre risadas.

- Eu não tenho nada contra cicatrizes – interferiu Caio – as marcas que sofremos nos lembram das experiências que passamos.

- Isso é verdade – concordava Tony – essa aqui vai ser mais uma para a coleção. Mas a que mais chama a atenção é essa aqui.

O rapaz, mesmo com a testa latejando, colocou-se de pé e mostrou uma enorme cicatriz na região do abdômen.

- Dessa aqui vocês se lembram – disse apontando para a grande marca em forma de centopeia.

Com certo entusiasmo, Tony relatou a experiência que vivera na pré-adolescência, onde sobrevivera a uma infecção gravíssima durante uma operação de apendicite, onde a bolsa purulenta se rompeu e foi necessária a retirada das “tripas”, como costumava dizer, para a lavagem.

Fora, de fato, uma situação delicada, e Tony se orgulhava muito de ter escapado dos dedos frios e ossudos da morte.

- Eu me lembro bem disso, Tony. Sua mãe fez até promessa.

A intervenção de Marcelo seguiu-se de seu próprio relato acerca de uma cicatriz que lhe marcava o corpo. Com um sorriso triunfante nos lábios, ele retirou o tênis e a meia do pé direito.

- Estão vendo aqui? – Exibia o tornozelo enquanto perguntava – Essa marca aqui eu ganhei num acidente de moto, quase perdi a perna.

Realmente, a cicatriz era horrorosa. Tratava-se de uma marca larga e profunda, fazendo uma curva pelo calcanhar e tornozelo.

- Eu estava correndo para levar o remédio de asma para o meu sobrinho. A pressa me guiava, a urgência torcia meu punho direito. Eu estava quase chegando, já dobrava a esquina de casa, quando um cachorro cruzou meu caminho. Com uma manobra dominada puramente pelo reflexo consegui desviar do cão, mas não sem consequências. A roda dianteira chocou-se com violência contra o meio-fio, fazendo com que eu fosse lançado no ar. Para meu azar, caí num bueiro com a metade da tampa de ferro fundido quebrada. As arestas afiadas trataram de deixar essa bela lembrança na minha perna. Pelo menos, o remédio chegou a tempo, o resto é história.

- Essa teve uma boa justificativa, hein, Marcelão – comentou Cláudio - mas deixem-me mostrar a que tenho. Vejam!

O rapaz tirou a camiseta e mostrou uma cicatriz esguia na omoplata direita.

- Isso aqui eu ganhei por tentar fazer uma boa ação. Na época da faculdade, estava no ponto de ônibus à noite, cansado, quando um pivete armado com um canivete tentou levar a bolsa de uma menina que também estava no ponto. Interferi e consegui evitar o roubo, mas não antes de ser atingido nas costas por aquela lâmina. O moleque fugiu e fiquei com doze pontos de lembrança.

- E você, Caio, o que tem pra nós? – Arguiu Cláudio, ao fim do relato.

- Como eu disse antes, todas essas cicatrizes são resquícios daquilo de vivemos, de tudo que sofremos. No entanto, algumas marcas vão além da superfície de nossa carne, nos atingindo a alma. Algumas nos deixam memórias que simplesmente são impossíveis de serem ignoradas, não apenas em momentos como esses, mas a todo instante, durante toda a vida.

Todos estranharam o tom melancólico do amigo, mas antes que pudessem questioná-lo, ele também retirou a camisa, a qual, diferentemente da dos demais, exibia mangas.

De longe, a cicatriz que tomava todo o ombro esquerdo do rapaz era a mais repulsiva. Parecia uma sucessão de marcas de queimaduras profundas e intercaladas. Ressequidas e arroxeadas. Após um instante perturbador de silêncio, Caio começou o relato.

- Há coisa de um mês, numa noite de sexta-feira como esta, já havíamos terminado o jogo e eu estava voltando para casa de bicicleta, vocês se lembram que andei um tempo vindo para cá com uma. Cortei caminho por dentro do parque e segui por aquele caminho estreito que margeia o mangue. Estava tudo tranquilo, quando senti um cheiro horrível de podre, de algo repulsivo no ar. Acelerei as pedaladas, mas não fui muito longe. Senti um impacto nas costas e caí nas águas lamacentas do mangue.

- Acho que permaneci desacordado por um bom tempo. Os galhos retorcidos da vegetação rasteira e as pedras afiadas trataram de lacerar minha pele e o sangue se misturava à lama em todo o meu corpo. Eu sentia que havia quebrado algumas costelas e sem dúvidas o braço direito.

- Levantei-me da melhor maneira que pude, e caminhei para casa mancando e arrastando a bicicleta. De fato, eu havia perdido a noção do tempo, pois não tardou para que o sol nascesse antes mesmo de eu chegar em casa.

- Minha mente sofria em inquietações, mas não pelas lacerações da queda, pois estas marcas, assim como a sensação de ossos quebrados desapareceram enquanto eu caminhava. Na verdade, o que me trazia um imenso desconforto, e ainda traz, é o que vocês podem ver: essa imensa marca no meu ombro.

Os amigos, espantados, olhavam para a cicatriz que naquele instante estava em carne viva e sangrava. Eles perceberam que sem sombra de dúvidas a marca escarlate exibia os contornos inequívocos de uma mordida, uma imensa mordida.

- Sim, meus amigos, é isso mesmo que vocês estão pensando. E, pela luz do luar sobre mim, acredito que é uma boa hora para correrem, embora eu tenha a absoluta convicção de que não irão muito longe. E não restarão cicatrizes para contar a história.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 26/11/2018
Reeditado em 28/11/2018
Código do texto: T6512667
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