ALIANÇA PROFANA - CLTS 05

Protegidos pela manhã ainda preguiçosa, dois grandes dragões voavam rasteiros pelas cercanias dos Picos Nevados. A cidade era dominada pelos opressores senhores da capital, porém muitos simpatizantes da resistência viviam ali sob o manto da inocência.

Ricardo ergueu-se em seu voo assumindo uma posição de guarda. Samuel com suas escamas azuis cintilantes ao refletirem os poucos raios solares encontrou o local de pouso. Em seu dorso, como um genuíno cavaleiro, o feiticeiro Carlos dava graças por chegarem em segurança.

Ao tocar o solo, a fera pôs-se a farejar o ambiente. Carlos desceu um pouco constrangido enquanto numa magnifica acrobacia aérea, Ricardo se metamorfoseava tomando sua forma humana aterrissando bem ao lado dos companheiros.

Os três insurgentes seguiriam a pé dali até a cidade onde comprariam cavalos e mantimentos para o resto da viagem.

A estadia nos Picos Nevados foi tranquila, eram apenas mais três viajantes desafortunados que como tantos outros peregrinavam em busca do sustento realizando os mais sórdidos trabalhos.

A parte fácil do trajeto foi concluída sem contratempo. Não muito distante, oculto entre as montanhas cobertas pela floresta gelada, seu destino era a famigerada Vila do Demônio com seus terríveis mistérios.

É quase impossível saber o limite do real e do imaginário, as histórias que o povo conta a cada minuto ganha novas palavras, nunca suaves, sempre aumentam a quantidade de corpos destroçados, mas o certo era que apenas um caminho levariam os viajantes a seu destino, a trilha pela floresta do homem morto.

Conta-se que quando as dimensões se fundiram e o Império dos Magos expandiu suas conquistas, aquela floresta era como outra qualquer, lar de animais próprios à caça e sustento de lenhadores. A Vila do Demônio não tinha este nome, era apenas uma meia dúzia de rusticas moradas aos pés de um já esquecido mosteiro que bravo resistia ao descaso.

Porém revoltosos da região, liderados por um decrepito abade numa manhã qualquer se ergueram contra a opressão, ali confrontaram a poderosa força de ocupação. Os invasores com sua vasta infantaria empurraram os rebeldes em direção ao centro da floresta. Alguns dragões guerreiros davam cobertura ao avanço inimigo. Magos em busca de simbiose conjuravam seus feitiços, caso tivessem glória em batalha, por mérito seriam os próximos à fusão com uma pobre besta cativa aumentando o contingente de metamorfos a serviço do Imperador.

As baixas eram sentidas, as desorganizadas forças rebeldes compostas por pessoas simples fartas da opressão acreditavam na proteção das árvores, no meio da floresta despistariam seus perseguidores. Foi um massacre desleal, o que deveria dar-lhes proteção revelou-se uma triste armadilha.

Do céu, em voos elípticos as feras vomitavam o fogo que ardia consumindo a madeira ainda verde, os que fugiam das chamas deparavam-se com a impiedosa infantaria, eram as chamas ou o aço do inimigo. Bravos caíram naquele dia.

Deixando a floresta devastada, os invasores rumaram à próxima conquista, o massacre estava condenado a ser apenas mais uma luta inglória.

Com a terra fumegando e o ar pesado pelo cheiro da morte, o velho abade moribundo se arrastava por entre as brasas. Mortalmente ferido, perdia um pouco de sua carne queimada pelo caminho. Aquele ser disforme, aquela criatura horrenda persistia em seu intento, recusava-se a morrer, não se entregaria tão fácil ao sedutor chamado da morte, enquanto tivesse forças seguiria adiante, mesmo tombando vencido, sua alma continuava amaldiçoando seus algozes.

Já bem longe do palco do combate, onde o ímpeto destruidor das chamas temia entrar, só o silêncio triste da derrota lhe fazia companhia, o moribundo tinha certeza que suas forças lhe abandonariam, só por milagre respirava tendo os pulmões tomados pelo fumo, mas continuava adiante como se uma voz soturna o convidasse a entrar, e ele a seguiu.

Num ponto escuro onde as copas das árvores impediam a penetração dos mais vividos raios de sol apodrecia a grande besta servido de repasto a toda sorte de vermes. O abade queria viver, ele precisava viver. Contrariando todos seus ensinamentos invocou a magia proibida dos necromantes, do seu coração dilacerado conjurou as forças da escuridão. A fera exalava o hálito hediondo da profanação, reanimada esboça vagarosos movimentos, com os olhos sem vida fitava o homem sem carnes. Duas almas num só corpo, o agonizante e o apodrecido, a simbiose jamais pensada fundia-se criando uma criatura digna de ser temida, nasceu o Dragão da Morte, o temível mestre da Vila do Demônio, para alguns era até mesmo a personificação de todas as almas mortas.

O calor das chamas ainda aquecia as entranhas da criatura recém-criada, suas asas moveram-se espalhando o ranço da morte, seu desejo de vingança impulsionava-o rumo ao exército invasor, pela primeira vez a nova criatura sairia à caça, cobraria até a última gota de sangue derramada.

Cumprida a tarefa, retornou aos seus que tombaram em batalha, sobrevoou lamentoso os corpos daqueles rudes fazendeiros arrancados à força da lida no campo para serem elevados a status de salvadores de uma nação, o triste era que jamais alguém saberia que aqueles foram verdadeiros heróis. A fera voltou a ser homem, seu corpo desfigurado, coberto de pústulas desde então passou a ser escondido por um manto surrado colhido entre os corpos mutilados. Misturando o remorso com a raiva, o abade invocou os espíritos dos caídos aprisionando-os nos antigos corpos sem vida, o exército dos mortos se ergueu sob as ordens do necromante. A floresta hospitaleira como se entristecesse, aos poucos foi se escondendo debaixo deu um denso nevoeiro. O céu, testemunha do enorme sacrilégio se retorceu em agonia a cada alma que perdia, os ventos sem rumo arrastavam as nuvens negras, quando estas se juntavam o rugido dos trovões era liberado, relâmpagos clareavam o dia que se fez noite, exceto aquela criatura monstruosa, nenhum outro ser conseguiu voar sob tais ameaças.

Cavalgando por entre as sombras das árvores, os três guerreiros mantinham-se atentos, qualquer movimento era visto como uma possível emboscada. Mesmo sendo convidados pelo mestre da Vila, eles não se consideravam seguros naquela mata de mil olhos.

O retumbar dos céus ecoava no peito do jovem Ricardo, ele não temia o oculto, sua parte dragão era indomável, porém ser pegos de surpresa seria uma desvantagem.

As sombras dançavam em silhuetas sinistras, o som da vida fora sufocado, nem insetos havia ali. Carlos sentia-se só, sem seus minúsculos aliados era apenas um mago medíocre, seu trunfo eram tais criaturinhas que sempre lhe serviram bem.

Samuel instigava sua montaria, desejava resolver logo aquele enigma, se houvesse luta, tanto melhor. Nunca foi de meios termos, se uma palavra não bastasse, então um pouco de força bruta resolvia.

Muito adiante, numa janela minúscula da torre do velho mosteiro, um rosto deformado mirava o horizonte sombrio, de perto parecia até o esboço bizarro de um grande sorriso desajeitado.

Por todo caminho, estando imersos num ambiente hostil, os viajantes experimentavam uma sensação de tranquilidade, a densa floresta encoberta pela neblina acolhia-os contrariando todas as histórias dos desaparecimentos misteriosos, das criaturas fantasmas, dos monstros vagantes, sentiam-se até bem vindos, enquanto o temor de uma possível emboscada ficava distante.

Depois de uma arrastada caminhada, as árvores tornaram-se escassas permitido a visão de uma enorme montanha, sabiam que seu destino estava bem próximo, seguiriam pela trilha as margens do riacho e logo concluiriam seu objetivo.

Certamente aquele punhado de casas caindo aos pedaços não tinha nada de acolhedor, a única viela estava quase toda tomada pelo mato, de um lado, o antigo estabulo já tinha seu teto parcialmente destruído, até ai nenhum ser vivo para recepcioná-los apesar da constante sensação de estar sendo observados.

Em outra época, o mosteiro seria uma construção bem pitoresca, possuía uma grande torre incrustada no paredão da montanha que dominava duas outras bem menores formando uma espécie de escada. Cada uma, possuía pequenas janelas insuficientes para manter o arejamento dos cômodos internos.

Guarnecendo seu bastião, uma parede de pedras coberta por trepadeiras espinhosas descrevia um semicírculo em forma de ferradura. Homens comuns teriam dificuldades em transpô-las. De baixo, dava para perceber um passadiço denunciado pelo guarda-corpo de madeira. No vórtice desta muralha, um portão esverdeado pelo musgo rangeu dando boas vindas aos viajantes.

Ao cruzar o pórtico maldito, a visão era medonha. Um pátio bem amplo se abria revelando seu misterioso segredo. Baseados naquele mosteiro, uma pequena milícia estava em prontidão. Os cavalos pela primeira vez refugaram tornando-se arredios, Carlos quase foi derrubado.

De ambos os lados, deixando livre um estreito corredor, criaturas não viventes exibiam suas armas. Corpos mutilados equilibravam-se sobre membros descanados, todos os soldados caídos ali se encontravam segundo o desejo de seu amo.

No fim daquela falange maldita, o Dragão da Morte urrou tão forte que por minutos as tempestades se calaram.

Os viajantes sabiam do perigo a ser enfrentado.

A criatura com suas asas abertas expeliu de suas entranhas um miasma assassino que em grossas colunas subiram rumo às nuvens, suas asas agitadas aos poucos foram se fechando, do seu próprio abraço se transformou em homem.

Nascia assim a aliança entre os rebeldes e os caídos.

Tema: Criaturas fantásticas