O Grito do Suhenkar

Jamais esquecerei aquela noite. Muitos acreditam que eu esteja louco. Talvez realmente eu estava. Talvez realmente aquela “coisa” afetou minha sanidade. Mas eu tenho certeza, absoluta certeza, que aquela “coisa” existe.

E foi ela a causadora dos meus infortúnios. Ela me causou esse estágio de penúria a qual vivo desde então. Vivo solitário, recluso no meu próprio canto, encoberto pela escuridão da noite e com os ouvidos selados. Faz tantos anos que nada escuto que minha sensação é que, mesmo com o ouvido descoberto, nada escutaria. Essa é a vida desde aquela fatídica noite.

E como você reagiria se visse sua mulher morrer na sua frente, sem você fazer nada?

Era idos de 19__ e não importa. Não me recordo quando foi, há quantos anos foi e nem mesmo em que ano estamos. Dormia todas as noites com minha mulher dividindo o mesmo tempo e o mesmo canto. Em uma daquelas noites, eu estava irrequieto, meus músculos tremiam involuntariamente e eu despertava constantemente.

Em dado momento, era pouco mais de três horas da manhã e minha esposa dormia calmamente ao meu lado. Ao contrário dela, eu estava demasiadamente agitado e virara constantemente na cama. Levantei-me e pus a tomar um copo de água com açúcar na cozinha.

Saí do interior do meu quarto e caminhei completamente silente até a cozinha. Retirei um pouco de açúcar, despejei no copo, enchi-o de água e tomei, sorvendo seu conteúdo de uma só vez. Senti a mistura de água com açúcar cair no estômago e deixá-lo pesado, irritado. Rezei para aquilo não me causar mais um problema para dormir.

Evitando levantar novamente, aproveitei que me encontrava na cozinha e levei um copo cheio de água para o meu quarto. Caminhei a passos largos e adentrei no meu quarto. Naquele instante, na porta do meu quarto, estremeci.

Cada parte do meu corpo acordou e cada fio do meu cabelo levantou. Saindo do espelho frontal à cama, estava “aquilo”. Chamo de “aquilo” porque não há como definir sexo. Era um ser incorpóreo diminuto, com cabeça de lagarto, asas em formato de babado saindo da nuca e ocupando as laterais da cabeça e igualmente diminutos braços reptilianos acoplados ao rosto. Fitava minha esposa, com um sorriso débil nos lábios e soltando pequenos grunhidos indecifráveis.

Ao fitá-lo, paralisei-me a tal ponto que deixei o copo de água escorregar da minha mão e ir de encontro ao chão.

Minha esposa levantou em um único salto ao ouvir o som do espatifar do vidro no chão. Olhou assustada para a porta do meu quarto e me fitou completamente paralisado olhando o espelho do quarto, à sua frente. Virou a cabeça e sobressaltou ao enxergar “aquilo”, encolhendo-se na cabeça e se protegendo com os joelhos.

O monstro, então, abriu sua pequena boca e emitiu um grito estridente. O grito parecia vindo de uma pessoa desesperada que tinha suas entranhas brutalmente rasgadas. Tampei o ouvido, mas parecia inútil. O som adentrava em meu corpo e parecia que iria congelar meu coração. O vidro do espelho espatifou em mil pedaços.

Senti meu corpo paralisar de tal forma que minha perna cedeu. Caí de joelhos no chão, com a mão no peito, rezando para sentir meu coração novamente bombear sangue e meus pulmões filtrarem o ar. Percebi, de relance, minha esposa levantando da cama. Deu alguns passos rápidos para distanciar do imóvel e passou frontalmente ao espelho quebrado – que não havia mais o ser. Pisou descalça em alguns vidros e continuou a caminhar por eles, como se nada tivesse acontecido. Caminhava com velocidade. De repente, correu.

Saiu em disparada em direção à cozinha. Atravessou o pequeno corredor, pisou nos cacos de vidro do copo e foi até a porta dos fundos da casa. Ali, parou, ao chocar-se com a porta.

Tão logo percebi minha esposa correndo, passei a correr atrás. Vi-a se jogando com força na parede ao lado da porta dos fundos. Jogava o próprio corpo com extrema violência, voltava ao solo, pisava e se jogava novamente.

Ao me aproximar dela, segurei-a. Ela virou o rosto contra mim e me fitou. No fundo do seu olhar, eu vi o medo. Estremeci todas as pontas do meu corpo e afrouxei meus músculos. Ela me empurrou na parede com violência e correu para o interior da casa. Passou a arremessar tudo o que via no chão ou nas paredes.

Eu fiquei no chão. A dor nas costas era demasiadamente pungente e me impedia de mexê-las. Apenas acompanhava o desenrolar dos fatos pelo som. Durante três minutos, minha esposa ficou incontrolável. Depois, a escutei soltar um frágil som de dor seguido de um estrondo. Criei forças e me ergui. Corri em direção ao quarto. Vi-a caída de bruços no chão. Levantei sua cabeça e mexi seus pulsos. Naquele instante, eu sabia que o monstro havia se alimentado da alma da minha mulher.