A MALDIÇÃO DO MONDRONGO Poemas Sombrios DTRL 34

Aceite-me em teu seio,

Tão ingratas horas,

Segure minha mão

Levando-me sem demora.

Nesta face sofrida

Vincada de rugas

Só a tristeza espelha

Refletindo minha vida.

Vida esta sem amor,

Morte doce

Venha logo

Aplacar a minha dor.

A virgem recauchutada declamava seus versos dolorosos enquanto dos camarotes carcomidos do antigo teatro uma sombra soturna observava. La de cima podia se ver os resquícios da imponente construção da época em que a ferrovia era sinônimo de prosperidade.

Maria Lúcia ensaiava suas falas para o espetáculo do fim de semana, certamente como em tantos outros, quase ninguém viria aplaudi-la, mesmo assim perseverava há quase quarenta anos. Desde cedo sonhava em ter fama sendo reconhecida no glamoroso mundo das artes, agora como a velha casa de espetáculos, também se tornou dispensável.

O cenário era parco, uma alcova pouco iluminada com o catre revestido de um rosa desbotado, o enorme espelho posicionado adiante era seu interlocutor quando sua voz não era direcionada aos raros espectadores, tinha também outros adereços de menor valia, nada chamava mais a atenção do que seus trejeitos caricatos e o lamurioso monologo pedante.

Esgueirando-se por passagens pouco seguras, o vulto medonho tinha total conhecimento sobre aqueles caminhos, um ou outro pedaço de madeira rangia sob seus pés, mas nada que o alarmasse, a meia luz era impossível não pisar numa tabua podre, mas seguia ágil em direção aos fundos do palco.

Uma pequena escada dava acesso a parte de cima do teatro, era tão segura quanto o resto da construção, contrariando as expectativas, Mondrongo mostrava uma grande desenvoltura.

Maria não percebeu o estranho espectador, ela nunca o via, era invisível a seus olhos mesmo quando lhe entregava as flores dadas por seu amante, isto deixava o zelador ‘faz tudo’ profundamente entristecido.

Aquele sujeito era uma criatura bem estranha, possuía um corpo opulento arqueado sobre a protuberante barriga, seus membros enormes deveriam lhe conferir certa lentidão, e assim ele se portava, só oculto da visão alheia mostrava sua verdadeira disposição.

Oh criatura vil,

Homem repugnante,

Nem tente ser gentil

Aborrecendo-me neste instante!

Mondrongo cultuava a mulher decadente acima de sua própria existência, por ela seria capaz de enfrenta o mundo.

A pontapés o grotesco apaixonado foi expulso do palco. Tudo que desejava era ser feliz ao lado da amada, mas infeliz era ele por ter tal sina. Perambulando pelos mofados corredores da casa de espetáculos que também era seu lar, mil coisas atordoavam sua mente.

Mondrongo se espremia transpondo cada fresta em direção à proteção de seu refugio, um pequeno cômodo sem janelas ou mobílias que há tempos não recebia outro visitante. No chão um emaranhado de trapos fétidos lhe servia de leito, uma jarra d’água tendo ao lado uma caneca esmaltada eram os únicos objetos capazes de vencer tantos obstáculos. As paredes escuras pela idade, ostentavam dezenas de cartazes que evocavam esplendorosos dias de glória naquela casa falida. Maria Lucia, atriz principal estampava orgulhosa aqueles anúncios.

Tinha apenas uma coisa a fazer, Mondrongo se deitou naquele monte de sujeira, fechou os olhos e gemeu. Seu corpo contorceu de dor, a expressão do rosto denunciava o desespero, do peito em agonia o vômito expulsou todo o mal que trazia consigo. Por longos minutos teve a impressão que explodiria de dentro para fora, algo maligno queria sair, o tórax fendeu rasgando até a barriga, como um casulo eclodiu deixando exposto uma massa disforme que aos pouco se aglutinava em forma humana.

O Mondrongo, a besta sem rosto tomou para si a aparência de um jovem ator que posava garboso ao lado de sua amada. Estava nu, mas sabia onde se vestir, afinal ali tinha ótimos figurinos.

A noite só começava, seus segredos protegidos por trás das portas cerradas jamais deveriam ser revelados, criaturas famintas vagavam entre humanos alienados em suas vidas pacatas. Assim deveria ser e era desde muito antes do homem começar a contar suas histórias.

Caminhando pelas ruas bem iluminadas do centro, o jovem cumprimentava de forma gentil os passantes, alguns até retribuíam, e ele seguia simpático. Suas narinas farejam o ar, os olhos percorriam os casarões, queria um pouco mais de tempo, queria um pouco mais de vida para estar ao lado de seu amor.

Numa com as luzes já apagadas, um cheiro doce lhe atraiu. Era o cheiro da infância que reacendia sua sanha, seus desejos ardiam em seu coração dolorido. Sorrateiro, invadiu o quintal certificando-se que ninguém observava, farejou o ar, desenhou em sua mente cada passo a ser dado. Localizou pelo olfato a posição de cada um dos ocupantes do recinto, estava tudo pronto.

Seu corpo maleável moldava-se às necessidades, qualquer fresta seria suficiente para uma possível invasão. Circulou pelo jardim, no segundo andar a pequena janela de um banheiro, apesar de alta era tudo que precisava. Encostou-se à parede, com movimentos rítmicos tomava outra forma, os ossos alongando e a pele esticando serpenteava em direção a seu intento. Com uma das mãos forçou o vidro que cedeu. Arrastou-se pela abertura, silencioso ganhou o interior da casa. Uma única precaução deveria ser tomada. Caminhou até o quarto do casal que dormia despreocupado, bastou um simples olhar para roubar a nova aparência. Se o marido despertasse, seria impossível distinguir o impostor. Este era o objetivo. Se a criança despertasse, sentir-se-ia segura.

O quarto ao lado estava com a porta aberta, num berço rosa enfeitado com borboletas a criança dormia.

A criatura, como uma mãe zelosa tomou a pequena em seus braços, a menina quis chorar, o Mondrongo lhe ofereceu o seio. Enquanto a criança sugava o leite materno, o monstro drenava sua existência, roubava seus anos de vida, nada muito prejudicial, de cada vítima, contentava-se com poucos anos. Este era o jeito de se manter oculto, quem daria falta de algo que ainda não possui, afinal o futuro a Deus pertence.

Saciada sua fome de vida, retornou a sua forma anterior fugindo por onde entrou. No jardim, um último crime foi cometido. Uma rosa vermelha foi roubada.

Era tarde, como tantas outras noites Maria Lúcia esperava ansiosa. Três batidas suaves na porta fizeram seu coração palpitar.

Meu gentil cavalheiro

É tão tarde, estou triste

Somente sua presença me consola

Como seu amor nada existe!

Os amantes se deitaram, porém na manhã seguinte só Maria Lúcia despertou intocada como na noite anterior, um dia de sua vida fora recuperado, teria ainda tantas outras lindas noites com seu amado enquanto o desprezado Mondrongo resignava-se em presenteá-la com uma rosa roubada.

* * *

-Mas então? Desde que entrou para o circo, você nos conta estas histórias do Mondrongo. Afinal como se mata uma aberração deste tipo? Curioso o domador perguntou.

-Não sei meu caro amigo. Acho que alguém assim morre de amor ou de tristeza. Respondeu o contorcionista olhando a foto da bailarina que agora já não mais se chamava Maria Lúcia.

Tema: metamorfos

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 30/04/2019
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