CONTÍGUO - CLTS VII

Que dizer dela? que dizer da austera consciência,

Esse espectro em meu caminho?

Chamberlain, Pharronida

     

O CENÁRIO

Certa tarde, no verão de 2016, atravessei o Campo dos Almeidas, uma extensão de terra com árvores esparsas onde o povo de Santo Amaro frequentava a primeira igreja. Hoje em dia essa zona não é mais visitada pelo povo. Até mesmo o campo-santo onde os fundadores foram enterrados não é mais visitado, desde quando o local ficou conhecido como ponto de pouso de naves de outros planetas. Resolveram então fundar um novo templo cristão e um novo cemitério dentro do corpo social.

Estava a caçar passarinhos e carregava uma atiradeira e um saco feito de pano com alguns passeriformes e pedras quando aproximava-me do local descrito. Grandes árvores, cuja parte de baixo mal podia ser vista com clareza sem os raios de sol, a tarde já estava apagada e o cenário a ficar fantasmagórico. Nunca temi os mortos e nem acreditava em seres de outros planetas. Após caminhar mais um pouco pude ver a construção embaciada, mais uns passos e fiquei diante da igreja, uma edificação pequena com imponente insignificância. Segui em direção ao campo-santo onde havia pregado ao chão pedaços de metal cruciforme.

Após inspecionar com um olhar atento toda aquela ruína decidi ficar, pois o pôr do sol já estava no horizonte e eu estava longe de qualquer lugar para abrigar-me. A construção velha poderia me abrigar, porém, era verão e a noite não era fria, antes de escurecer por completo preparei minha cama com galhos num canto da parede, ao ar livre, e fiquei a admirar o céu estrelado. Comecei a pensar na possibilidade de Santo Amaro ser visitado por seres extraterrestres. Tantas gerações passadas, "umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo", e a nossa tão notável e decadente. Tantos mistérios ainda sobre a vida além-Terra. Não sou religioso, sou leitor da Bíblia, tenho um espírito curioso, lembrei das quatro criaturas e quatro rodas vistas por Ezequiel.

"Ora, sucedeu no trigésimo ano, no quinto dia do mês, enquanto eu estava no meio do povo exilado junto ao rio Quebar, que se abriram os céus e comecei a ver visões [...] E comecei a ver, e eis que havia um vento tempestuoso procedente do norte, uma grande massa de nuvens e um fogo cintilante, e do meio dele procedia a semelhança de quatro criaturas viventes, e seu aspecto era o seguinte: eles tinham a semelhança de homem terreno. E cada uma tinha quatro faces, e cada uma delas quatro asas. E seus pés eram pés retos e a planta de seus pés era como a planta do pé de um bezerro; e reluziam como que com o brilho de cobre brunido. [...] Enquanto eu via as criaturas viventes, ora, eis que havia uma só roda na terra ao lado das criaturas viventes, junto às quatro faces de cada uma. Quanto ao aspecto das rodas e da sua estrutura, era como o brilho de crisólito; e às quatro tinham uma só semelhança. [...] E sobre as cabeças das criaturas viventes havia a semelhança duma expansão igual à cintilação de gelo que mete medo, estendida acima das suas cabeças. [...]"

Uma descrição desconcertante, Ezequiel foi testemunha da chegada de homens de outro mundo em uma máquina circular voadora? Seria a aterrissagem e manifestação de astronautas ou de robôs teleguiados? Pensando no assunto deitei-me e adormeci contemplando as estrelas, em especial uma que parecia aproximar-se.

A SONHAR

Lembro que cochilei imediatamente, pouco tempo depois acordei com um sussurro no meu ouvido, por um instante pensei que fosse um dos mensageiros de Deus a pronunciar alguma coisa no meu ouvido, não entendi o que a voz dizia e nem lembro o que sonhei, sempre tenho sono, mas somente às vezes sonho. Olhei para o céu e não vi mais a estrela destacada que antes aproximava-se, fiquei olhando, distraído, para o céu ao longe e voltei a dormir, pois ainda estava atordoado e cansado. Mas o meu sono não foi o mesmo.

Eu caminhava ao longo de uma estrada, a mesma trilha que fiz em direção ao Campo dos Almeidas, mas caminhava durante a noite e sua pesada escuridão. Não sei o motivo pelo qual trilhava. Havia um outro caminho que era estranho porque nunca tinha visto ele ali. Sua aparência era de uma senda tenebrosa, havia algo maléfico ali. Entretanto, não tive medo e sendo levado por uma vontade impreterível segui o caminho.

Aos poucos fui percebendo que algo estava a espreitar, eu estava mentalmente incapaz de notar o que era. Eram audíveis os sussurros de um lado e de outro por entre as árvores, parecia falar em várias línguas ou uma língua estranha. Algo dantesco estava presente e certamente desejando minha ruína, desejando meu corpo, minha alma e eu inútil por não saber o que era e nem onde deveras estava.

Apesar da noite sombrosa, era possível ver ao longe, onde seria o fim da trilha, uma luz redundante, parecia ser dia naquela parte do caminho. Mas era uma iluminação estranha, pois parecia não haver sombra das árvores. Observei aquilo enquanto caminhava, tudo era tão real. Quando furei meu pé em um espinho senti uma dor enorme foi então que tive ainda mais a sensação de estar vivendo aquilo não em sonho, mas em vida. E isso era horrível, pois somado aos prenúncios da maldade das coisas ocultas e obscuras que me circundavam deixava meu âmago gélido.

Tudo ficou aterrador. A luz misteriosa que exalava como uma ameaça silente e horrenda; toda a vegetação que parecia acometida de um sombrio traço depressivo e malévolo; os murmúrios ao meu redor, e a visão da criatura que certamente não era deste mundo e eu não conseguia vê-la. Não estava suportando mais aquela atmosfera. Então gritei com toda a força que tive. Minha voz parecia inutilizada, tão baixa que logo se perdeu dentro da noite e seu silêncio cortado pelos sussurros que vez após vez eram audíveis e incompreensíveis.

Peguei minha atiradeira, descobri que estava sem pedras. Havia uma árvore com um fruto de cor verde, um fruto esférico muito duro. No exato momento que pensei em pegar o fruto e carregar minha atiradeira ouvi, a distância, uma gargalhada dantesca, que ecoou furiosa, em seguida aumentando como se chegasse mais perto, vinha da região luminosa. Uma risada estranha, quase robotizada, totalmente fria, desalmada. Senti a presença de algo perto de mim. O murmúrio seguinte foi no meu ouvido, o mesmo que havia me acordado, eu não entendi o que dizia, apesar de ser repetitivo em lentas gradações. Estava a poucos metros da luz difusa, paralisado e mudo. Foi quando vi o ser sinistro, pele pálida, olhos grandes e fixos, ali de pé, silencioso, murmurando uma língua estranha.

Tentei virar-me e correr para longe dali, mas estava enraizado ao chão como as árvores. Perdi o controle dos meus pés, braços e mãos. Apenas meus olhos moviam-se, pareciam hipnotizados pelas órbitas do ser em minha frente, não era um animal e nem um humano, era um ser diferente de tudo que já tinha visto em minha vida. Não era um zumbi, mas a mais horrenda de todas as criaturas existentes.

O ser sinistro encarava com malignidade. De repente criei forças e corri, porém, antes de ficar longe o suficiente dali fui surpreendido com uma claridade irresistível, caí com as mãos nos olhos e uma força sobrenatural me levantou violentamente, uma força de algo desesperadamente feroz. Quando consegui abrir meus olhos estava flutuando e enrijecido, só conseguia mover meus olhos. A criatura apareceu materializando-se diante de mim, estendeu suas mãos com dedos compridos como se examinasse meu corpo. Ao tocar minha fronte eu desmaiei. Qual ser humano pode enfrentar um ser terrível de seus sonhos?

MANHÃ ATÔNITA

Acordei assustado e absorto. Fiquei a matutar e perguntando-me sobre o significado do sonho tão vívido — como faria qualquer pessoa que, tendo recebido uma prova, ainda tivesse dúvidas e pressagiasse algo por trás daquilo que foi visto em sonho —, eu não prestei muita atenção quando comecei a despertar, mas eu estava deitado na abside da igreja quando uma brisa fria veio acordar definitivamente meus sentidos. Tudo era muito estranho, como eu fui parar ali no altar-mor sem ser um sonâmbulo?

Levantei rapidamente e saí do local, fui ao encontro de onde havia adormecido. Olhei o campo recoberto por capim, uma parte estava descampada. Preparei-me para partir, entretanto não encontrei o meu saco com os pássaros abatidos, apenas minha atiradeira e alguns frutos que pareciam acerola verde e de consistência. Senti uma sensação que não consegui entender, uma sensação inquietante que só Deus pode explicar. Talvez algum bicho tivesse pego meu saco e levado até a parte da vegetação machucada, então fui verificar.

A vegetação estava machucada, como se algo grande e pesado houvesse ficado sobre ela por um longo tempo, o mais assustador foi ver todos os passeriformes com suas cabeças decepadas e o sangue sobre o verde. Havia algo a ser compreendido, mas eu fiquei atônito demais, aquilo só podia ser um conluio secreto, algo maligno. O sonho não teria sido tão assustador se não fosse os fatos que presenciei logo ao acordar, nada estava certo. Seria uma maldição visível ou sinais de que eu estive em contato com um ser de outro mundo?

Os sonhos são aspirações, mas não costumo sonhar. Será que meu último sonho foi uma mensagem sem fio? Acima daquele campo funéreo, uma manhã misteriosa, tudo me era anormal, ameaçador — um toque danoso, sinal do juízo final. Nenhum pássaro estava a voar sobre minha cabeça, nenhum canto doce era possível ouvir, animal ou inseto não era visível como antes. O sol estava manifesto como um hexágono, eu sentia o ar frio, um arrepio incognoscível, tudo era prenúncio de coisa má. O vento era raso, parecia cochichar ao solo lôbrego os segredos terríveis daquele lugar.

O Campo dos Almeidas não era mais o mesmo. Estava tão impregnado de medo, que não prestei atenção em mais nada, até pensar: "Afinal, como fui parar dentro da igreja?" Um momento ponderado pareceu tornar mais inteligível — ainda que de forma ansiosa — o caráter sinistro do que minha mente tinha notado. Eu lembrei de uma história que Dona Dina, uma das antigas moradores de Santo Amaro, contava para os mais jovens. Segundo ela Jesus Cristo era um ser iluminado, mas de outro planeta. Dizia que isso é fato irrefutável, pois a Bíblia afirma com todas as letras essa verdade. Ela dizia:

"Os magos do Oriente, após Jesus nascer, levaram-lhe presentes: ouro, incenso e mirra; e de joelhos o adoraram. Eles foram guiados pela estrela de Belém até a manjedoura de Jesus. Mas não era uma estrela qualquer, não, não era uma estrela, era uma nave espacial, porque se movia de forma inteligente."

Se o maior símbolo do cristianismo tem algo a ver com seres de outro mundo isso explica muita coisa como, por exemplo, eu ter tido uma visão estranha em sonho além de ter acordado no abside da igreja abandonada. Comecei a temer meus pensamentos e sem sentido de orientação comecei a correr para longe dali. Em parte alguma havia sinais visíveis e audíveis da existência de seres vivos, eu estava totalmente isolado. Apenas aquele campo, aquela igreja com cemitério e o ar sombrio. Logo percebi que estava a correr em uma trilha diferente, meu cérebro tardou em reconhecer, então após alguns segundos pude notar que era o mesmo caminho que vi no sonho. Pensei estar sonhando mais uma vez, desejei que fosse um delírio.

Um ruído atrás de mim, fez com que eu me virasse e despertasse minha curiosidade em meio ao susto. Escondi-me por entre as árvores, procurei uma posição em que fosse visível enxergar bem o que meu cérebro custou a acreditar, era uma nave. E, de imediato, pensei: se eu fizer qualquer barulho o que quer que esteja dentro dessa coisa voadora me pegará sem comiseração. Então fiquei bem quietinho. Foi quando pude fitar confuso uma luz muito luminosa sair de dentro da nave em direção ao solo e em seguida uma espécie de homem com vestimenta parecida com a do padre Aristides, não tive certeza, mas quando ele ficou sobre o chão e o objeto voador sumiu eu pude vê-lo, todo ele visível, sua figura eclesiástica, seu cabelo em desalinho, a barba embaraçada. Era mesmo o padre. Ele foi em direção ao cemitério e quando não pude mais vê-lo voltei silenciosamente com a intenção de pegar o caminho para casa.

De súbito, uma coruja soltou seu pio sepulcral. Não, eu não estava a delirar, era uma coruja em plena manhã, absolutamente nada era normal ali. Cerca de um minuto ou pouco mais depois de eu ter visto o clérigo descer da nave e ir ao encontro do campo-santo, senti um toque no meu ombro e uma voz a dizer algo incompreensível como se fosse numa língua estranha, era a voz de Aristides. Quando eu comecei a me virar aos poucos um raio de luz não perpendicular iluminou todo o local onde estava e no mesmo instante eu perdi meus sentidos.

Ao acordar eu estava à beira da estrada que percorri para chegar até o local que hoje chamo de Campo de Mau Agoiro. Sem demora levantei e caminhei, ainda aturdido, na direção oposta, já era tardinha. Não lembro o que ocorreu durante meu desmaio, só lembro disso, um extraordinário acontecimento. Lembro também de ter visto uma luz difusa junta ao horizonte, não era o sol, pois já tinha se posto. Cheguei a pensar que estava a presenciar "um novo céu e uma nova terra".

Leandro Ferreira Braga
Enviado por Leandro Ferreira Braga em 18/05/2019
Reeditado em 31/08/2023
Código do texto: T6650544
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