O SUPLICANTE - Lenda Urbana - CLTS 07

O calor do esforço não diminuía o frio do suor que corria pelo rosto. Bastaram as luzes dos postes se apagarem para Paulo ter a certeza de que algo estava errado. Muitas histórias foram contadas, porém como bom ateu, jamais acreditou naquelas bobagens até aquela noite.

A longa avenida era considerada maldita, do adro da igreja de Santana até a esquina do cemitério Celestial seriam poucos minutos de carro, mas naquelas circunstâncias tornou-se uma via crúcis. Ladeando seu suplício, imponentes casarões ocupados por velhos taciturnos que repousavam por trás de portões de ferro batidos jamais prestariam o socorro implorado, as esperanças diminuíam junto com sua energia.

Passava-se da meia noite quando uma pane elétrica desligou todos os sistemas do carro, tentou por algumas vezes girando forte a chave na ignição, mas não teve sorte.

O céu relutava em compartilhar suas estrelas, a lua tímida aconchegava-se num mar de nuvens carregadas, o vento morno soprava trazendo uma sensação de angústia, o forte cheiro de cravo causava enjoo como em uma tarde de velório, somando-se a tudo isto, foi atingido por antigas lembranças dos tempos de moleque, quando os valentões desafiavam os mais fracos a percorrer aquele trecho com fama de assombrado. Estas recordações o fizeram tremer.

Pressagio ou não, os pelos do corpo se arrepiaram, todos os sons se transformaram em agouros do mau. Ainda conferia os cabos da bateria quando do lado esquerdo da rua, um vulto se esgueirava junto ao solo, de longe parecia um bêbado coberto por uma manta surrada.

- Perdão, perdão, eu me arrependo...

Ao som daquelas palavras, não quis esperar, eram muitas as bravatas da adolescência, mas agora aquilo era demais, correu com todas as suas forças. As vezes, exausto olhava por sobre os ombros, a certa distância a coisa o acompanhava.

O vulto ao se arrastar implorava clemência, suplicava com as mãos estendidas de forma penitente. Debaixo daquele capuz roto pareceu ter visto a face desfigurada de um homem cansado.

Mas a história não começou assim, Paulo a ouviu dezenas de vezes.

* * *

Era início dos anos cinquenta, a cidade experimentava um surto de progresso trazido pela recém-inaugurada fabrica de tecidos, a principal avenida ganhava seus suntuosos casarões ao estilo europeu, quase todos com dois pavimentos e belos vitrais nas portas. O velho pároco já não conseguia lidar com seu crescente rebanho, a diocese consternada com o avanço de sua idade achou por bem lhe mandar um substituto.

Gregório era um jovem de família abastada, como promessa da mãe, deixou de administrar os negócios do pai para seguir a vida no celibato. Cumpriu outras tarefas em igrejas da capital, porém desta vez teria uma sob sua total responsabilidade.

Com tantas novidades, os pecados na cidade também ganharam reforços, onde existe o homem existirá também a tentação e num lugar pequeno, todos se conheciam, o antigo padre batizou, crismou e casou cada um dos moradores criando uma espécie de laço afetivo, o novo clérigo chegou como uma válvula de escape, muita coisa omitida agora poderia ser revelada. Gregório deveria ouvir e redimir os penitentes, só a Deus caberia o julgamento.

Os segredos de confissão podem ser bênçãos em mãos inescrupulosas. Em pouco tempo o padre com viés de administrador e por capricho da mãe um homem santo viu ali uma forma de reverter o pecado em obra divina.

A matriz de Santana necessitava de uma boa reforma, a cidade progredia e sem recursos a igreja não acompanhava. As boas intensões às vezes podem oferecer inúmeros desvios, cada passo dado pode ser aquele que nos leva ao abismo. Entre o céu e o inferno uma simples atitude pode fazer diferença.

Um comerciante avarento fraudava a caderneta, como indulgência, além da penitência deveria oferecer parte do lucro indevido a seus irmãos. Um fazendeiro acostumado a explorar seus empregados doava uma rês para as obras de caridade e estava perdoado. Por muito tempo assim foi, acreditando poder comprar a salvação da alma, a igreja foi se beneficiando.

Primeiro foi a reforma do telhado, a pintura, lustres de cristal, bancos e até uma imagem de madeira em tamanho real foi encomendada à um renomado artesão mineiro.

Gregório, como bom negociante sabia barganhar, sua mercadoria para os crentes era preciosa, ele era homem e como tal tinha suas fraquezas.

Matilde era uma bela moça, devota e casta, confessava-se uma vez por semana sem mesmo ter algum pecado a delatar, sem cumprir o rito dominical sentia-se impura. Os jovens cobiçosos delineavam seus contornos protegidos pelos longos vestidos, muitas fantasias com a morena eram criadas.

Tião do Chico da Venda caiu nas graças menina, todo dia lhe surpreendia com um agrado, ela correspondia com seus doces sorrisos. A lábia do galã encontrou naquele coração puro um solo fértil, muito rápido colheu os frutos da castidade perdida. Por alguns pares de vezes, oculto num dos cantos escuros da birosca do pai, o marmanjo tragava a pureza perdida da outrora donzela, até que seus olhos voluptuosos se dirigiram a outra virgem.

Decepcionada, com medo do purgatório correu a seu confessor. O padre ouviu consternado o relato da moça que muito simplória clamava pela absolvição. Meia dúzia de Ave Maria, algumas Salve Rainha e um Pai Nosso colocaram alento naquele coração sofrido.

O vigário passou a noite insone, bastava cochilar para ser atormentado por calores sensuais. Imaginou mil vezes os amantes se enroscando ocultos pela penumbra, numa última tentativa de afugentar os desejos, encheu uma bacia com água gelada, nem mesmo a mais fervorosa oração o fez esquecer os desabafos de Matilde.

A cada nova confissão, mais detalhes eram acrescentados aguçando a sanha do reverendo. O diabo estava atento às oportunidades. A moça sofria tanto pelo remorso que já não havia mais penitencias a se fazer, então veio a revelação.

Não era só a culpa pelo ilícito, Matilde sofria pela falta do prazer recém-descoberto, era o coração mundano em conflito com a alma cristã.

- Com um homem de Deus não é pecado. O demônio sussurrou.

Gregório repetiu de modo sedutor. A moça ficou pasma, o silêncio tomou conta dos dois. A sacristia parecia um tumulo habitado por espectros sem cor. De forma natural o padre tomou Matilde nos braços, suas mãos deslizaram por cada curva do corpo da mulher, até se deterem nas partes úmidas de pavor. Ela se deixou possuir ali mesmo, nem ousava respirar. Ainda em choque ouviu o padre recomendar o terço antes de se deitar.

Por algumas semanas ninguém teve notícias da infeliz, até o padre estranhou, seus desejos ardiam purgados pelas orações. Matilde caiu de cama numa tristeza profunda, a mãe zelosa custava lhe enfiar um pouco de sopa goela abaixo. Enquanto seu corpo definhava a barriga aumentava. O farmacêutico foi lhe visitar, deixou alguns fracos de vermífugo e um pote de óleo de fígado de bacalhau, nem isso a colocou de pé.

Numa manhã fria de domingo, o padre celebrava a missa de abertura do jubileu, a igreja estava lotada, todos comungavam sua fé.

Na casa de Matilde, a mãe em prantos via a filha balançar de um lado a outro, presa pelo pescoço num galho da mangueira no quintal, aos pés da defunta um mal escrito pedaço de papel revelava o segredo da sedução.

Alguns poucos acudiram os pedidos de socorro da velha, abismados espalharam o conteúdo da confissão. Poucos se tornaram muitos, conhecendo o caráter do padre, como fogo no capim seco a ira se alastrou, um sinistro cortejo ganhava adeptos ao seguir ruma à igreja. Lá dentro em meio à homilia os ânimos eram serenos.

A turba tomou de assalto as três entradas da igreja. Uma amiga da morta com o papel na mão acusava o vigário. Não houve um dos presentes que desejou apaziguar a situação, no fundo, cada um queria sua parcela de vingança, estavam fartos daquele chantagista.

Com a massa humana avançando conta o altar, o padre cada vez mais acuado rogava pela salvação. Restava-lhe a fuga por uma estreita janela de ventilação.

A multidão perseguiu o covarde pela interminável avenida, ele buscava refugio nos casarões sempre com os portões trancados, só o cemitério lhe ofereceu abrigo.

Por entre as covas tentou se esconder. Foi pego. Sem piedade, cada um lhe cobrava seu quinhão. Muros, pontapés aos poucos deformaram sua face, pernas e costelas se partiram a pauladas. O padre clamava perdão, pedia clemência jurando arrependimento. Os ouvidos estavam surdos, a vingança azedava o mais puro dos corações. Sua voz foi se esvaindo, o sangue da boca invadia seus pulmões, os dentes caíram todos. No fim alguns gemidos suplicantes.

Anos se passaram. Em meio a tantos, ninguém foi punido, a diocese não se empenhou, se houvesse um julgamento a honra da igreja seria maculada. A família do padre, apesar de revoltada, achou por bem fingir que tudo não passou de um lastimável engano. A fabrica faliu, a cidade entrou em recessão, os casarões sem manutenção tornaram-se testemunhas da decadência social. Pessoas chegavam e partiam, quase não havia empregos. Os supersticiosos juravam existir uma maldição do padre. Alguns até diziam tê-lo ouvido em seu último suspiro condenando a terra que iria lhe cobrir.

Primeiro foram os bêbados, depois os estudantes, ninguém sabe direito, mas muitos avistaram um vulto se arrastando em meio a escuridão implorando perdão. Quando um ou outro crime sinistro ficava sem elucidação a culpa era sempre do fantasma do padre suplicante que roubava as almas impuras.

* * *

Paulo já cansado, não tinha para onde fugir, por mais que corresse, aquela sombra estava em seus calcanhares, por todo canto que olhava o vulto se esgueirava.

Prestes a desistir, uma luz brilhou adiante fraca e tremula, seria sinais de vida, talvez uma possível salvação. O fugitivo desesperado sem perceber ziguezagueava por entre as sepulturas. Suas forças falhavam. Lembrava-se das histórias contadas, lembrava-se de seus próprios pecados.

Sua namorada gravida, sob pressão, deveria escolher entre ele ou a criança. Seu filho jamais viria ao mundo. Pensou nos colegas de trabalho, cada um que humilhou, contabilizou todos os seus erros, seu peito doía com o peso da consciência.

No chão enlameado, espremido entre as lapides, em prantos se entregou.

Das sombras uma criatura foi emergindo, com o habito roto manchado pela terra o padre esticou sua mão. Arrancaria naquela noite mais uma alma em nome da redenção.

Com os olhos vermelhos de lágrimas, Paulo suplicou pela última vez.

- Perdoe-me por que pequei. Arrependo-me de todo mal que causei. Em suas mãos misericordiosas entrego meu espírito.

A criatura hedionda tocou sua testa, com o polegar fez o sinal da cruz.

- Eu te absolvo em nome de Deus.

Naquela triste manhã, o homem redimido foi encontrado pelo zelador.

Paulo estava desacordado sobre o túmulo de Matilde, seu rosto cansado deixava escapar um sorriso de alívio, sua alma estava leve, contrito estava seu coração.

SEGREDOS RELIGIOSOS

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 01/06/2019
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