Esperanza

I

O Sol do meio-dia arde em nossas cabeças. O Som oco das pás tentando cortar o solo duro dessa terra amarga e triste me faz pensar. Pensar sobre perguntas que meu coração faz a Deus todos os dias, desde o inicio desta minha humilde existência. Nenhuma resposta.

Somos apenas oito para enterrar todos os outros quatorze cavaleiros mortos, foi uma batalha muito difícil. Cavaleiros jovens demais e outros velhos demais agora esperam por sua cova. Sua ultima morada. Seu descanso final.

Meu nome é Thomas, sou o que podemos chamar de um mestiço, um filho bastardo da união forçada entre nobre e uma plebéia. Minha mãe, que descanse em paz, vivia uma vida de agruras e decepções que somente quem vive no deserto escaldante pode sentir.

O contato com meu pai fora muito breve. Um estupro. Um ato vil de violência de um nobre viajante para com uma mulher solidária que somente lhe oferecera água.

Anos de dissabores colecionei durante minha infância ao lado de minha mãe, que após meu nascimento foi acometida de uma dolorosa doença que a consumiu.

Ainda era jovem quando ela se foi. Conheci meu pai nesse dia, um Cavaleiro do Templo de Salomão, imponente, altivo, com sua capa branca e a cruz vermelha. Era muita arrogância da parte dele vir até aqui depois de todo o sofrimento que nos havia feito passar. Disse-me que havia se tornado Cavaleiro para se redimir de seus pecados. Meu pai ficou ali parado esperando pelos atos fúnebres de um humilde padre que viera realizar a cerimônia a seu pedido. Foi um enterro simples, sem muitas honrarias para minha mãe. Somente o suficiente para que ela encontra-se o caminho.

Os cavaleiros esticados aqui na minha frente também não teriam tais honrarias, apenas uma pequena cerimônia feita por nós mesmos, seus irmãos do Templo. Covas rasas no meio do nada. É assim que Claudius se refere a esse lugar. Nada no meio de nada. Suas reclamações não ajudavam aos demais cavaleiros cavar com maior empenho. Diversas vezes pedimos para que se calasse. Diocleciano quase o fez calar pela força. Este eram seus modos. A espada falava por ele.

Todos nós já estávamos muito cansados por causa dos diversos dias de caminhada pelo deserto, na verdade o ritmo dessa caminhada foi muito mais exaustivo por estarmos fugindo de um grupo de Germanos que nos perseguiam há dias.

Na noite anterior, logo após uma sangrenta batalha, conseguimos nos distanciar o suficiente para organizar melhor nossas ações. Foi uma batalha difícil onde perdemos diversos dos nossos. A maioria abandonada no campo, os abutres seriam suas covas. Os poucos feridos que conseguiram escapar estão todos entre nós. Adriano foi o único ferido que ainda anda, ajudando cavar as covas dos outros.

Muitos caíram frente ao inimigo. Muitos se sacrificaram em nome do Estandarte de Cristo. Muitos irmãos, muitos amigos, todos mortos.

No deserto um simples corte pode se tornar uma terrível ferida que jamais cicatriza. Eu mesmo ainda carrego com pesar um corte profundo causado por uma lança inimiga. Sempre que cavalgo dói. Dói muito. Felizmente não terei mais que cavalgar.

- Já está bem fundo. – Disse-me Adriano fincando sua pá ao lado da pequena cova que havia cavado.

- Acho que aqui também já acabamos – Respondeu Claudius.

Todos pareciam querer parar de cavar. O cansaço nos consumia a cada batida da pá contra a terra. O sol, indiferente, queimava a terra com seus raios cortantes. Deus podia tê-lo feito girar em torno da Terra a uma distancia maior.

Os sons das pás foram diminuindo dando lugar ao som das lamentações de Claudius:

- Eles podiam ao menos ter nos ajudado antes de partirem.

- Cale-se Claudius. Tente respeitar os mortos. – Bradou Diocleciano, que continuava cavando uma cova. Aliás era o único que não havia parado de cavar. Sua convicção parecia inabalável.

Debrucei-me sobre a pá tentando esconder o cansaço que me consumia. A dor do ferimento em meu peito ardia cada vez mais.

Começamos finalmente colocar os corpos nos buracos tomando cuidado para cobri-los o mais dignamente possível. Seus mantos cobertos de sangue e terra não seriam lavados, seus pés e corpos também não receberiam o mesmo tratamento. Somente seus corpos seriam cobertos pela cruz em seus mantos. Eram Pobres Cavaleiros do Templo de Salomão, mereciam todas as honras por seus sacrifícios. Não teriam.

Improvisamos a sagração de uma missa. Alguns de nós rezávamos o Credo enquanto os outros cobriam os corpos com terra.

- Do pó ao pó – Balbuciou Claudius.

Marcelo Bertinetti, o mais crente entre nós largou a pá e posicionou-se em frente às covas. Fez um sinal da cruz e começou:

- O SENHOR é o meu pastor, nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranqüilas. Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome. Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam. Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda. Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do SENHOR por longos dias.

Marcelo terminou a oração fez o sinal da cruz e finalmente o silencio tomou conta de todo o lugar. Silencio doloroso, frio.

Ficamos ali, em pé, sob o sol escaldante. Tentando não chorar. Adriano simplesmente se entregou aos sentimentos. As lagrimas tímidas se tornaram dolorosos soluços e gemidos.

Todos acabamos chorando. Todos se olharam.

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II

Alguns minutos passados da cerimônia fúnebre, estávamos reunidos longe das covas. Diocleciano ditava toda a estratégia para salvaguardarmos nosso posto.

Enquanto ele falava eu olhava para o horizonte tentando enxergar além das enormes dunas que se arrastavam infinitamente ao longe.

Esperava ver nossos perseguidores. Embora tenhamos nos distanciado deles, ainda estavam em nosso encalço. Poucos minutos agora nos separavam de uma nova batalha.

– Tom? – Disse Diocleciano: – Você está prestando atenção? Como se acordado de um sonho, que nunca queremos deixar, despertei para as palavras de Del.

– Os Germanos terão que passar por aquela estreita ponte de madeira, obrigando-os a se afunilar para atravessá-la. O Leito do Rio Jordão esta quase seco, mas descer até o seu leito seria algo que nem os Germanos tentariam.

Apesar de seu jeito agressivo eu gostava de ver Diocleciano falando aos irmãos. Ele conseguia reter a atenção de todos, todos menos um: Marcelo Bertinetti, o homem de maior fé entre todos nós.

Não importava o quanto às ordens fossem vitais, Marcelo estava sempre rezando. Dizia não precisar das orientações, pois toda a orientação que necessitava vinha direto do SENHOR. E essa sua enorme convicção lhe custou à chance de partir com De Molay e os outros cavaleiros na noite anterior.

Acredito que a decisão de deixá-lo para traz tenha algo a ver com sua baixa atuação na batalha de ontem. Como sempre Marcelo não prestou atenção nas ordens e acabou se distanciando da formação combinada. Foi assim que perdemos Tobias. Marcelo cavalgava no sentido inverso da formação, conseguiu abater diversos inimigos, mas acabou cercado por eles. Tobias conseguiu evitar que um Germano separa-se a cabeça de Marcelo de seu corpo. Mas acabou sendo derrubado do cavalo. Tobias levantou-se e lutou até a morte. Nada pudemos fazer. Quando vimos ele já havia morrido. Um Germano cortou-lhe à cabeça e a ergueu um troféu. Nunca esquecerei da tristeza estampada nos olhos de De Molay.

Ver Tobias, que era um cavaleiro muito mais valoroso que Marcelo, morto fez De Molay irritar-se de tal modo que decidiu deixar Marcelo junco com os demais. Deixá-lo para traz. Deixá-lo com os fracos.

As palavras de Diocleciano continuavam mostrando como nosso pequeno grupo teria muita chance de rechaçar os ataques, desde que aproveitemos nossa posição geográfica.

Todos prestavam atenção nas palavras, concentrados, temerosos. Foi quando Del olhando para o horizonte parou de falar. De boca aberta ele ficou ali, parado, olhando para o Norte. Demoramos alguns segundos a perceber o que havia feito Del parar de falar. Uma enorme nuvem de poeira se movia lentamente na tênue linha que separava o céu do deserto escaldante. O calor fazia com que toda a paisagem torna-se turva. Mesmo assim era possível vê-los: um batalhão. Um batalhão Germano. Vinha nos destruir.O cerco havia começado.

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III

Seguindo as orientações de Diocleciano começamos a barrar a pequena ponte de madeira com pedras e pedaços de madeira da carroça quebrada deixada conosco.

A pequena ponte de madeira fora construída muitos anos atrás, acredito que servia como acesso as ruínas dessa igreja cujo os destroços acampamos. Um templo que fora construído a centenas de anos para marcar um local sagrado. O lugar de onde o Três Reis Magos teriam avistado pela primeira vez que a Estrela havia parado.

Hoje somente ruínas empilhadas formando uma barricada diante do Jordão seco e sem vida.

Após horas cavando, agora estávamos carregando pedras para barrar a ponte. O fato de nunca usarmos luvas deixava aquele trabalho extremamente doloroso. Minhas costas ardiam, o ferimento em meu peito queimava. Tinha impressão que algo tentava romper em meu peito. Logo o pus tomaria todo o ferimento e a febre viria, uma febre seguida de uma morte agonizante. O lado direito do meu corpo estava ardendo mais do que o esquerdo. Aquilo com certeza era um sinal que logo a febre viria.

– Do que adianta barrarmos isso? – Claudius quebrando o silêncio doloroso.

– Assim que eles chegarem irão nos atacar com flechas. – A pergunta de Claudius fez todos pararem, uns continuaram segurando os blocos pesados de pedras, outros largaram as que seguravam. Todos olharam para Diocleciano esperando ele dizer algo que os incentivasse a continuar. A resposta veio instantaneamente:

– Eles são Germanos e não Sarracenos. – Respondeu confiante, trazendo conforto aos demais em continuar aquele árduo trabalho de carregar pedras de um lado para o outro.

Diocleciano tinha razão, lutaríamos contra os Germanos, Cavaleiros do Hospital de São João de Jerusalém, eram cavaleiros bem treinados, jamais de disporiam de tal métodos sujo. Setas não são para cavaleiros. Setas são armas dos infiéis. O combate montado era sua especialidade. Assim como a nossa também o é. Cavalgar para cima dos inimigos de Cristo.

Infelizmente De Molay não nos havia deixado nenhum cavalo para montarmos, estávamos no chão e essa era a maior desvantagemque um Templário poderia enfrentar.

Diversas vezes sobre nossos destemidos cavalos vencíamos facilmente exércitos inimigos dez vezes mais numerosos que o nosso. Sobre nossos cavalos éramos imbatíveis. Um de nós poderia facilmente derrubar dez, doze até mais soldados no chão. Hoje esses Cavaleiros do Templo não teriam tal vantagem. Talvez essa fosse a vontade do SENHOR. Um ultimo teste da nossa fé. Um ultimo sacrifício pela verdade da Cruz.

No norte a nuvem de poeira se aproxima cada vez mais, compassada. Eles estão poupando suas forças para a batalha. Eles sabem que nós não temos aonde ir.

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