Borralheira

Muitos já se dedicaram a elaborar um relato dos fatos que se cumpriram entre nós, conforme nos foram transmitidos por aqueles que desde o início foram testemunhas oculares desses eventos. Não tendo eu visto pessoalmente nada do que aconteceu, investiguei tudo cuidadosamente, desde o começo, e decidi escrever-vos este breve relato, excelentíssimos irmãos Grimm, para que vocês tenham maior certeza das coisas que ouviram.

Era uma vez um velho cavaleiro - nada cavalheiro – que se casou com a mulher mais arrogante de todo o reino, a típica viúva negra, com duas filhas bem parecidas consigo. Ele também possuía uma filha, cuja doçura sem igual deixava todos admirados. A megera e suas crias podiam ver maldade escondida na pequena e, por isso, odiavam-na e maltratavam-na. A moça fazia os piores trabalhos domésticos e vivia no sótão, sobre uma cama de palha. Quando terminava seu trabalho, sentava-se sobre as cinzas perto da chaminé e, por isto, era chamada de Gata Borralheira.

Certo dia, o primogênito do rei convidou todos os fidalgos para um baile em seu castelo. Por serem afilhadas de um nobre, as duas irmãs obesas também foram convocadas. E esta parte todos conhecem: a viúva e suas filhas deixaram um bom bocado de trabalho extra para a Borralheira e nem ela, nem seu pai mentalmente desequilibrado, tiveram chance de ir ao baile. E então chegamos àquele nauseante momento de glória onde uma fada madrinha surge para secar suas lágrimas. Eu gostaria de poder, eu gostaria de poder, eu gostaria de poder ir ao baile. E em um passe de mágica, surge uma carruagem cucurbitácea com imponentes cavalos cinzas, um cocheiro roedor e lacaios surgidos de sáurios do jardim.

Com roupas luxuosas, sapatilhas vítreas e jóias luminosas, foi ao baile, com o conhecido fardo de voltar para casa à meia noite. Quando o príncipe foi informado sobre a chegada de uma linda princesa, correu para recebê-la. Ela chegou e houve um silêncio no salão, todos pararam de dançar e até os violinos calaram para ver, com seus olhos de madeira bem limpa, a princesa descer a longa escadaria. "Merveilleux!", o rei interrompeu o silêncio, encantado com a falsa princesa. Confessou à sua rainha nunca ter visto mulher mais bonita em toda vida. As damas admiravam suas roupas espetaculares, os cavaleiros sua beleza descomunal; inclusive, é claro, o príncipe.

Dançaram até o relógio anunciar o fim da diversão. Ela inventou uma desculpa esfarrapada e saiu o mais rápido possível. Nessa fuga deixou seu pequeno sapato na escadaria. Como todos sabem, o príncipe começou uma verdadeira cruzada em busca de sua princesa, até chegar ao ponto de anunciar um rápido casamento com qualquer uma cujo pé entrasse na sapatilha. Nobres e plebeias, todas teriam seus pés medidos.

Até o calçado chegar à casa da Gata Borralheira. Os pés das irmãs eram claramente grandes demais para entrar na sapatilha infantil - sim, Borralheira contava doze anos. A madrasta teve a brilhante ideia de mandá-las cortar seus dedos. Mesmo assim não serviu. Borralheira calçou os sapatos e foi levada ao palácio. Final feliz. Casaram-se, tiveram quatro filhos, até que o príncipe a trocou pela Branca de Neve. O cavaleiro passou a morar em cima de uma árvore dizendo ser um tizil. A madrasta e as irmãs tornaram-se mendigas. E todos viveram felizes para sempre.

****

Para ler outro conto baseado em uma lenda antiga, confira "Bismillah!":

https://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/6799672