Ainda Não

I

Wilson era um verdadeiro pão duro. "Econômico", como gostava de dizer. Do tipo que só compra o essencial, e que passa a maior parte do tempo livre buscando ganhar dinheiro de alguma forma. Uma dessas formas é responder pesquisas pela internet para ganhar alguns centavos que vão se acumulando quando você tem bastante paciência. Talia, sua esposa, dizia que o dinheiro que ele ganhava com essas pesquisas não pagava nem a energia elétrica que ele gastava no computador para respondê-las, mas não adiantava.

Como Wilson vivia colocando seu endereço em cadastros nos diversos sites que usava para ganhar dinheiro pela internet, não se surpreendeu quando recebeu um pacote pelos Correios de uma empresa chamada Toresan. A coisa começou a ficar estranha quando viu que, por debaixo do embrulho normal que logo rasgou, o pacote estava coberto por um embrulho de couro, coisa que ele nunca havia visto antes. Em relevo, no canto superior esquerdo, o logotipo e o nome da empresa.

Talia ficou curiosa para saber o que havia no pacote e mandou o marido abrir, mas ele ficou temeroso. Decidiu fazer uma pequena pesquisa antes de mexer. Haviam várias empresas chamadas Toresan: uma de embalagens, uma de estética, farmácias, etc. Decidiu ligar para cada uma delas, mas nenhuma pôde esclarecer a situação. Ficou com mais raiva porque um dos atendentes o tratou com grosseria, como se ele não tivesse o direito de ligar. E Wilson ainda estava receoso em abrir, tinha um presentimento estranho. Até onde sabia, podia ser uma bomba. Não era provavel, mas impossível também não era.

Depois de vasculhar por bastante tempo a internet em busca de um esclarecimento, achou uma postagem no Reclame Aqui que dizia simplesmente "não abra". Só isso. Finalmente desistiu, jogou o pacote em um canto e quis deixar para lá. Não explodiu. Talia, por outro lado, não ia descansar enquanto não descobrisse o que havia ali. Após muita insistência, conseguiu convencer o marido a abrir o pacote. Foi difícil, tiveram que rasgar o couro que era bem duro, demorou quase meia-hora.

Quando finalmente conseguiram tirar o pacote de dentro do embrulho de couro, viram que era uma caixa de madeira. Pesava pouco mais de um quilo e tinha uns quarenta centímetros de comprimento. Estava trancada com um pesado cadeado. Wilson mal começou a pensar em um jeito seguro de abri-la sem danificar o que havia dentro, quando viu escrito por debaixo: "chave de casa". Ele e Talia se entreolharam, confusos. Pensou por um momento e, hesitante, pegou sua chave de casa. Olhou para Talia mais uma vez, os dois deram uma risada nervosa, então veio o silêncio. Encaixe perfeito. O cadeado abriu.

Dentro da caixa havia um coelho branco, vivo e bem alerta. Talia arregalou os olhos. Enquanto com uma mão Wilson tirou-o da caixa, com a outra pegou um papel que estava debaixo dele, dizendo: "NÃO LEIA EM VOZ ALTA. Você tem 1 minuto para agir. Pegue uma faca grande e rasgue esse coelho totalmente, ou você morre. Não conte a ela o que está escrito aqui. Queime tudo depois de completar a tarefa. O tempo está passando."

Wilson hesitou alguns instantes. Devagar, diante do olhar confuso de sua esposa, levou o coelho até a cozinha, colocou-o sobre a pia, tomou uma faca grande. Olhou para o coelho, olhou para sua esposa. "O que você vai fazer?", ela perguntou, incrédula. Como que tomado por uma força moral que ele não conhecia, tomou coragem e começou a esfaquear o coelho, várias vezes, até ter certeza que ele estava morto.

- Eu não posso explicar... - ele começou, todo sujo de sangue, sob o olhar horrorizado de sua esposa, que quis gritar, mas não conseguiu. - Por favor, apenas confie em mim...

Antes que pudesse terminar a frase, caiu morto. Seu rosto claramente sem vida, muito pálido, a boca torta como que congelada, os olhos enegrecidos. Demorou tempo demais.

II

No final de mais um dia exaustivo, Talia voltava para casa à noite de ônibus. Tinha dois empregos, por meio dos quais sustentava a filha e pagava a interminável dívida que o marido deixou de herança. Por isso aceitou de bom grado fazer hora extra na fábrica. Mas ficou apavorada quando se viu sozinha no ponto de ônibus, quase meia-noite. Felizmente, a espera não durou muito e o veículo alongado subiu a estrada lentamente, diminuindo a velocidade antes de parar. O motorista, um jovem de bigode e cabelo grande amarrado em um rabo de cavalo chamado Maurício, não respondeu ao "boa noite". Parecia tão sonolento quanto ela.

Após pagar a passagem, percebeu que o ônibus estava completamente vazio. Foi para os fundos, sentou-se na janela e respirou profundamente, preparando-se para a longa e tediosa rota de volta para casa. O ônibus tremia bastante, mas ainda assim ela encostou a cabeça na janela, fechou os olhos e tentou cochilar um pouco. O balanço e o barulho da condução pareciam tão acolhedores quanto colo de mãe botando bebê para dormir.

Talia não saberia precisar por quanto tempo seus olhos ficaram fechados, mas quando sua mente emergiu da inconsciência, a preocupação de ter passado do ponto se apresentou. Pobre nasce com um sensor para acordar sempre um pouco antes de descer do ônibus, então isso não aconteceu. Mas outra preocupação se sobrepôs à primeira. Ao olhar para a janela, viu o reflexo de uma pessoa sentada ao seu lado.

Ela olhou ao redor disfarçadamente, para poder dar uma olhada de canto de olho no passageiro ao seu lado. Todos os outros bancos estavam vazios. Isso não era incomum, já que aquela linha não era mesmo tão movimentada àquela hora, mas era angustiante se dar conta de que alguém preferiu sentar ao lado de uma mulher sonolenta tendo todos os outros lugares vagos. Apesar disso, como a pessoa ao seu lado nem sequer tocava nela (de relance, parecia ser bem magra), ela decidiu não ser rude. Voltou a contemplar o reflexo, para ver melhor seu companheiro de viagem. Pela altura era um homem, mas sua cabeça estava coberta pelo capuz da jaqueta de couro verde. Era estranho o fato de suas roupas parecerem bem quentes, sendo que fazia calor, mas ela logo raciocinou que provavelmente era por causa do ar condicionado do ônibus, que funcionava muito bem.

Por algum tempo ficaram sentados em silêncio, mas, à medida que o ônibus prosseguia em sua jornada, Talia se sentia cada vez mais agitada, em parte pela proximidade de seu companheiro indesejado, mas mais ainda por um fator desconhecido. Ela não conseguia identificar por que estava tão ansiosa, mas um nervosismo começou a dominá-la.

Enquanto os assentos sacudiam e o chão vibrava com cada depressão irregular da estrada, ela espiou pela janela mais uma vez, tentando aliviar sua inquietação inquestionável, ainda que inexplicável. A rua por onde passavam era familiar para ela, mas sinalizava que ainda faltava um bom tempo para chegar.

Decidiu aliviar a tensão puxando assunto com seu companheiro de viagem. Lentamente, virou-se para ele. A ansiedade aumentou novamente, com a estranha sensação de que ela estava olhando para algo que simplesmente não deveria estar ali. Mas não havia de nada tão absurdamente estranho no passageiro; que, mesmo olhando para ele, não dava para ter certeza se era mesmo um homem, podia ser uma mulher grande.

- Está ficando um pouco frio aqui, não? - Talia disse a primeira coisa que veio à sua cabeça. Como era de se esperar, o passageiro não respondeu, permanecendo de cabeça baixa, oculta sob o capuz. Após alguns instantes, Talia insistiu, brincando com o fato de que o motorista parecia um pouco mais mal-humorado que o normal, mas também não obteve resposta. Voltando-se para a janela novamente, decidiu que duas tentativas de conversar era suficiente. Aumentou-lhe o desejo de sair de perto logo dessa pessoa estranha. Após alguns minutos, porém, quando estava prestes a pegar no sono de novo, um som chamou sua atenção. Um ruído inquietante, que lhe arrepiou. Madeira sendo arranhada. Virando-se devagar para encarar seu companheiro indesejável, viu que ele ainda estava de cabeça baixa, mas sua mão estava debaixo do assento. O som vinha dele, raspando com sua unha a placa de madeira que sustentava o material almofadado sob o qual estava sentado. O som perfurava os tímpanos de Talia de modo angustiante, de modo que ela não suportou muito tempo.

- Pode parar com isso, por favor? - Ela pediu. O passageiro não reagiu, de modo que ela falou com mais veeêmencia: - Por favor, pare com isso!

Então o passageiro parou de arranhar o assento, mas também não se moveu. Agitada, mas aliviada em certo sentido, Talia olhou para fora da janela mais uma vez, tentando extinguir os crescentes sentimentos de medo e raiva que se acumulavam dentro dela. Ainda faltava meia-hora para chegar em casa.

Vasculhando sua bolsa, encontrou um pacote de chicletes aberto e resolveu chupar o último para tentar se acalmar. Quando levantou os olhos em direção à janela novamente, seu coração quase parou. Pelo reflexo, viu que o passageiro ao seu lado estava olhando para ela. Seu pálido rosto parecia congelado, com olhos profundos e negros, uma boca deformada constantemente aberta.

Ela gritou, e gritou ainda mais quando o companheiro de viagem tocou-lhe no ombro, com uma mão ainda mais gelada que o ambiente. Sua mão muito branca estava enrugada, dois dedos faltavam. O passageiro gemeu e começou a chiar, como alguém fazendo muito esforço para respirar. Talia pulou por cima do assento sobre ela e correu pelo corredor, gritando pelo motorista. O ônibus, porém, freiou de repente, jogando-a no chão.

O passageiro se levantou lentamente, parecendo fazer muito esforço para se mover, e tentou segui-la. Ela conseguiu se levantar e alcançar a frente do ônibus, que estava parado.

- Oh, me desculpe, senhora... - o motorista parecia apavorado. - Eu... não consegui resistir e acabei dormindo...

- Não importa, me ajude, tem um... - Quando ela olhou para o corredor para apontar para o estranho passageiro, ele havia desaparecido.

Por um momento, Talia se agarrou à ideia aliviante de que havia sido apenas um pesadelo muito vívido. Voltou para o banco, sentou-se, respirou fundo. Alguma coisa estava errada. Movida como que por um presentimento, decidiu olhar para debaixo do banco onde supostamente havia um companheiro de viagem. De fato, alguém escreveu, exatamente ali, à unha, uma mensagem.

A polícia não encontrou provas do passageiro, a câmera não o detectou, e o motorista afirmou que ninguém havia entrado no ônibus depois de Talia. Era como se a figura encapuzada tivesse desaparecido sem deixar vestígios - exceto pelo arrepiante recado que estava ali. Foi isso que a deixou mais aparvorada, muito mais do que o fato de que o rosto da criatura lembrava um pouco, ao revisitá-lo na memória, o de Wilson. Duas palavras que a deixaram sem dormir direito por muito tempo: "Ainda não".

Se ainda não, então quando?