JUVENAL, O POETA DO SERTÃO - CLTS 10

Naquela manhã de domingo, o canto da patativa, ouvido ao longe, parecia ecoar em cada palmo de chão poeirento. O sol raiava trazendo mais sofrimento ao couro queimado do sertanejo.

Juvenal tinha tudo preparado. Duas dúzias de ovos colhidos durante a semana bem enrolados em fibra de vime, uma cabaça d’água fresca do poço que resistia à seca nordestina, e de maior valia, seus cordéis compostos ao longo daqueles dias de calor insuportável.

Ele era um poeta do sertão, daqueles valentes guerreiros sobrevivendo da aridez miserável da terra. Sua casinha lá no pé da Serra do Briocó, o mantinha apartado de seus iguais, seu sustento garantido pelo olho d’água que nunca míngua permitia que cultivasse uma roça de palmas e aipim, além da criação de alguns animais onde se destacava Dalberto sua fiel montaria, um asno de molejo único ao caminhar que também era seu confidente nas horas de solidão. Não tinha luxo, mas considerava-se feliz.

Prestes a partir, juntou o resto do angu da janta, uma porção de carne de sol, deixou também uma vasilha com água limpa ao alcance de Barriga Branca. A pobre criatura não ousou levantar os olhos, encolheu-se amuada em seu canto, iria passar mais um dia acorrentada pelo pescoço e por mais que forçasse nunca escaparia.

Ele não escondeu seu desprezo, tratava-a muito bem e a ingrata não lhe retribuía, estava farto da sua desobediência, suas tentativas de fuga, era indócil, quase indomesticável. Pensou em desfazer-se dela ali mesmo mas lhe daria uma última chance, poderia refletir naquele dia e quando retornasse o veredicto estaria decidido. Na dúvida, um porrete ao lado da porta daria cabo da infeliz e como tantas outras ganharia uma cova no quintal.

A feira da cidade de Capeba Doce atraia todo tipo de gente, pequenos produtores e artesãos do agreste vinham expor suas mercadorias aos olhos dos turistas da capital, até estrangeiros apareciam por lá. Eram matutos de pouca instrução mas tinham uma lábia sertaneja que jamais lhes permitia retornar sem as barganhas, naquele formigueiro trocavam-se produtos típicos por gêneros de necessidade, aos poucos a cidade ganhava importância tornando-se uma das mais procuradas da região.

O poeta tinha seu canto, chegava bem cedo, amarrava seu barbante à sombra de um cajueiro, pendurava suas rimas escritas em caprichados caderninhos, alguns até com desenhos, ali permanecia até a tardezinha apregoando seus versos, uma vez ou outra se ausentava, uma escapada fortuita até a vendinha para dois dedos de cachaça.

Já passava do meio dia quando Tião Libério chegou. De longe o cabra de olhos miúdos, cara de poucos amigos média o rival de cima abaixo. O ódio lhe queimava as ventas e a cada dia mais a raiva ia crescendo. Não suportava aquela voz mansa com seus galanteios baratos enredando as meninas da cidade. O ciúme é um veneno que corrói aos poucos um coração sereno.

O moço tinha o orgulho ferido, fazia meses que sua amada Ritinha o abandonará. Nada lhe disse, nem se despediu, nem a mãe viúva dava conta da fujona. As comadres desocupadas cochichavam em grupinhos, diziam que a menina regateira se juntou com um belo rapaz seguindo para capital, certamente com uma cria no bucho. Divergiam em detalhes, umas tinham como certo que levava vida de madame bancada por marido rico, as pessimistas debochadas garantiam que findava numa casa de rapariga, certo que ela cansada da vida difícil, não aceitaria seu destino ao lado de um ignorante de mãos calejadas.

Mas o namorado discordava, achava que a infiel não teria ido tão longe. Sempre teve ciúmes do ladino com seus sorrisos faceiros, com seus mimos ingênuos, via ele cercando seu amor de infância. Quando a menina sumiu, esperou por um tempo, tinha esperanças que o arrependimento lhe trouxesse de volta. Ela não voltou, sua tristeza cresceu. Estava farto dos risinhos maliciosos. Beberia o sangue daquele bico-doce.

Quando a fome apertou, mesmo desejando morrer, Barriga Branca comeu, era o instinto gritando, o mesmo que tantas vezes a fez tentar fugir. Já tentará tanto que começou a aceitar seu destino, dobraria aos desejos do homem. Mais fácil derrubar a casa que romper seus grilhões, quem sabe um dia algum viajante perdido bateria naquela porta, quem sabe assim recuperaria sua liberdade, poderia correr de volta a seu antigo lar abandonando aquele cômodo sombrio, esqueceria o fedor do suor daquele homem sem coração.

Andando até onde as correntes permitiam, mexendo numa coisa e outra sem esperança alguma de fuga, acompanhava o passar lento do dia através da luz que penetrava pelas frestas da janela. Temia que a solidão lhe roubasse o restante da felicidade que em sua mente esvaia-se como a poeira levada pelo vento, mas antes estar só do que ter aquela infame companhia que breve estaria de volta.

Na cidade, a tarde foi proveitosa, vendidos seus poemas ainda havia conseguido uma boa gratificação de um jovem casal em lua de mel que lhe banhou em elogios. Trocou um dedo de prosa com o dono da venda, bebeu a última dose de pinga, finalmente tomando rumo do seu retiro.

Durante todo aquele tempo, Tião queimava no sol, alisava a azagaia podia até ouvir o som que ela faria ao perfurar a carne do malandro, por algumas vezes quase não se continha, podia interpelar o safado ali mesmo, rasgar-lhe o bucho oferecendo seu sangue para as comadres faladeiras recuperando assim sua honra de macho ofendido. Mas ele queria mais. Ritinha veria o poeta sangrar, ele não a mataria, deixaria-a com sua desonra para lembrar ao povo que com ele ninguém brincava.

Enquanto Juvenal bamboleava sobre Dalberto, sem que ninguém lhe incomodasse, Tião correu em casa. Pegou a cartucheira, checou se estava carregada e saiu no encalço de seu desafeto. Os mandacarus do serão seriam testemunhas de sua vingança.

Estava escurecendo quando Juvenal chegou, levou Dalberto para o curral, retirou-lhe a sela ainda tendo tempo de apreciar os últimos raios rubros do sol que cansado de castigar aquele chão agora iria repousar por detrás das montanhas. Ali a vida era rude mas jamais faltaria inspiração.

Entrando em casa viu Barriga Branca se encolhendo em seu canto com aquela cara triste de piedade, tinha ainda uma última tarefa aquela noite, o porrete estava ali, acabaria logo com aqueles olhos molhados incapaz de reconhecer tudo o que fez para lhe agradar, definitivamente era hora de desfazer-se da ingrata, era caso perdido, não passaria nem mais uma noite ouvindo os murmúrios de lamento da criatura.

Na mesa da cozinha, ao lado do pote com água, havia uma garrafa de pinga, serviu-se de um bom gole fazendo careta e cuspindo o resto no piso de terra batida. Já estava escuro, acendeu o lampião, despiu-se, apanhou a chave do cadeado e soltou Barriga Branca.

Sentado na rede, deu alguns tapinhas nas coxas chamando a infeliz. Condicionada pelos constantes maltratos ela sabia o que fazer. Resabiada, aconchegou-se ao carrasco servindo-lhe como bem quis.

Juvenal, o poeta do sertão a possuiu como uma besta no cio, as lágrimas fugiam em silêncio dos olhos da coitada que como um trapo era usada para satisfazer seu dono. Terminado o suplício, retornou a sua insignificância, desta vez sentiu a corrente apertar mais forte seu pescoço, mas breve o poeta daria cabo em seu sofrimento.

Do lado de fora Tião remoia seus pensamentos, talvez melhor abandonar a infiel e continuar sua vida. Decidido a partir sem levar a termo a vingança era hora de voltar para casa. Um vento seco soprou agitando o pó. Nitidamente ouvia-se os risinhos de escárnio das moças da cidade. Ele era um corno, este tipo de gente não tinha respeito, desistindo, melhor seria dar fim a sua própria vida. Não iria embora.

Com muito custo aproximou -se da casa, temia encontrar a amada nos braços do outro. Apenas um cômodo estava iluminado. Com a cartucheira na mão expiou pelas frestas da janela.

Sua garganta secou, as pernas bambearam, os olhos vermelhos de horror deixaram turva sua visão. Abandonou qualquer cautela possuído por um acesso de irá, tornou-se um touro bravo investindo conta a frágil porta que resguardava a resistência. No segundo chute ela cedeu.

Alertado pelo barrulho, Juvenal armou-se com o porrete, defenderia seu lar contra qualquer invasor. Não teve nem tempo de ver quem o alvejou. Caiu vertendo sangue por um enorme orifício no peito.

Privada de sua dignidade, Ritinha mantinha-se encolhida acorrentada em seu canto com os ouvidos ainda surdos pelo estampido.

Tema: Cárcere privado

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 03/03/2020
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