JÁ ESTAVA ESCRITO

Eu sempre soube que ele era diferente, desde o nascimento que foi numa época conturbada da minha vida. Sou a mãe, e sei bem sobre o que estou falando. Sempre fui supersticiosa, acredito em fantasmas, espíritos, coisas estranhas, sempre pensei que se coisas fora do comum acontecem e há sempre um porquê. Se sonhasse com algo diferente, logo buscava explicações para decifrar o meu sonho. Na realidade minha frase preferida sempre foi “eu não acredito em nada, mas na dúvida, eu faço. Vá que exista.”

A minha visão sobre estas coisas pioraram muito depois da chegada do meu único filho, Pedro. Eu era supersticiosa, mas Pedro era a síntese de tudo e mais um pouco.

Quando era bebê, por diversas vezes o assisti sorrindo para o nada, levando as mãozinhas para tocar em algo que eu não via. Muitas vezes a conversa parecia estar tão boa que ele fazia força e ate balbuciava tentando responder, imagino eu.

Nunca entendi, mas confesso que assustava um pouco e, na verdade era um misto de sentimentos, pois dizem que crianças podem ver as “coisas”, talvez anjos. Mas anjos são bons, certo? Porém, eu não sabia a aparência de um ser assim. De qualquer maneira ver algo ali que não era de carne e osso, seria assustador.

Pedro foi praticamente criado pela minha mãe, pois desde cedo precisei voltar ao trabalho. Conviver com ela era um atentado a sanidade de qualquer um, não tinha muito que pudesse ser feito. Ela era uma pessoa de bom coração além do meu braço direito na criação dele, mas também era o tipo de pessoa de muitas crenças e opiniões, jogava em todas as posições e atirava para todos os lados.

Na entrada da sala de estar havia uma bíblia aberta, para abençoar a casa. No canto da mesma sala, imagens de orixás do candomblé para limpeza do ambiente. Sexta-feira Santa fazia “breves” de pendurar no pescoço para segurança da saúde das pessoas que a procuravam, benzia uma por uma, enquanto o seu pequeno ajudante distribuía balas aos visitantes a fim de agradá-los e entretê-los. Na hora da novena no rádio, lá estavam os dois, com um copo em cima do aparelho, compenetrados e de olhos bem fechados, ao final das orações tomavam as suas águas abençoadas. O pátio da casa é até hoje uma floresta de plantas medicinais e chás, um pra cada problema.

Confesso que muitas vezes achava engraçado aquele toquinho de gente, fazendo aquelas coisas. Eu não fazia nada disso, mas não desfazia. Sempre deixei ele livre para acreditar no que quisesse, inclusive não o batizei quando bebê, deixei que ele tivesse a opção de seguir a sua vontade, algo que ele expressou depois de muitos anos e então foi batizado depois de grande.

Quando tinha uns três anos e já era mais independente, recebemos a visita de um amigo imaginário, que ele chamava de Matitube. Um nome um tanto estranho para uma criança que recém aprendera a falar, dar a um amigo. Afinal só assistia desenhos e filmes infantis, onde os personagens tinham nomes geralmente compostos por duas sílabas Lili, Lulu, Tatá, este tipo de coisa. Matitube ficou famoso na família, tanto que alguns parentes quando se aproximavam de Pedro, perguntavam pelo amigo.

O nome e a fisionomia de Matitube eram incógnitas e por mais que perguntássemos, Pedro não sabia explicar nenhum dos dois. Certa vez, numa visita à casa do meu pai e madrasta, numa cidade do interior do estado, passeávamos pelas ruas quando e o meu filho falou com euforia:

— Olha lá o Matitube na foto!

Mais que depressa, a minha madrasta e eu corremos ansiosas para enfim ver o rosto da nossa companhia. Eis que dentre vários cartazes na parede, ele apontou o seu lindo dedinho para um dos poucos que estavam em branco. Mesmo frustrada, insisti:

— Como ele é meu filho?

— Só é o Matitube mamãe, é diferente e não parece com nada!

Aquele cartaz em branco se parecia com o amigo dele? Nos olhamos com ar de “algo estranho aconteceu aqui”, mas seguimos.

Durante esta mesma passagem pelo interior, resolvemos fazer um passeio por um clube. Era uma fuga daquela tarde ensolarada e escaldante de verão. O local era bem arborizado, o que fazia uma brisa leve desfilar entre nós. No carro, o meu pai, a minha madrasta, o meu sobrinho, Pedro, eu e Matitube, é claro.

Logo na chegada, Pedro avistou uma árvore solitária mais afastada, olhou para mim e disse:

— Vou deixar o Matitube ali na sombrinha.

— Tudo bem filho! — Respondi.

Confesso que era um comportamento diferente, mas mais estranho foi na hora de ir embora, depois de uma tarde longa, cheia de conversas, brincadeiras, jogos, estava a anoitecer quando nos direcionamos ao carro, todos foram se organizando, coloquei Pedro no assento para crianças e assim que se acomodou, olhou pela janela e gritou:

— Me solta mamãe, olha lá, esqueci do Matitube!

Saiu do carro correndo com as suas perninhas curtas, foi até a árvore que parecia tão triste ali sozinha, abaixou-se como quem se põe em frente a uma criança, fez o gesto de pegar alguém pela mão e voltou sorrindo:

— Agora sim! — Disse feliz.

Nunca fizemos alarde, afinal todo o amigo imaginário some, e sumiu. Não sem antes termos um indicativo para o seu nome. Durante um jantar, estávamos todos reunidos, alguns familiares sentados à mesa, outros na sala pelos sofás e as crianças brincando pelo chão; a televisão estava ligada em algum canal que não recordo, parecia ser de documentários ou algo do tipo. Algo de repente chamou atenção de Pedro na televisão e ele , a nossa, dizendo:

— O homem tá falando do Matitube!

Paramos prontamente, passava uma entrevista do Autor Paulo Coelho explicando sobre o seu livro Maktub. Abaixei até ele e tentei explicar-lhe:

— Meu amor! Ele falou Maktub e não Matitube.

A resposta foi imediata, com um olhar firme e incisivo ele falou:

— Sim mamãe, foi o que eu disse, Ma - ti - tu - be! Parece que tu não entende?

A minha conclusão foi a mais óbvia, ele enrola as letras e só, porque é isso que nós adultos fazemos, nos limitamos ao que está na nossa frente e nada mais.

Era exatamente assim que ele falava desde pequeno, talvez por ter sido criado sendo a única criança entre os adultos, o seu vocabulário era bem extenso e claro. Este comportamento causava estranheza aos que o rodeavam, pois a sua aparência e tamanho não condiziam com as suas frases e nem mesmo com o impacto que causavam. Houve uma vez em que eu o mandei fazer algo que nem lembro o que era, mas lembro-me bem da sua resposta.

— Eu vou fazer, mas contra a minha vontade. Apenas porque tu está mandando! Entendido?

Outro episódio que tenho lembrança, foi de um dia qualquer, ele chegou do nada e questionou:

— Mamãe quando eu crescer, não vou mais precisar fazer o que tu manda?

— Se estudar, trabalhar e não morar mais comigo, sim! — Respondi como qualquer mãe educadora responderia.

Eu gostaria de ter algumas certezas agora, de alguma forma reviver a sua vida em minha memória, faz-me ter forças. Quando ele nasceu trouxe-me um motivo para viver e a sua vida é o motivo pelo qual ainda me mantenho aqui.

Desde pequeno aprendeu a ser forte, aos quatro anos de vida, passou por duas pneumonias. A primeira delas mais dura e de maior tempo de internação. Foram dias de horror, estávamos todos apavorados. A ideia de perder o meu filho amado era devastadora. Ele definhou rápido, passou por cirurgia, precisou de drenos e muita medicação. Tratava-se de uma bactéria muito resistente. O médico responsável num dado momento, em um dos nossos vários questionamentos em relação às condições de Pedro, nos disse que era um dia após o outro e que o risco era muito alto.

O meu mundo desabava cada vez mais.

Enquanto eu caia, ele mesmo com dor estava ali, tão pequeno e muito resiliente. Sofria, porém, mantinha-se firme, na minha visão, muito mais por nós do que por ele mesmo.

Sempre acompanhado de amigos, uns imaginários outros com histórias dolorosas de imaginar, mas todos com os seus ensinamentos.

A minha mãe era muito expansiva, vivia ali como se estivesse na sua casa e em pouco tempo conhecia todo o hospital, médicos, enfermeiros, os outros pacientes, do nosso quarto e os outros que ficavam mais próximos. Contou-me que no quarto ao lado havia um menino que estava a seis meses morando no hospital com sua mãe na ala oncológica. Era o Vítor de apenas cinco anos, diagnosticado com um tumor agressivo no cérebro sem chances de operar. Ele visitava o Pedro várias vezes por dia, levava os seus brinquedos para a cama do meu filho e dizia que estava lá para distrair o amigo.

Como revezávamos em ficar no hospital eu ainda não o conhecia. Vim a conhecê-lo, quando estava chegando para ficar com Pedro e, ao abrir a porta do quarto deparei-me com uma cena difícil, porém linda. O meu filho que estava praticamente preso a cama devido ao dreno, soro e outros equipamentos, o que por si só já era muito ruim, ainda estava em meio a uma crise de tosse devido ao estado dos seus pulmões, ao tossir doía ainda mais e Pedro chorava. De um lado da cama, minha mãe segurava uma mão, do outro uma coisinha pequena, um pingo de gente, de costas para mim, agarrado na outra. Enquanto Pedro chorava, Vitor dizia:

— Calma amigo! Eu sei que você vai ficar bem.

Foi como se naquele momento tivessem arrancado a alma do meu corpo. Além da dor de ver o meu filho sofrendo daquela maneira, assistir aquela criança que estava com sua curta vida condenada, dar apoio e conforta-lo, foi das coisas mais dolorosas que já presenciei.

Olhando para trás vejo que Pedro sempre foi protegido, eu acreditando ou não. Ele acreditava e isto bastava.

Como Vítor havia dito, Pedro demorou a recuperar-se, mas aconteceu. Quando saímos deixei os carrinhos que brincavam para ele como recordação, o que aconteceu com o menino, nós não sabemos. Tentamos contato com a família, mas nunca encontramos.

Pedro resistiu firme como se grande fosse, era assim que eu o via, como um pequeno adulto preso num corpo de criança.

Uma vez precisei o repreender, pois a minha mãe queixou-se dele estar desobediente, e com cinco anos ele disse-me, bravo:

— Eu devia ter vindo antes de ti!

Ficamos perplexos. Crenças, religiões, superstições, nesta hora veio tudo a mente. A aura que o envolvia era sempre mística, seus animais eram sagrados, o crucifixo estava sempre no pescoço, até para ir à escola, as suas alergias eram benzidas, a sua raiva sentia calado e ainda me dizia:

— Calma mãe, eu tenho a mesma vontade que tu tens de brigar e eu faço, só que faço tudo na minha cabeça. Resolvo e passa.

Esta frase é de quando tinha uns oito anos.

Assim foi o crescimento do meu pequeno estranho e incompreendido filho, com conselhos e ensinamentos que pareciam ser diretos a mim. Mais era meu tutor do que eu a dele.

Mas talvez nada tenha sido tão impactante quanto uma conversa que tivemos em maio de 2020. Hoje analisando, nem sei se foi uma conversa, mais parecia com um comunicado ou aviso, seja lá como poderia chamar. Nunca saiu de minha memória. Eu não sabia, mas era determinante, era uma daquelas conversas que dividem eras, o sim e o não, acreditar ou duvidar.

Se alguém pudesse ler os meus pensamentos ou este passo a passo das minhas lembranças, certamente teria a impressão desta historia tratar-se do meu filho, mas não. Para mim trata-se de uma história sobre entender. Decidir entender o mundo, a sua volta, e se não conseguir, tudo bem, talvez não precise da resposta, apenas faça.

Naquele dia meu filho chegou até mim e disse:

— Mãe, eu li sobre a história de um menino em outro país, que teve uma doença rara e permaneceu em coma durante 8 anos. Ninguém tinha mais esperança, mas num determinado momento houve uma mudança na equipe de enfermagem e um dos novos enfermeiros ao passar dos dias, prestando mais atenção, percebeu que havia uma movimentação diferente nos seus olhos, algo tão sutil que nem os aparelhos detectavam. Começaram a fazer muitos testes, entenderam que ele estava consciente. Depois de um longo tratamento ele saiu do coma.

Senti-me estranha, mas precisei perguntar:

— É mesmo meu filho? Mas por que estás me dizendo isso?

Foi quando ele pegou nos meus braços quase que me sacudindo, olhou no fundo de meus olhos e disse:

— Se algum dia eu ficar em coma, não desligue os aparelhos, porque eu vou voltar!

Respirei fundo, tentando não transparecer o meu abalo nauseante, pois quando uma mãe houve algo assim do seu bem mais precioso, ela vive automaticamente a situação, não tem como evitar. Com um aperto no peito e os olhos marejados falei:

— Como assim filho?

— Mãe, vão perguntar para ti, só entende que não deve desligar os aparelhos, porque a gente volta!

Já se passaram alguns anos daquela conversa, não sei ao certo quantos. Mas não há um dia em que eu não me lembre daquele diálogo. Antes ao lembrar eu sempre pensava no pior que poderia acontecer a um pai, perder o filho. Não se engane, o pior se apresenta de várias maneiras diferentes. Não adianta se preparar, pois ele sempre irá surpreender-te.

A vida nos ensina de muitas maneiras, nos manda avisos, seja através de uma borboleta entrando pela janela trazendo boas noticias ou com uma escada atravessada na calçada do seu caminho. Passar ou não passar?

Hoje não tenho mais medo de ver um anjo, convivi com o meu a vida toda e conheço bem a sua carinha. Ele nunca me abandonou, mesmo não acreditando nas suas coisas até então bobas e tenho certeza que nunca me abandonará. Aliás desde que adoeci, ele visita-me todos os dias. Agarra a minha mão e diz:

— Mãe eu sei que você esta ai!

Eu ainda não sei como responder, mas ficarei aqui e sei que ele também ficará. Porque aquela conversa de anos atrás, não era sobre ele, era sobre mim.

O meu maior desejo era poder dizer a ele, que após aquele jantar onde ele me disse que eu não entendia, eu fui procurar. E hoje entendo o seu pequeno Matitube.

Maktub vem do árabe, “já estava escrito” ou “tinha que acontecer”.

TEMA: Superstição