EVOLUÇÃO - CLTS 12

A capitã estava em sua segunda hora de repouso, porém o sono não vinha. Após varias missões infrutíferas, sabia que aquela certamente teria o mesmo desfecho. Não só ela, mas uma boa parte de seu povo começava a duvidar dos fatos históricos, tudo tinha ares de um grande conto de ficção para explicar o inexplicável, produtos de mentes primitivas. Outros caminhos deveriam existir.

O som estridente seguido das luzes vermelhas piscantes a tirou de seus devaneios. Atordoada, ainda em seu beliche não fazia ideia do motivo de tanto euforia. Estavam sós naquela vastidão, há meses não sentiam nenhuma oscilação nas placas tectônicas.

Pelas projeções das cartas náuticas que evidentemente não eram confiáveis, navegavam rumo á calota polar, sonhavam ali encontrar vestígios da grande megalópole de Belo Horizonte, uma das mais desenvolvidas cidades do mundo antigo. Fábulas descreviam suas largas avenidas com veículos motorizados, seus edifícios projetando-se acima das nuvens e os belos jardins povoados de plantas e criaturas fantásticas. Meras especulações que alimentavam o sonho da salvação de sua espécie.

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Arquivos antigos diziam que quando um cometa passou bem próximo à Terra sua força gravitacional alterou seu movimento de rotação, mudando também a posição dos polos. As placas continentais derivaram afundando no oceano, por outro lado, a gravidade terrestre atraiu grande quantidade de gases congelados aumentando em três vezes o volume dos oceanos. Foi o fim de toda a terra seca do planeta.

Cientes da possível catástrofe, os antigos idealizaram abrigos subterrâneos indestrutíveis na tentativa de preservar a raça humana. Centenas de anos mais tarde, quase tudo havia desaparecido. A Esfera era o último foco de vida e as informações de um mundo utópico fragmentadas.

A deriva no Mar Infinito a cidadela automatizada, envolvida por uma imensa casca de titânio com seus giroscópios e laboratórios tecnológicos buscava porto seguro. Flutuou sem destino, arremessada de um lado a outro pelas intempéries da nova realidade até que por acaso uma falha nos instrumentos a fez ancorar dando inicio ao despertar de seus ocupantes.

Milênios mais tarde, o planeta esteva em paz, toda a vida terrestre havia sido exterminada, poucas espécies marinhas resistiram, o antigo mundo se tornou fantasia, poucas informações restavam e quase sempre mal interpretadas por aquela gente que reaprendia a viver.

Enfrentando uma nova ameaça de extinção, o povo da Esfera despachou varias missões em busca do passado desejando preservar seu futuro e ali estavam, procurando por uma cidade que possivelmente jamais existiu.

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Na ponte de comando o espectro-sonar detectou uma enorme bolsa de ar encravada na rocha abaixo do gelo. Poderia ser um abrigo, poderia ser uma falha no equipamento, mas até então era a esperança.

Navegando por uma estreita as manobras tinham que ser precisas e a velocidade reduzida. O silêncio só era rompido pelo retorno do sonar, a pequena tripulação mantinha-se alerta com olhos vidrados nos aparelhos.

Aquele som sincronizado causava uma estranha sensação na capitã, ela em seu intimo sentia certa repulsa ao mirar as faces da tripulação, um asco quase demoníaco, tinha momentos que desejava retalhar aqueles rostos insípidos, fatia por fatia, ver vermelho do sangue escorrer esculpindo ali uma obra única. Ela se controlava, sabia que a demência era um dos males que assolava sua gente, e sua missão estava clara, desta vez conseguiriam seu objetivo.

Na tela de ressonância a enorme estrutura se desenhava, seria a criação dos antigos? O abrigo seguro tão desejado?

Fora da passagem, a embarcação emergiu numa extensa lagoa, as luzes foram acesas afastando a escuridão.

Acionando um botão, a porta blindada foi aberta. Pela primeira vez em milênios um pedaço da história foi revelado. Mais do que qualquer sonho das equipes de ciências, debaixo daquela abobada rochosa partes semi preservadas de uma cidade, seus prédios com janelas de vidros e ruas com pavimentação asfáltica, um verdadeiro milagre em meio a tanta destruição.

O desembarque da equipe de exploração foi um misto de êxtase e precaução. Invadiam um habitat desconhecido, qualquer movimento errado colocaria tudo a perder, na verdade não existia um protocolo, aquilo era tão inesperado, as opiniões divergiam: Buscar apoio ou explorar? O espirito aventureiro de quem por anos se viu enclausurado em uma bolha de metal falou mais forte. Não sairiam dali sem boas histórias para contar.

O acampamento foi montado na pequena praia, as ruinas da antiga civilização agora delineadas pela luz artificial alimentada com baterias trazidas do submarino tiravam o folego. O canhão de luz percorreu primeiro a abobada que protegia o ambiente. Como mostrada pelo sonar, era impossível naquele instante de precisar toda sua dimensão. Logo a frente do grupo, estruturas de concreto e vidro pareciam ser as habitações antigas, algumas bem danificadas ou pelo efeito da passagem do cometa ou pelos abalos sísmicos desde então. Perdidos em conjecturas, a equipe de desembarque necessitou de um longo tempo para se adaptar. Em meio ao cadenciado som das águas investindo sobre as rochas, um murmúrio desconhecido assemelhando-se ao coaxar de rãs, algo indefinível para quem desbravava um novo mundo, podia ser ouvido.

Nas primeiras horas a prioridade foi a segurança, criaram um perímetro dentro do alcance da luz enquanto mais equipamentos eram desembarcados, tudo muito bem registrado pelas câmeras.

Em meio a novidade, o tempo passava sem ser percebido, os arredores ao serem mapeados, enviavam detalhes ao o gerador de imagens da nave que aos poucos montava um quebra-cabeças tridimensional acrescentando novos detalhes naquilo que poderia ter sido o grande refugio para a antiga humanidade.

Confirmada a segurança estrutural do abrigo, ignorando aquele gemido hipnótico que até então deveria ser provocado por pequenas criaturas marinhas ainda não descobertas, já era hora de iniciar a missão a qual foram incumbidos.

A capitã sentia o peso da tarefa, ela já demonstrava os sinais da doença que prometia ser o fim da existência de sua raça, mesmo antes de iniciar a viagem. Lapsos de memoria, irritação e ansiedade se manifestavam de forma sistêmica. Conseguiu esconder o início da demência em todos os exames antes da missão, mas agora fraquejava.

Na praia ao receber o relatório de sua oficial de antropologia, aquele ímpeto voltou, era quase impossível olhar em seu rosto. A medida que seus ouvidos eram agredidos pela voz irritante da subordinada, tinha vontade de atingir sua face, rasgar em finas fatia aquela pele clara, arranca-lhe os cabelos negros, tirar das orbitas o verde daqueles olhos. Desejava ter em suas mãos a quente massa de carne que tanto abominava.

Conteve-se, queria ser mais que um número no rol da existência. Prezava sua individualidade, em seu íntimo queria fazer falta para alguém, desejava ser importante e não apenas uma engrenagem fácil de ser substituída. Sua missão, sua redenção.

De todas as construções, uma se destacava. Segundo observações foi construída após o cataclisma. Projetava-se para dentro do mar e não foi inundada por ele como algumas outras, estava ligada às habitações por meio de cabos aéreos sustentados por vigas improvisadas, especulava-se tratar de uma estação de força. Definiram explora-la antes de iniciarem as buscas pela possível salvação.

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Nas últimas centenas de anos, a demência ameaçava a população da Esfera. Indivíduos da comunidade muitas vezes se tornavam destrutivos, mortes por agressão ou suicídio tornavam se cada vez mais comuns, sabotagens nos equipamentos intencionais ou não ameaçavam o último assentamento humano no planeta.

Todas as tentativas médicas foram experimentada, até que a ciência apelou para antigos mitos.

Nos primórdios da existência da comunidade, histórias de que o planeta possuía vastas regiões cobertas por terra com suas cidades crescendo em direção aos céus voltou a alimentar as esperanças de uma gente condenada.

A divisão cientifica recuperou fragmentos de arquivos que davam como certa a possível localização de uma delas. A equipe deveria encontra-la e de lá extrair amostras genéticas dos seus ancestrais extintos.

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Os trabalhos eram realizados com cuidado, qualquer detalhe podia ser importante para a missão. Naquilo que consideravam a estação de energia, apesar dos anos, os rudes equipamentos se encontravam em bom estado, foram construídos com materiais resistentes ao danoso efeito da maresia. Uma alavanca prometia destravar um conjunto de engrenagens liberando pás moveis que ao sabor das cadenciadas marés acionariam um dínamo gerando energia. Apesar da Esfera ser alimentada por energia solar, nos arquivos históricos possuía plantas de usinas eólicas, hidrelétricas e maremotrizes como naquele caso. Não era nada complexo.

A decisão de acionar os equipamentos não parecia ser viável, poderia abalar as estruturas daquele impressionante abrigo.

Oito dias de árduo trabalho se passaram. Objetos foram catalogados, pequenos utensílios recolhidos para uma futura analise, mas até o momento nenhum vestígio fóssil do povo que habitou aquele local.

Além das luzes do submarino e do acampamento na praia, tudo era a mais pura escuridão. O stress causado pela expectativa já começava a pregar peças.

Difícil dizer quem primeiro percebeu. Vultos fantasmas se moviam na penumbra, primeiro bem distantes e disformes, depois se aproximaram tomando certa forma. Estando sós naquela cripta, suspeitaram da demência. Deveriam abandonar a prudência e terminar logo suas tarefas.

Naquele que seria o nono dia de pesquisa, a segunda auxiliar de antropologia se aventurou bem além da proteção das luzes. Um grupo de busca saiu para encontra-la.

O murmúrio que até então era abafado pelas ondas aumentou , não podia ser de nenhum anfíbio, nenhum vestígio animal foi encontrado.

Antes nunca experimentado, o pavor tomou conta do grupo que jamais se preparou para tal confronto. As sombras avançaram contra a luz, pedras arremessadas contra os equipamento deixou os exploradores na total escuridão, o grupo se dividiu em busca da salvação.

A Capitã e sua oficial se refugiaram na casa de força. Os gritos de horror vindos do acampamento pressionavam a tomarem uma decisão. Tudo estava perdido, do lado de fora a porta golpeada ameaçava ceder. Quando o vidro da janela estilhaçou já era tarde. Desesperada, a Capitã acionou a temida alavanca.

Um rangido de metal se esfregando fez cessar o coaxar das criaturas. A luz amarela penetrou o local, do lado de fora os gritos de dor e medo pareciam não ter fim.

Protegidas pelas antigas paredes, vislumbravam criaturas com mais de dois metros de altura se contorcendo em agonia. Uma vida inteira na completa escuridão deixaram seus olhos sensíveis a qualquer iluminação.

Próximo de onde existia o acampamento uma das tripulantes jazia em pedaços sob os pés de um daqueles monstros de pele esverdeada, braços alongados e garras em lugar dos dedos, certamente o milagre da evolução adaptou aqueles seres para sobreviverem na noite eterna, se apoiando com as mãos no solo, de suas garras nenhum ser vivente das águas escaparia.

Com a energia, monitores foram acionados, imagens espetaculares de um mundo antigo desfilavam nas telas. As refugiadas observavam atônitas pessoas caminhando por ruas congestionadas, e... Eram todas diferentes.

Homens e mulheres, altos e baixos, nenhum rosto se repetia. Como elas, aquelas pessoas não eram clones, eram indivíduos únicos, cada um sua própria beleza.

Um único fragmento fóssil significaria a salvação das mulheres da Esfera. Uma nova sequência genética cessaria os males da demência causada gerações de clones replicados das células de outros clones. A degeneração celular seria contida.

Mas estava tudo perdido, mesmo que chegassem ao submarino nada levariam além das informações. Manterem-se vivas e escaparem das criaturas poderia ser impossível, elas estavam se acostumando ao efeito da luz. Não tinham como esperar, correram pela areia evitando os monstros mais próximos, a Capitã saiu na frente seguida de perto por sua companheira, poucos metros antes de tocar a rampa que daria acesso ao veiculo, uma última criatura devia ser evitada.

O monstro despertou de sua cegueira, investiu contra as sobreviventes, a Capitã foi arremessada contra a areia, sua amiga não teve sorte, foi desfigurada pelas garras do agressor.

Refazendo-se da queda, acobertada pelo sacrifício da oficial, a Capitã chegou ao submarino com a criatura em seu encalço. No painel de controle, acionou o fechamento das comportas, a luz de alerta avisou que algo estava errado. A escotilha principal permanecia aberta impedindo a submersão. Acionou novamente o botão, acionou pela terceira vez e a luz se apagou.

Enquanto o submarino se ocultava nas águas geladas, ela foi conferir a causa do mau funcionamento.

No chão da câmara de descompressão, derramando um sangue viscoso encontrou a solução de seus problemas na cabeça decepada da mais estranha evolução humana.

Tema: viagens submarinas

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 15/08/2020
Reeditado em 18/08/2020
Código do texto: T7036443
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