FANTASMINHA PREFERIDA

Recordo que tinha cinco anos e brincava com ela todos os dias no jardim. De forma que com o passar do tempo, eu já a esperava naquele horário costumeiro. Ela chegava sem que eu pressentisse, quando via já estava sentada ao meu lado sorrindo. Parecia uma boneca. Toda arrumadinha, de vestidinho branco, de cabelos loiros encaracolados e longos. Os olhos eram tão azuis que pareciam duas pedras preciosas. Na hora de ir embora ela me abraçava e sumia das minhas vistas.

Demorou vários meses, até que certo dia, mamãe ouvindo minha conversa e risadas com ela, foi até o jardim e ficou espiando. Como não viu ninguém, me perguntou com quem eu falava. Imediatamente respondi que estava brincando com a menina. Ela tomada de susto, chamou-me para dentro de casa e me fez o maior interrogatório. Coisas que eu não sabia responder, aliás, com a pouca idade, não tinha noção do que estava acontecendo,mas, ela queria saber quem era a menina, de onde ela veio e com quem. Como tinha entrado no jardim. Meu coração batia descompassadamente. Não sabia o que dizer. Olhava para mamãe com os olhos marejados e nada falava, até que ela foi vencida pelo cansaço.

Naquela noite, lembro que me colocou para dormir no seu quarto.

No outro dia, depois do café, levou-me à casa de Dona Clotilde para que ela me benzesse. Pensei que estivesse doente. A mulher colocou-me perto dela pôs a mão na minha cabeça e sussurrava, mas eu não conseguia escutar nada que ela dizia.

Ao chegar em casa, mamãe não me proibiu de descer ao jardim. Chorei muito, porque sabia que Mariana viria brincar comigo. Tomei aquilo como castigo. Fiquei triste o dia todo.

Passei a semana inteira sem ir ao jardim.

As férias de mamãe estavam no fim. Assim que voltou a trabalhar, fiquei com a babá e a empregada, mas, porém, ela recomendou que não me deixasse brincar sozinho no jardim, ela teria que ir comigo.

Desci ao jardim com Clara, mas, nesse dia, Mariana não veio.

Senti muita saudade, mas, fiquei em silêncio.

No primeiro dia de trabalho, ao pôr os pés em casa, foi a primeira coisa que perguntou a Clara, foi se ela tinha visto a menina que vinha brincar comigo. A resposta negativa dada por Clara, deixou-a mais tranquila.

Acho que pensou que a “benzeção” tinha sido infalível.

No outro dia, acordei com Mariana sentada na minha cabeceira. Sorri de felicidade. Descemos juntos para a cozinha.

Sentamos à mesa e Clara serviu meu cereal, perguntei à Mariana se ela também queria. Quando a babá ouviu o que eu disse, deu um grito e deixou a bandeja cair no chão e caiu em seguida. Tomei o maior susto. Mariana me acalentou e foi embora, fazendo um sinal de segredo com os dedinhos sobre a boca.

O mordomo veio acudi-la. Chegou também a cozinheira. Ambos cuidaram da babá. Nem dou confiança, saio para o jardim. Lá está Mariana, sentada no banco me esperando. Quando chego, ela me pergunta sobre a babá, respondo que estão cuidando dela e sento ao seu lado. Brincamos a manhã inteira.

Eu tão inocente nem imaginava que quando mamãe chegasse ia ser o maior chororô. O pavor de mamãe era visto em seus olhos. Mal chegava em casa, ia me interrogar de olhos arregalados...passei a mentir para ela, a partir do dia em que ao querer saber sobre Mariana, abraçou-me e começou a chorar. Acho que fiz bem em não falar a verdade, assim a tranquilizaria e podia brincar à vontade com Mariana.

Os dias foram passando e em determinada visita, indaguei sobre onde ela morava, o que prontamente me respondeu que qualquer dia ia me levar em sua casa.

Num sábado à tarde, estava jogando bola na calçada com meus vizinhos, quando a vi na varanda da casa da frente. Fiquei parado, olhando para ela, sem saber o que dizer. Ela sorriu e balançou a mão em cumprimento e entrou na casa.

Deixei a brincadeira e entrei também. Nunca imaginei que ela morasse ali, sem que não a tivesse visto antes. Fiquei pensativo.

Estava prestes a completar seis anos. Já sabia ler e escrever muitas coisas. Ela deveria ser da minha idade, como que eu não a via na escola, uma vez que Lucio e Júnior estudam na mesma escola que eu!

Calei-me, pois, tinha cisma de falar sobre o assunto com mamãe.

No dia do meu aniversário, no meio dos parabéns, eis que vejo Mariana junto com meus outros amiguinhos, sorridente e me aplaudindo. Não via a hora de terminar a música e eu apagar a vela para ir falar com ela. Num piscar de olhos, não a vi mais.

Deixei todo mundo comendo bolo e corri em frente de casa para ver se ela estava por lá, mas, não estava. Resolvi que no outro dia, iria à casa dela para ver porque se escondeu de mim e foi embora.

Acabei esquecendo.

No dia de finados, mamãe e eu fomos ao cemitério levar flores no túmulo do meu avô. Quando lá chegamos, eu a vi de costas a alguns metros de nós. Enquanto mamãe estava envolvida conversando com vovô, fui atrás dela. Demorei a encontrá-la. Vi-a de longe, sentada num jazigo pintado de cor-de-rosa e com muitas florinhas e borboletas. Cheguei correndo e sentei ao seu lado. Ela acariciou o meu rosto. Ficamos brincando por ali, até que em dado momento olhei na lápide do túmulo e vi que a fotografia que estava lá era sua e também vi escrito seu nome, data de nascimento e data da sua partida e lembrei que no túmulo do vovô era igual. Fiquei meio assustado, mas, quando me virei para perguntar porque sua fotografia estava ali, ela tinha desaparecido.

Voltei correndo para onde estava mamãe e fiquei em silêncio, com o coração aos pulos. Não estava entendendo nada. Só sabia que um medo enorme tomava conta de mim. Segurei na mão da minha mãe ela queria saber porque minha mão estava tão gelada e suada. Não respondi. Ela me olhou e viu que eu estava pálido, com certeza, porque se abaixou tomou meu pulso, sentou-se no túmulo do vovô e me pôs no colo. Convidei mamãe para irmos para casa.

No percurso de volta para casa, ela me perguntou o que eu estava sentindo. Respondi que sentia medo e que não queria mais ir ao cemitério, nunca mais.

Depois desse dia, Mariana sumiu, mas isso não me aborreceu. Não tinha entendido direito, porém algo me dizia que era melhor não querer vê-la.

Depois do almoço eu ia à escola, a babá me levava. Quando saíamos no portão, olhava de esguelha para a casa da frente.

Passei a achar que a casa da vizinha era triste.

Quando os meninos me gritavam para jogar bola, eu ia, mas, volta e meia meu coração disparava com medo de vê-la no alpendre da sua casa.

Um dia tomei coragem e convidei mamãe para voltarmos ao cemitério e ela me perguntou se meu medo havia se dissipado. Nem respondi.

Era no fim da tarde. Fomos até lá, pedi que ela comprasse dois buquês. Eu também queria levar um. Disse que queria meu buquê com rosas cor-de-rosa. Ela sorriu e falou que eu não poderia estar querendo dar rosas daquela cor ao vovô e eu respondi que não eram para ele.

Ao chegar, ela pôs as rosas no túmulo dele e eu caminhei para o jazigo de Mariana. Mamãe foi correndo atrás de mim. Deixei as flores sobre a lápide.

Mamãe ficou em silêncio. Tomou-me pela mão e falou: - Desde quando você sabe sobre Mariana? Respondi que era com ela que eu brincava no jardim.

No caminho de volta, ela me contou como se deu a partida da minha fantasminha preferida e de como sua família sofreu com sua perda. Embora assustado com a revelação, entendi o que é morrer.

Creusa Lima
Enviado por Creusa Lima em 08/11/2020
Reeditado em 09/11/2020
Código do texto: T7107152
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