LAGOA DOS BASTARDOS - CLTS 13

Os tortuosos caminhos pelos quais seguimos nem sempre são aqueles que escolhemos. O destino nos prega peças ao levar-nos por sendas obscuras que jamais entenderemos.

Não sabia o que dizer desde o momento em que me abordaram na saída do trabalho, já não era o mesmo homem. A notícia trazida pelo advogado engomadinho e seu sócio me arrebataram daquela existência maltratada de salário mínimo elevando-me a um quase magnata proprietário de terras e investimentos.

Poderia ser engano, até mesmo brincadeira de mau gosto. Não duvidei nem acreditei. Deixei me levar pela notícia como um naufrago a deriva.

A primeira semana da minha nova vida se passou quase que num instante. Os advogados providenciaram meu desligamento da empresa sem ao menos me consultarem. Levaram-me para uma enorme residência na parte nobre da cidade, seria algo provisório, diziam. Meu cérebro anestesiado pela mudança tentava organizar as novas informações. Tinha até medo de mover-me dentro da mansão, era tudo muito limpo e arrumado, se por acidente algo se quebrasse meu salário do mês não cobria, alias agora nem salário eu tinha.

No domingo à noite viajamos do Rio à Belo Horizonte num voo particular. Em meio aos seguranças sentia deslocado deixando para traz tudo àquilo que conhecia, mais parecia um filhote acuado numa matilha faminta.

O testamento foi lido na sala do décimo andar de um prédio com paredes de vidro que reluziam o sol da manha.

“por este instrumento devidamente registrado e com as testemunhas de praxe nomeio Robson Augusto da Silva, meu sobrinho neto o único herdeiro de minhas posses...”.

Seguiu-se um rol de várias propriedades e tantas outras palavras que nem consigo repetir, como condição deveria residir na fazenda da família. A propriedade se escondia entre as belas montanhas de Minas. Um ambiente bem diverso do subúrbio carioca ao qual estava acostumado.

Saímos do asfalto da rodovia por uma estrada calçada com pedras, cercada dos dois lados com tábuas brancas, nos campos onde antes dominava o café, agora belos exemplares de manga larga galopavam.

- Tudo que o senhor vê e mais além, faz parte de sua herança.

A voz do advogado parecia distante, quase uma mentira maldosa. Nem assim esbocei reação. Como aqueles animais, sentia-me guiado pelos cabrestos invisíveis do destino.

A casa parecia aqueles palacetes rurais de dois pavimentos com dezoito janelas azuis ladeadas pelo branco infinito das paredes. Dominando a paisagem ao fundo, a magnifica serra como um animal dócil repousava. Palmeiras enormes formavam o corredor até a entrada principal, a direita corria manso o rio contornando o pomar. Um abacateiro doente estava sendo removido, por instantes os trabalhadores deixaram sua tarefa observando nossa passagem. Subimos pela escada em espiral dupla que terminava na varanda. Percebi que o andar de baixo fora transformado em garagem e área de serviço.

Os degraus vencidos pelos passos trêmulos me conduziram a outro universo que jamais sonhara.

Seu Jairo, o capataz e dona Margarida sua esposa que também era a governanta me aguardavam com seus sorrisos caboclos.

O casal como as maioria dos funcionários residiam numa pequena vila distante da casa grande, tudo construído e mantido pela minha até então desconhecida família.

O capataz era bem mais espontâneo que a esposa. Saudou-me com ar bonachão, sua barriga vibrava ao ritmo da risada frouxa. Naquele momento não imaginava o quanto satisfeitos estavam com minha chegada. Achei apenas que desejavam ser cordiais ao novo patrão.

Entramos sala de estar muito ampla e mobilhada com peças antigas, na parede oposta a galeria de fotos expunha pinturas a óleo dos antigos senhores da propriedade. Ao lado do patriarca, o espaço vazio aguardava a encomenda que fora feita a um artista da capital.

Naqueles primeiros dias tudo era novidade. A simplicidade do casal se tornou meu porto seguro, me impedia de ser seduzido por tanto poder. Ansiava pelo café da manhã e a prosa sobre os afazeres que seriam cumpridos até a tarde.

Com Seu Jaime conheci cada recanto da propriedade, quando finalmente paramos na beira de uma pequena mata. O som das águas caindo sobre as pedras era sedutor. O capataz me fez desistir do passeio, tanto pelo passar das horas quanto pelo perigo de acidente em terreno irregular.

Mais tarde, pela boca de outro empregado, descobri que a cachoeira e a lagoa que ela formava se tornou uma espécie de tabu na região, os mais velhos recusavam a se aproximar, contavam que nas noites de lua cheia o brilho das águas era tão sedutor que muitas vidas sucumbiram a seus encantos, outros diziam que almas perdidas assombravam os arredores. Tantas precauções aguçavam minha curiosidade.

Depois de um tempo, numa sexta feira de outubro, o fim da tarde castigado pelo sol convidava ao ócio. Os administradores geriam a empresa trazendo informações do andamento dos investimentos. Eu não entendia muito daquilo apesar das lições particulares de economia, viveria cinco vidas antes de realmente me inteirar daqueles assuntos maçantes. Na lida da fazenda sentia mais prazer. Foi então que Seu Jaime preocupado com uma das éguas que possivelmente perderia o embrião se distraiu me entregando as chaves do carro. Após o caso resolvido voltaria de carona com algum dos outros funcionários. Em nada eu poderia ajudar, melhor ir descansar.

Mas a tarde estava mesmo quente.

Tomei o caminho da lagoa, sentia aquele impulso silencioso acelerando meu coração. Algo tão belo não deveria ser proibido.

Estacionei sob a sombra de uma paineira, a pequena trilha seguia adiante entre ipês e jatobás, bastava alguns passos para alcançar o espelho d’água que refletia as copas das árvores.

Fiquei estático, meu corpo foi tomado por um êxtase jamais sonhado. Alguns metros a minha frente, uma linda mulher nua sentada sobre as pedras parecia chorar comtemplando sua própria tristeza.

Os derradeiros raios de sol valorizavam ainda mais seus contornos acobreados. Sentindo-se observada virou com movimentos suaves, por instantes nossos olhos se cruzaram. Pude naquele momento experimentar o conflito entre a alegria e a tristeza que se misturando me deixava ainda mais confuso.

Antes de poder dizer algo, ela se atirou nas águas. Pensei tê-la envergonhado, temi aproximar, chamei-a sem resposta.

- Moça, moça,... Não se preocupe... Estou morando na casa grande...

Não havia sinais de que alguém além de mim estivesse naquela mata. As águas ondulavam ao sabor do vento.

Aquela imagem sedutora me acompanhou no caminho para casa. Não sabia como, mas teria que reencontrá-la.

Discretamente confidenciei a Seu Jaime meu repentino encontro, omiti porém a nudez, poderia ser alguma parente.

Surpreso censurou minha aventura, jamais deveria ter ido à lagoa, ainda mais quando o sol estava prestes a se por. Com certeza a fadiga me pregava peças. O local não recebia visitas, ninguém ousaria entrar em suas águas. Não deveria voltar ali. Era perigoso andar pelos arredores sem conhecer bem o terreno.

Após o jantar, dona Margarida me chamou de lado.

- O sinhô reza uma Ave Maria prus minino morto.

Saiu sem dizer mais nada. Sua recomendação pareceu estranha, não entendi a que se referia.

Em meu quarto, a noite não me trazia sono. Remoía os acontecimentos do dia, aquela bela mulher me atraia de forma estranha, não havia luxuria, sua melancolia aquecia meu peito. Um relâmpago iluminou as montanhas lá fora, seguiu-se o som do trovão, não demorou para que o salpicar das gotas de chuva nas telhas de barro começassem a me embalar. Ainda tive tempo de fechar a janela antes de render-me aos lençóis de cetim.

Despertei ao ouvir o choro de criança. Já não chovia. Por um tempo não me incomodei. Dona Margarida poderia estar recebendo alguém. Algumas pessoas conversavam, não reconhecia as vozes. Me vesti para descobrir o que estava acontecendo, talvez precisassem de mim.

Passei pela escuridão da cozinha, desci ao andar inferior pela pequena escada de madeira que rangia sob meus pés.

Agora só a porta cerrada me separava daquele mistério. Empurrei-a que cedeu lentamente.

Gelei dos pés a cabeça.

Na cama imunda, a linda mulher da lagoa ardia em febre. Um empregado que não conhecia segurava de mau jeito o recém-nascido que chorava com toda a força de seus pulmões. No canto, um senhor imponente com seu chapéu encobrindo o rosto lamentava enquanto a senhora distinta sorria impiedosa.

- Ande logo, de cabo desta peste. Ordenou sentindo enorme prazer.

Revoltado, intervi na discussão. Sem me dar atenção, o homem enrolou a criança num trapo e ao tentar retirar-se coloquei-me em seu caminho.

Por um momento perdi a respiração.

Meu corpo se desfez em fumaça ao ser atravessado pelo empregado. Tentei ainda segurar em suas roupas em vão. Eu não passava de um espectro, tudo que tocava passava através de mim. Cai de joelhos olhando o casal à minha frente.

Estava diante do primeiro senhor daquelas terras. Mesmo emoldurado na sala de estar, ladeado por seus herdeiros, o rosto frio ainda estampava aquele desprezo por todo ser vivente.

Sem explicação, memorias de vidas alheias atingiam minha mente turvando meu discernimento.

Um vil pacto era criado.

Em sua sede de prazer, o senhor tomou como amante involuntária a mais bela cativa, não passava de uma criança. Por sua vez, caso germinasse a semente, o fruto bastardo seria entregue a sua mulher, que dele disporia como lhe aprouvesse. Inúmeras vezes o capataz havia se incumbido de dar fim ao rebento, no começo acompanhado pela patroa arremessava a criança nas águas da lagoa e ela se divertia ao ver o fardo afundar.

Nem todo mal há de perdurar, nem todo o sofrimento pode se suportar. Os anos se passaram, bastaram as rugas aparecerem e o patrão passar mais tempo no leito da amante naquele quartinho afastado, que o ciúme cobrou seu quinhão. Aquele seria o último mestiço a nascer sob seu teto.

O capataz recebeu sua tarefa, entregaria às águas outro inocente enquanto na casa, a mãe sofreria seu destino.

Coitado do homem testemunha de tanta maldade, o coração mole apiedou-se da infeliz, da afeição nasceu o amor, mas ele nada podia fazer, apenas avisou dos planos da sinhá.

Aceitando sua sina, como último desejo, pediu que salvasse seu filho, seria este sua própria redenção.

Com a criança nos braços, tomou a direção da lagoa, no caminho só parou ao encontrar uma parenta distante, o fardo foi trocado. Naquele dia apenas um pobre leitãozinho se afogou enquanto o pequeno bastardo cresceria perdido pelo mundo.

Com a morte da escrava, o trato estava desfeito. Não se passou muito tempo, temendo ser novamente trocada, a dona da casa também teve seu filho, como castigo, só a criança sobreviveu.

Toda noite de lua cheia, nas margens da lagoa, os bastardos choram por sua mãe. Pescadores, mateiros e outros que se aventuraram ali, encantam-se ao ver a mulher de tanta beleza, a maioria enredada em seus braços são arrastados para águas, os libertos da luxuria vivem para contar a historia.

Quase sem fôlego, senti alguém me arrastando, a água estava fria e meu corpo enlameado. Não sabia como parei ali, estava muito abalado, pesadelos e realidade não se definiam. Caminhei um bom tempo até chegar em casa.

Na sala de estar, encontrei Seu Jaime que com muita alegria pendurava minha foto na galeria. Era o primeiro negro ao lado dos senhores do casarão. Eu vi por gerações uma mãe sendo levada para cada filho perdido até que o circulo se fechou.

Sem ter se casado, muito menos tido um filho, em seu leito de morte vi quando o último senhor da fazenda repetia lentamente as palavras sussurradas em seu ouvido:

... nomeio Robson Augusto da Silva, meu sobrinho neto, o único herdeiro de minhas posses.

A mulher da lagoa finalmente sorriu.

Tema: Lugares amaldiçoados, sete pecados

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 27/11/2020
Reeditado em 04/12/2020
Código do texto: T7122094
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