Tragédia em Tiradentes

Tiradentes, 31 de outubro de 2018

As irmãs Caroline e Jaqueline Almeida, ambas de 20 anos de idade, estavam na histórica cidade de Tiradentes, no interior de Minas Gerais, para curtirem o evento “Música na Praça”, que ocorreria entre os dias 30 de outubro e 03 de novembro. As irmãs vieram com seus respectivos namorados, Fernando e Breno, de idades próximas às suas namoradas. Repousavam-se em uma das tantas pousadas que povoavam a cidade, próxima ao Largo das Forras, principal praça da mesma.

Era por volta das 22 horas. O quarteto se encontrava próximo ao palco no centro da praça e assistiam a um concerto. Repentinamente, Jaque, após conversa rápida com Breno, se despede dos amigos.

- Uai, já vai? – perguntou Carol, surpresa

- Ainda está cedo. – disse Fernando.

- Estou com sono. – respondeu Jaque

- Sono... sei... – disse Carol

Jaque a olha torto.

- Só estou cansada para assistir ao show. Andamos bastante hoje.

- Verdade. – disse Carol – Vai lá. Daqui a pouco a gente vai também.

Breno e Jaque se despedem do casal e caminham para sair do centro do Largo. Atravessam a rua que circunda a praça e adentra em uma rua lateral à pequena Capela do Senhor Bom Jesus da Pobreza. Caminham por uma pequena rua de paralelepípedo, em contraste ao peculiar calçamento característico do centro histórico de Tiradentes.

- Finalmente meus pés poderão descansar dessas malditas pedrinhas. – reclamou Jaque, ao pisar no solo calçado de paralelepípedo

Breno riu alto.

- Te entendo. Eu porque já morei aqui na região, estou acostumado com essas pedras. Mas realmente elas cansam um pouco.

- Nada como o asfalto de BH.

- Deixa de ser menina da cidade grande, sô! – brincou Breno, levando uma cotovelada nas costelas

Poucos minutos depois, o casal adentrou no hall da pousada.

Em dado momento, durante o concerto, Carol vira o foco do olhar para Fernando e lhe fala:

- Amor, estou com fome. Vamos achar algum lugar para comer?

- Vamos, vamos sim amor. – disse seu namorado. Ambos começaram a sair do interior do Largo das Forras, ultrapassando o palco. – Acho que, por aqui, deve ter algum lugar para comermos. – disse.

O casal saiu do Largo na direção contrária de Breno e Jaque e subiu uma pequena rua de pedras. Carol fitava todos os cantos e, percebendo que o local estava deserto, perguntou ao namorado:

- Aqui não é meio perigoso a noite não?

- Não, não. E nós vamos logo aqui!

Alguns passos depois, o casal adentrou em uma lanchonete. Havia um casal de senhores sentados e uma moça atendente.

- Posso ajudar? – perguntou a moça, sorrindo

Fernando olha o cardápio à mostra na parede, pouco acima da cabeça da jovem.

- O que você vai querer, amor? – perguntou Fernando

- Pode ser um hambúrguer de frango. – respondeu a garota

- Dois. – disse o rapaz

- Está certo. – disse a moça. – Só um minuto.

A moça sai do interior do estabelecimento, ao passo que Fernando e Carol procuram uma mesa próxima ao balcão para se sentar.

Alguns minutos se passaram e o casal de senhores já havia saído do estabelecimento. A moça chega com um par de bandejas portando um hambúrguer em cada. Entregou ao casal e lhe desejou bom apetite.

- Obrigado! – agradeceram Fernando e Carol, concomitantemente

A moça se retirou do interior do estabelecimento e voltou novamente para a cozinha.

- Ah... finalmente. – disse Carol, demonstrando extrema fome. Abriu com rapidez o invólucro que protegia o lanche e o deixou à mostra. Em seguida, abriu sua bocarra para devorá-lo.

Neste instante, para surpresa sua e de Fernando, eis que escutam gritos de socorro na rua, aparentemente de uma pessoa do sexo feminino.

- O que foi isso? – perguntou Fernando

- Ah, puta que pariu... só me faltava essa... – disse Carol, irritada

- Amor... – repreendeu Fernando

- Que é? Eu estou com fome, dá licença...

Adentra no estabelecimento uma senhora de seus sessenta e poucos anos, com roupas simples e sem maquiagem.

- Por favor, me ajudem!

A atendente sai às pressas do interior da cozinha do estabelecimento.

- O que aconteceu, senhora Matilde?

- Claro que ajudamos. – disse Fernando, de pé. – O que você precisa?

- Invadiram minha pousada!

- E o que a gente pode fazer? Você tem que chamar a Polícia.

- Não seja grosso com a senhora Matilde. – disse a atendente, caminhando até ficar ao lado da senhora – Mas o que aconteceu?

- Não sei. Começou uma quebradeira na parte de cima da pensão e fui lá ver o que os hóspedes estavam fazendo. Quando cheguei lá, um quarto estava completamente bagunçado e a cama estava destruída... e aí eu o vi...

Dentro de um quarto de hotel com suíte e cama de casal, Breno estava no banho, enquanto Jaque se encontrava deitada na cama, debaixo das cobertas, mexendo no celular. Segundos depois, dormia sobre o braço esquerdo e o celular.

Breno continuava tomando o seu banho, aproveitando para lavar o próprio cabelo. Percebeu o pequeno e contínuo barulho referente ao ronco de sua namorada e sorriu. Sabia que ela estava demasiadamente cansada e ficava feliz que já estava dormindo.

Alguns minutos depois, Breno sai do interior do banheiro, secando-se com sua toalha. Neste momento, assusta-se de tal forma que paralisa. No interior do quarto, havia um rapaz jovem, de pele negra, com uma só perna, usando um cachimbo na boca, uma bermuda e um gorro natalino – ambos avermelhados – com Jaque, desacordada, sobre o seu ombro.

O rapaz, ao fitar Breno, sorri. Em seguida, como em um toque de mágica, um redemoinho começa a surgir no interior do quarto, jogando lençol, toalha e tudo mais longe. Acabou por despertar Breno da paralisia, que correu em direção do rapaz. Entretanto, este desapareceu dentro do redemoinho, levando a garota consigo.

- E como é o bandido? – perguntou Fernando, com o celular em punhos e discando no aparelho celular. – Precisamos informar à Polícia.

- E...Ele é negro, de uma perna só, com um gorro de Natal na cabeça, uma bermuda vermelha e um cachimbo. – disse a senhora, tremendo de medo

- Esse é o Saci Pererê! – disse Fernando, descrente. Estava prestes a telefonar, mas acabou por desistir.

- Eu sei que parece, mas... mas... o bandido é assim. Não estou mentindo.

Mais calma que seu namorado, Carol se levantou e caminhou até a senhora.

- E o que ele fez? Apenas bagunçou o quarto?

- N...Não... – disse a senhora – Ele levou um casal que estava hospedado no quarto.

Fernando, Carol e a atendente se sobressaltaram.

- Que.... bizarro! – pensou Carol, paralisada devido ao medo.

Para susto do quarteto, o celular de Fernando toca alto em sua mão, inundando todo o cenário com seu toque. Tamanho o susto, Carol deu um imenso grito.

- Alô? – perguntou Fernando, atendendo ao celular

- Socorro, vei... – gritou Breno, desesperado, do outro lado da linha – A Jaque... A Jaque foi sequestrada... por um monstro... aqui dentro do quarto... – continuou, atropelando as palavras

Ao ouvir as palavras do amigo, Fernando paralisou. “Não... pode... ser...”

- Alô? Fernando? Está aí? – perguntou Breno, do outro lado da linha

- Oi... – disse o rapaz, acordando de seus devaneios – Como assim? Que tipo de monstro?

Neste momento, as demais pessoas em volta passaram a prestar atenção na conversa entre Fernando e Breno.

- E...Era um monstro negro, com uma só perna, de gorro e bermuda vermelhos e usando ca...chimbo. Eu sei que parece loucura, mas eu juro que ele é assim! – disse Breno, desesperado

Fernando paralisou novamente. “Não pode ser coincidência”, pensou.

Minutos depois, Fernando e Carol chegam à frente da pousada onde se encontravam hospedados. A Polícia Militar já se encontrava no local e o cercara dos curiosos, que tomavam a rua. Breno estava conversando com um policial sobre o que acontecera.

Ao perceber que não teriam como passar em virtude do cerco policial, Fernando e Carol pararam dentro do grupo de curiosos e se misturando a esse. Havia um alvoroço entre as pessoas e um casal de idosos, bastante assustados, usando pijama, falavam entre si:

- Será que o Saci voltou? – perguntou a senhora

- Deus queira que não.

- Mas... e se for? O que faremos?

- Temos que fechar as janelas antes que ele entre. – disse o senhor, voltando correndo para o interior de uma residência próxima à pousada

“Fechar as janelas?”, pensou Fernando. Em seguida, retirou do bolso seu celular e postou-se a mexer na internet.

- O que está procurando? – perguntou Carol, surpresa

- Você ouviu a conversa dos senhores que saíram agora? – perguntou Fernando, enquanto fitava a tela de seu aparelho celular.

- Não. Ouvi só que eles tinham que fechar a janela antes de algo entrar.

- Então... eles estavam se referindo ao Saci.

Carol arregala os olhos.

- Como assim? – perguntou

- A senhora perguntou ao senhor: “será que o Saci voltou?”. – Carol arregala novamente o olhar – Ou seja, possivelmente é alguma história antiga, que o pessoal mais velho tem conhecimento.

- Verdade. Faz sentido! – disse Carol, pensativa

- Achei algo a respeito. – disse Fernando – Parece que realmente existe uma lenda sobre o Saci.

- Isso é óbvio, né Fernando? – disse Carol, descrente – O Saci Pererê é um mito do folclore brasileiro. Não precisava acessar a internet para descobrir isso.

Fernando cerra os olhos.

- Eu não quis dizer isso. – disse, irritado. Carol faz cara de deboche. Lendo o que estava escrito, Fernando continuou:

- Aqui diz que há uma lenda do Saci nas cidades mineiras, bastante antiga. Havia um escravo chamado Saci que fugiu de seu senhor. Após ser dedurado por uma criança vizinha da sua fazenda, filho de uma moça que engravidara solteira, teve a perna decepada e foi morto em um pelourinho pelo capitão-do-mato. Como vingança, o escravo voltaria todo dia 31 de outubro, data da sua execução, para aterrorizar a população.

Segundo constam, até 64 anos atrás, era comum os ataques do Saci nos vilarejos próximos à cidade de Larital, onde se encontra a Fazenda São Cristóvão, local de sua execução. Na noite do dia 31 de outubro, os moradores se trancavam em sua casa e impediam as crianças de sair no quintal. Com isso, o Saci não lhes atingia, já que só invade casas através de janelas e portas abertas. Em contrapartida, uma vez fora de casa, o monstro sequestrava para matar como forma de punição e vingança pelo o que aconteceu com ele. Por fim, o Saci nunca ataca crianças do sexo feminino ou mulheres virgens, por entender ainda serem puras e nunca atravessa cursos d´água, por não ter conseguido atravessar na sua fuga em vida.

- Agora tudo faz sentido. Então, quando eram crianças, esse casal de senhores provavelmente já teve algum tipo de contato com o Saci.

- Exatamente.

Breno chega próximo ao casal. Estava com o rosto mergulhado em lágrimas. Ao fitar Fernando, abraçou-o, descansando seu corpo sobre o rapaz.

- Calma, cara. A Polícia vai encontrar a Jaque... – disse Fernando

- Mas é tão bizarro e tão amedrontador... é porque vocês... não viram o que eu vi! – disse o rapaz, entre balbucios.

- O Saci, né? – perguntou Fernando – Teve outro caso próximo daqui... estava olhando na internet. Aparentemente, é uma lenda antiga e casos como este já aconteceram antigamente.

Breno ficou estarrecido.

- Você fala... aqui na cidade?

- Parece que não só aqui, mas em cidades em volta também...

- Mas em Belo Horizonte já teve caso assim?

Fernando e Carol se entreolharam. Fernando respondeu o amigo com o levantar leve dos ombros.

- Quer dizer que eu carreguei a Jaque para a morte?

Pouco mais de uma hora depois, Fernando, Carol e Breno estavam dormindo. Todos dividiam o mesmo quarto, para evitarem eventual problema com o Saci – principalmente porque Breno dormiria sozinho em quarto separado. Trancaram todas as janelas e a porta antes de descansarem.

Fernando e Carol já se encontravam dormindo na parte esquerda da imensa cama de casal que ocupava parte do quarto. Já Breno, ao contrário, só estava deitado do outro lado da cama, ainda de olhos abertos. Repentinamente, com os olhos tomados de lágrimas, o rapaz se levantou. Cerrou os pulsos ao lado do corpo e caminhou até a janela histórica. Levantou-a e fitou o lado exterior da pousada. Em seguida, saltou.

O silvo do vento adentrando pela janela acima da cama incomodou Fernando e, pouco a pouco, passou a despertá-lo. Ao fitar a janela aberta sobre sua cabeça, levantou em um pulo, gritando:

- Puta que pariu!

Neste instante, assustado com o grito do namorado, Carol se levanta, completamente perdida:

- O que foi? O que aconteceu?

- A janela. Estava aberta. – respondeu Fernando, após fechar a janela

- Mas você fechou todas as janelas e portas antes de dormir, não foi?

- Foi. – disse, mais calmo que antes. Fitou a cama vazia e fitou a porta da suíte, à sua frente, igualmente vazia. – E cadê o Breno?

Fernando e Carol retiraram os pijamas e os trocaram por roupas comuns em intervalo recorde. Em seguida, tomando o cuidado de manter o quarto trancado, saíram às pressas da pousada, caminhando na rua a passos largos.

Enquanto corriam, Fernando tentava telefonar para Breno, mas somente dava caixa postal.

- Para onde você foi, cara?

- Não é estranho? – perguntou Carol – Estamos a poucos metros do show e não há qualquer barulho ou pessoa na rua.

Fernando olhou para o celular.

- E ainda é cedo. Era para ter show rolando ainda.

Alguns passos depois, o casal chegou no interior do Largo das Forras. Estava completamente vazio – não havia uma única pessoa. O chão se encontrava tomado por sujeira, como copos parcialmente cheios tombados, garrafas quebradas, tendas caídas. O palco estava igualmente vazio, com os instrumentos jogados em seu solo – além de alguns dependurados por fios.

- Mas que porra... é essa? – perguntou Fernando, surpreso

- O que aconteceu aqui? Cadê todo mundo? – perguntou Carol, igualmente surpresa

- Não tem ninguém aqui! – disse alguém, atrás do casal. A voz grave e assustadora fez as espinhas de ambos congelarem.

- Quem...? – perguntou Fernando, enquanto ele e sua namorada se viraram. Fitou um rapaz de pele negra, sem camisa, utilizando um gorro natalino, uma bermuda vermelha, um cachimbo na boca e não possuindo uma perna a poucos passos à sua frente, fitando-o com um olhar sombrio. O rapaz engoliu seco, tamanho o medo. “Puta merda. Só me faltava essa”.

- Agora só falta vocês dois! – disse o Saci. Cerrou o pulso e o levou para trás.

Percebendo a atitude hostil do monstro, Fernando se posta em posição defensiva. Defende-se de um soco do monstro e grita para sua namorada:

- Vai. Sai daqui!

Carol, porém, paralisa.

- Vai. Anda!

- Não vai a lugar nenhum! – gritou o monstro. Em seguida, desferiu um potente soco no rosto de Fernando, que o fez desmaiar.

- Fernando! – gritou Carol. Correu em direção ao namorado, mas o Saci lhe segurou pelo pescoço e lhe levantou, impedindo qualquer movimento seu.

Carol debatia em vão. O Saci sorriu, demonstrando seu maquiavélico sorriso. Em seguida, a garota engoliu em seco.

Fernando acorda. Sentia seus braços formigarem e suas costas doerem severamente, como se estivessem partindo pouco a pouco no meio. Percebe estar em um cenário diferente, a pouco mais de dois metros de altura. À sua frente, fazendo um círculo, havia um par de estacas, no total de sete. Em cada uma delas, tinha uma pessoa amarrada com os braços para o alto, em altura similar a sua – incluindo Breno. Naquele instante, Fernando percebeu ocupar uma oitava estaca, fechando o círculo.

No centro do círculo, estava o Saci, ao lado de uma pira gigantesca. Próximo ao círculo, estavam algumas garotas caídas, dentre elas Jaque e Carol. Fernando detectou estar no interior de uma clareira, próximo a uma floresta, em terreno montanhoso. Contudo, não reconhecia o lugar.

O Saci emitia um mantra quase inaudível, com completa dificuldade em ouvi-lo e, principalmente, entendê-lo. Fernando não conseguia detectar o idioma – não era português, disso ele tinha certeza -, mas percebeu não se tratar de nenhum idioma conhecido ou próximo. Descartou, portanto, idiomas como inglês, francês, espanhol, italiano e alemão. Pensou, após, que possivelmente seria o seu idioma nativo, dos tempos que era livre na África, antes de sua escravização.

“Ele deve ter sofrido bastante em vida. É natural que sinta raiva de seus colonizadores”, pensou Fernando. “Dá pena”, concluiu.

Segundos depois, porém, o Saci ateou fogo na pira, que espalhou pelas bases das estacas. Percebendo o fogo se aproximar de seus pés, Fernando entrou em desespero.

“Puta que pariu. Mas eu não te fiz nada”, pensou o rapaz

Carol começa a se contorcer lentamente no chão, dando sinal de que estava acordando. Repentinamente, começa a se contorcer gravemente e a gritar, tamanha a dor que sentia no seu abdômen. O seu grito inundou o cenário, diminuindo o som do estalar das madeiras no fogo e chamando a atenção do Saci.

Os gritos e contorcionismos foram ficando cada vez mais fortes e frequentes. Parecia que havia algo se mexendo dentro do seu corpo. Em dado momento, a dor cessou por completo, fazendo Carol ficar parada, suando frio e ofegante. Segundos depois, algo salta da barriga da garota, como se tivesse sentando sair do local, mas não consegue por causa da pele, que não foi rompida. Era um diminuto ser humanoide, faltando-lhe uma perna, com meio palmo de altura e um gorro na cabeça. Logo após, voltou para o interior da barriga e caminhou até fixar no seu útero.

Percebendo que a dor teria parado, Carol postou-se a se levantar do chão. Estava assustada e demasiadamente preocupada com o que era aquele ser dentro de si – e porque fixou em seu útero. Sentou-se no chão e forçou o corpo a ficar de pé. Neste momento, percebeu algo sob sua mão esquerda. Olhou. Era um ser diminuto, humanoide, de pele negra, sem uma perna, com meio palmo de altura e um gorro na cabeça.

Percebeu que tal ser era idêntico ao que vira dentro de sua barriga segundos antes. Congelou, pois entendera a gravidade de seu problema. Acordou de seus devaneios quando o monstro gritou sob sua mão. Fitou ao lado do monstro que Jaque jazia no chão, com olhar vítreo, sobre uma gigantesca poça de sangue e com o ventre aberto, expondo parte de suas entranhas.

Carol segurou a vontade de vomitar e postou-se a correr, em direção à floresta. Chorava continuadamente. “O que aconteceu? Onde estou? Cadê o Fernando?”

O Saci fitou Carol correndo desesperadamente para o interior da floresta ao redor da clareira e postou-se a correr em saltos atrás dela. Aproveitando-se do descuido do Saci, Fernando – que já havia deixado o fogo desamarrar seus pés -, desamarrou as mãos e saltou em direção ao solo, distanciando-se do local onde caíra. Fernando, porém, não percebeu, mas o baque de seus sapatos no solo foram suficientes audíveis para o monstro.

Fernando correu em direção a Breno. O rapaz estava desmaiado e suas pernas já estavam tomadas pelo fogo. Correu e começou a tentar desamarrá-las. Conseguiu. Em seguida, postou-se a escalar a estaca, em meio às chamas, para soltar a parte superior do corpo de Breno.

Neste momento, eis que o rapaz sente algo pontiagudo perfurar sua panturrilha esquerda. Olha para baixo e vê o Saci, nervoso, no chão, fincando uma faca em sua perna, onde jazia generosas quantidades de sangue. O monstro, em seguida, retira a faca do interior da perna de Fernando. Este, por ocasião da dor, acaba por se soltar da estaca e ir ao chão.

Rapidamente, o rapaz se levantou. Sentia fraqueza e uma pungente dor na perna esquerda, praticamente a deixando imóvel, mas não poderia se dar ao luxo de ficar deitado quando há um Saci ensandecido com uma faca próximo de si.

O monstro não perdeu tempo e postou-se a atacar Fernando com a faca.

Enquanto isso, Carol, que havia se escondido nas primeiras árvores da floresta que rodeava a clareira, percebeu que o Saci havia desistido de lhe perseguir e retornara à pira em chamas. Postou-se a fitar o que estava acontecendo e percebeu a briga entre Fernando e o Saci.

“Amor!”, pensou Carol. O coração apertou em seu peito. Correu em direção ao namorado para ajudá-lo.

O Saci desfere a primeira facada em direção ao rosto de Fernando, que desvia para a esquerda. O monstro rapidamente leva o braço em direção ao rapaz, apontando a faca novamente em direção a seu rosto. Este, surpreso, se abaixa. Em seguida, salta para o lado, a fim de desviar de eventual ataque e da pira.

O monstro corre em saltos em direção ao rapaz e lhe desfere nova facada. Fernando desvia, mas a faca acaba cortando de rapaz seu braço direito, na altura do ombro. O rapaz sente uma dor pungente e leva a mão esquerda ao local.

Fernando não era lutador. Na realidade, era universitário, o que representava ser bastante sedentário em virtude da alta carga de estudos.

Assim, a união das dores na perna e no braço retirava completamente suas forças, fazendo-o ficar fraco e ofegante. O monstro, sem perder tempo, pegou Fernando pelo pescoço com a mão esquerda e desferiu uma potente facada no centro do seu peito com a direita. O rapaz desfere um gemido, o seu último, e desfalece nos braços do Saci.

Carol, a poucos passos da luta, paralisou, tamanha a surpresa pelo assassinato de seu namorado na sua frente. Em seguida, sentindo uma explosão de raiva, correu com todas as forças em direção ao Saci, jogando seu corpo sobre o monstro. Surpreso com a ação, o monstro não teve tempo de reagir, caindo a alguns passos de distância, junto com o corpo de Fernando, dentro do fogaréu.

A garota cai no chão com o golpe. Em seguida, se levanta. Fita a cena à sua frente, com todas as oito estacas ardendo em chamas e carbonizando quem ali estivesse amarrado. Entristeceu, pois havia percebido que Breno perecera amarrado na estaca. Jaque jazia próxima de si e Fernando estava dentro da pira. Dos quatro amigos que vieram para Tiradentes curtir o festival, somente ela estava viva.

Para sua surpresa, entretanto, eis que o Saci aparece de pé no interior da pira. Carol sobressaltou. Sentiu o coração apertar dentro do peito e a espinha congelar nas costas. Pela primeira vez desde o início dos acontecimentos bizarros seu corpo foi inundado pelo medo.

Lentamente, o Saci saiu do interior da pira. Carol deu alguns passos para trás, ainda tomada pelo medo. Quando pôde fitar o corpo do monstro, sentiu o seu próprio pesar de tal forma que caiu de joelhos no chão. Lágrimas rapidamente inundaram o seu rosto. O Saci segurava com a mão esquerda a cabeça de Fernando, que ainda jazia sangue.

O monstro caminhou a pulos lentos em direção a Carol. Esta continuava ajoelhada no chão, debulhando-se em lágrimas. O Saci parou à sua frente. A garota levantou a cabeça. Fitou o monstro no fundo dos seus olhos furiosos. Viu, com toda certeza do Universo, o significado da palavra Inferno.

- Agora você vai se comportar direitinho! – disse Saci, com sua assustadora voz. Carol se assustou, erguendo as sobrancelhas. Em seguida, recebeu um potente soco na bochecha esquerda, que lhe jogou com força no chão.

A garota cospe um par de dentes no chão, sujos de sangue. Sentiu, logo após, o Saci segurar suas duas pernas. Olhou. Sobressaltou-se quando passou a se sentir puxada de bruços e com força pelo monstro.

Desesperada, começou a se debater, tentando se desvencilhar do monstro. Contudo, foi em vão. Alguns passos depois, o Saci soltou suas pernas e parou de lhe carregar. Virou-se, ficando de costas para o chão, a fim de ver o que estava acontecendo. Percebeu o monstro parado à sua frente, lhe encarando. Engoliu em seco.

- Agora, você vai ficar quietinha e me obedecer. – disse o monstro, com seu habitual semblante de raiva.

O monstro se abaixou. Retirou seu gorro da cabeça e revelou sua absoluta ausência de cabelo. Retirou uma corda do interior do gorro. Carol, surpresa, percebendo ser aqueles segundos sua deixa e, adquirindo forças sobre-humanas, chutou o Saci com os dois pés para longe. Em seguida, postou-se a ficar de pé.

Neste instante, percebeu algo cair sobre si. Olhou para baixo e fitou o gorro do Saci. “Ele está sem o gorro”. Em seguida, olhou para frente. Viu o Saci se levantando próxima de si, de fato sem o gorro, a qual deixou escapar de suas mãos com o golpe de Carol.

O monstro, naquele momento, percebeu estar sem o gorro. Passou a ficar extremamente nervoso e agitado, avançando sobre a garota sem qualquer cuidado defensivo. Carol, contudo, não deixou passar batido. Rapidamente compreendeu que o gorro era de extrema importância para o Saci e, a toda velocidade, pegou o gorro no chão para si e evadiu do local.

Carol correu a toda velocidade em direção à floresta. Ouviu os saltos rápidos do Saci atrás de si. Aumentou a velocidade e os passos foram ficando cada vez mais distantes.

A garota adentrou na floresta. Continuou a correr, em menor velocidade em virtude do receio de tropeçar e cair por causa de raízes sobressalentes. Atravessou algumas primeiras árvores quando detectou um volume cilíndrico no interior do gorro que segurava. Escondeu-se atrás de uma árvore e colocou a mão dentro do gorro. Retirou de lá uma garrafa de vidro, tampada com uma rolha.

- Mas que porra...? – perguntou, surpresa

Lembrou-se de algo. Enfiou a mão no interior do bolso. Retirou de lá o seu celular. Desbloqueou-o e colocou no Google as palavras: “Garrafa Saci”. Achou no topo da página um link com o seguinte título: “O que fazer se achar a garrafa do Saci?”. Abriu-o.

Enquanto o site carregava, Carol olhou ao seu redor. Estava completamente vazio o local, embora não estivesse silencioso.

O arquivo abriu e, resumidamente, explicava que, segundo as lendas, o Saci guarda a garrafa como um artefato valioso em virtude do fato de esta garrafa ter o poder de prendê-lo. Uma vez preso no interior da garrafa, o Saci só pode sair se a garrafa for quebrada ou tiver a tampa retirada.

Carol guardou o celular e olhou para a garrafa na sua mão. Em seguida, retirou sua tampa. Um pequeno vento surgiu do seu flanco esquerdo e entrou no artefato. Fitou, surpresa, que aparecera repentinamente um pequeno Saci no interior da garrafa, sem portar o gorro.

De tão surpresa, quase deixou cair a garrafa. Segurou-a com força e a tampou. Seguidamente, fitou o Saci – agora um diminuto monstro – no interior da garrafa, debatendo-se para ser solto.

- Mas nem morta eu te solto, filho da puta. – disse a garota. – Nem que eu tenha que te devolver para as profundezas do Inferno.

Carol perambulou durante vários minutos pela floresta a fim de procurar algo para desovar a garrafa com o Saci dentro. Por fim, encontrou um buraco no meio das árvores e enterrou o artefato por lá, tampando com terra.

Após, a garota volta à clareira. Naquele instante, o fogo havia acabado e os corpos carbonizados estavam dependurados nas estacas. No centro do círculo, ao lado da pira, estava o corpo decapitado de Fernando. Já do lado de fora, estavam quatro garotas deitadas, desacordadas e três mortas – incluindo Jaque -, todas com a barriga aberta. Perto delas, estavam miniaturas do Saci, chorando como bebês.

Irritada, Carol passou a pisar na cabeça de cada miniatura de Saci, esmigalhando-as, fazendo o Saci dissipar ao vento. Em seguida, fitou as garotas caídas, desmaiadas.

“Não podemos levar esse monstro adiante. Isso tudo deve acabar aqui e agora”. Em seguida, fitou a faca deitada no chão próxima de si.

A faca suja de sangue impregnava o solo. As garotas que haviam sobrevivido foram brutalmente assassinadas por Carol, que desferiu inúmeras facadas no ventre de cada uma delas, até ter certeza que mãe e “filho” – por assim dizer – estivessem devidamente mortos.

Por fim, Carol fitou o próprio ventre e falou:

- Só falta você, agora!

Na manhã do dia 1º, os corpos de Carol, Jaque, das demais garotas, de Fernando, Breno e dos demais foram encontrados e removidos pela Polícia Militar. O caso ficou conhecido como “A Tragédia em Tiradentes” e ganhou aspecto nacional.

Algumas pessoas mais idosas reviveram as lendas do mito do Saci Pererê, na qual o monstro matava oito pessoas queimadas e estupravam oito garotas em matagais próximos às cidades. Entretanto, exceto por um ou outro relato da suposta aparição do Saci, nenhuma prova concreta foi encontrada no local.

O inquérito demonstrou que Carol, insatisfeita com algo, assassinou as sete garotas e depois se matou. Provavelmente, pela mesma motivação, ateou fogo em oito pessoas da cidade, todas do sexo masculino, incluindo Breno e Fernando – que, por ter escapado, acabou decapitado.

Havia inúmeras dúvidas. A Polícia sabia que Fernando fugira da estaca e fora decapitado, sendo que sua cabeça estava deveras longe de seu corpo. Contudo, a arma encontrada próxima a Carol era pequena demais para realizar tal procedimento. Nascia a dúvida de como Fernando fora decapitado. Da mesma forma, algumas garotas – incluindo Jaque – foram mortas com o rompimento da barriga, de dentro para fora, e não através de facadas, como as demais. A Polícia tinha inúmeras dúvidas, só possuindo a certeza que foi Carol quem cometeu os crimes e se matou ao final – até porque suas digitais estavam espalhadas pelos corpos das demais garotas e na faca próxima de seu corpo -, mas não sabia nem como nem porquê.