Neblina
Sempre gostei das metrópoles. Da acessibilidade, do movimento elétrico, dos barulhos constantes. Sou inquieta, cheia de energia, então acho que seja natural gostar desse tipo de ambiente. Mas quando minha menina nasceu, ah, tudo mudou. Por algum motivo, aquela selva de concreto me deixou insegura. Queria luz, muita luz para minha querida. E, então, mudamos para o subúrbio, onde, além da paz, quando o Sol nascia no horizonte, a casa inteira se iluminava. E meu coração também, quando via o sorriso dela.
Eu não sabia, não mesmo, que um dia tudo aquilo sumiria.
Aconteceu aos poucos. Uma névoa fina cobria o horizonte. O sol, tão amado, não dava mais o ar de sua graça. O céu parecia laqueado, tomado por um branco leitoso. Um frio cortante e úmido entrava pelas janelas abertas e assobiava pelos corredores da casa. Minha menina, que antes adorava seus vestidos frescos e floridos, agora vivia coberta com camadas grossas de tecido acolchoado dos casacos de inverno. Só que ainda era verão.
O clima atípico foi se intensificando, a névoa, aos poucos, engrossou ao ponto de não vermos mais que dois metros adiante. Esse tempo me deixava deprimida, melancólica. Não saía mais para os passeios diários. Olhava as longas horas se arrastarem pela janela. E me admirava ao ver algumas pessoas enfrentando a neblina.
Eu tinha medo.
Mesmo com tudo fechado, com panos e fitas cobrindo as frestas das portas e janelas, as brumas continuavam a invadir a casa. E, de certa forma, minh’alma também. Sentia como aquilo confundia meus sentidos, misturando-os com grande indelicadeza. Um dia, depois de beijar a testa de minha menina, desejando um sono tranquilo, vi-me diante da saída. Não sei explicar até hoje como aquilo aconteceu. Eu saí e comecei a vagar por aquelas ruas. Perdi-me por horas. Mas foi aquela figueira que me resgatou. Aquela árvore, ainda jovem, que ficava no meu quintal. Costumava sentar no sopé dela, ao lado do meu falecido marido, Jonas, e olhávamos a doce Melodia experimentar a vida com aquelas corridinhas desengonçadas que derretem qualquer coração. Engraçado, quase tinha esquecido de mim. E do quanto gosto de figos.
Atravessei o quintal correndo. A porta estava aberta. Deixei-a assim? A casa estava diferente. Não a reconhecia. Mas minhas fotos estavam lá, assim como os brinquedos de Melodia. Avancei até seu quarto. Era um banheiro, agora. Nó na garganta. Comecei a chamá-la. Sem resposta. Onde estava minha criança? Onde estava minha luz?
“O que foi, amor? Quem é Melodia?”
Como um fantasma, Jonas veio até mim, caminhando tranquilamente, e assim como antes, nada o abalava. Incrédula e ainda com a mente enevoada, continuei correndo pelos cômodos procurando minha garotinha.
“Cadê ela? Estava dormindo agorinha mesmo!”
Parei, respirei e cheguei perto dele, que permanecia impassível. Toquei seu rosto, tão querido, tão bonito. A saudade me acertou um golpe duro.
“Quem você está procurando?”
“Nossa filha…”
“Que filha? Nós não temos nenhum filho. Você está bem?”
“Não… Você devia estar morto. Tenho que achar a Melodia.”
Não deveria ter dito aquilo. Sua fisionomia, antes recheada de doçura, mudou por completo. Uma raiva, que nunca presenciei antes, desenhou-se em seu rosto.
“Eu estou morto? Se estou, realmente, é por sua culpa. E dela…”
Já era difícil lembrar, agora, quase impossível. Lembro do carro capotando. Dele, de cabeça pra baixo, o filete de sangue, bem grosso, descendo devagar e acumulando-se no teto amassado. Do silêncio ensurdecedor.
“Se você não tivesse se inclinado para pegar o brinquedo que ela insistia em jogar pra longe… Se não tivesse esbarrado no café e derrubado na minha perna… Eu não teria me distraído. E poderia estar aqui hoje. Se não tivesse me apaixonado por você, acho que estaria vivo até hoje.”
Aquilo era demais para mim. Afastei-me, cambaleante, e fugi para as ruas. Minha criança sumiu. E o amor da minha vida me odiava. Que sensação era aquela? Que angústia… Eu corri, simplesmente corri para o mais longe possível. Atravessei estradas e casas, esbarrei em pessoas tão perdidas quanto eu. Não sentia fome ou sede. Apenas dor e medo. Não sei por quanto tempo corri. Sei, apenas, que num dado momento, sentei-me num banquinho de madeira numa praça que lembrava um anel-solitário.
Fiquei lá por horas. Ou seriam dias? Não saberia dizer. Não pensava em mais nada. Vazio. Vácuo. Neblina. Estudei a bruma ao meu redor. Não era mais branca e esfumaçada, mas sim vermelha e opressiva.
“Filhinha, abre os olhos, acorda, meu amor!”, ouvi minha voz apavorada, vinda da névoa. Lembrança dolorosa demais, que tentei por tanto tempo empurrar para o mais profundo mar do esquecimento.
Eu só queria ver aqueles olhos castanhos de novo. Precisava ver seu sorriso, ouvir sua voz.
“Mamãe, eu te amo!”
“Não quero dormir sozinha.”
“Tô com medo.”
O desespero me sufocava. Eu precisava encontrar minha filha! Sem ela não havia mais sentido na vida.
Naquele momento, pela primeira vez, senti que a névoa pulsava, mexendo-se num ritmo suave de vai-e-vem, como se respirasse. Sentia sua densidade. Sua pressão. Aquela coisa estava viva! Vi-me fraca, impotente, sem destino, sem esperança. Sua opressão era tanta, mas tanta, que sentia todas as partículas do meu corpo vibrarem. Vozes iam e vinham. Mágoas, rancores.
Deitei no banco e, em posição fetal, chorei tudo o que tinha de chorar e o que não tinha. Não aguentava mais aquilo. Queria morrer. Suave, quase gentil, a neblina foi escurecendo, até se tornar o mais puro preto que já presenciara. Tudo o que sentia, tudo o que via, cessou de imediato. Ficou apenas a escuridão. O silêncio. A solidão. E até certo conforto. Não sei quando, pois o tempo não parecia existir naquele espaço, mas uma forte luz iluminou um ponto distante, como um holofote, e minha garotinha, Melodia, estava em seu centro.
Melodia.
“Que tipo de nome é esse?”, meu marido questionou. “Ela será a harmonia, o ritmo e a música das nossas almas…”, foi a minha resposta.
“Mamãe!”, ela chamava. Assustada. Perdida. Machucada. Sangrando.
Fiquei em pânico, completamente paralisada. Lágrimas jorraram dos meus olhos, tirando-a do foco. Não conseguia respirar. Cada grito dela fazia meu coração falhar uma batida.
“Isadora. Olha pra mim!”, ouvi bem perto do meu ouvido. Levantei a cabeça e vi Jonas novamente.
“Isso tudo não é real. Eu nunca falaria com você daquele jeito, você sabe, nunca! Essa coisa se alimenta dos seus medos. Provoca os terrores mais profundos. Não deixe ela te devorar.”
“Como você sabe?”
” Estou morto, e você logo também vai estar… Se não lutar contra ela…”
“Mas não quero morrer…”, choraminguei.
“Ninguém quer, meu amor.”
Por um momento, pensei em desistir de tudo. Aquela dor, aquele sofrimento intenso, era ruim demais. Eu só queria que tudo terminasse. Queria paz, como tinha naqueles dias iluminados pelo sorriso da minha menina.
Foi então que, ainda naquele feixe de luz, Melodia começou a cantarolar. Era nossa música, a marca da nossa família. They Long To Be, dos Carpenters, sempre tocou nos momentos mais felizes da minha vida. Meu primeiro beijo com Jonas, nosso casamento, a primeira dancinha da nossa criança.
Tudo mudou. Uma força, que nunca tinha sentido, cresceu em meu peito e simplesmente transbordou. Corri até aquela luz, sem olhar para trás, firme, pela primeira vez depois de anos. Abracei minha Melodia. Seu calor era tão bom, tão amoroso… Fechei meus olhos e cantarolei junto. Queria ficar para sempre ali. Mas abri meus olhos: estava na frente de casa. E a neblina tinha sumido.
Ainda atordoada, sem saber exatamente o que estava acontecendo, corri para dentro de casa e fui direto para o quarto dela. Ela estava lá. Dormindo. Abracei minha menina, bem apertado, senti seu perfume e calor. Agora real. Enxuguei os olhos, minhas mãos tremiam, minhas pernas estavam moles. O alívio me embriagando.
“Por que insiste nisso?”
Um arrepio gelou minha alma. Olhei para trás e Jonas estava parado na porta do quarto, sorrindo, mais vivo do que nunca.
“Pensei…”, não precisei completar o pensamento.
“Todos pensamos demais naquilo que não é verdade.”
“Como você está aqui ainda? Aquela neblina… Ela sumiu, não é?”
“Você não vê, querida, mas não quer dizer que não esteja aqui.”
Sentei-me na beirada da cama. Nada fazia sentido. Melodia estava num sono profundo, imperturbável. Parecia estar em paz.
“O que eu faço agora?”, perguntei, profundamente sincera.
“Por que você não abraça sua realidade?”, sugeriu ele.
“Minha realidade?”
Levantei a cabeça, mas ele não estava mais lá.
Fitei o vazio pensativa. Minha realidade. Qual era, afinal?
Eu me culpava pela morte dele, sim. E queria estar sempre com minha garotinha.
Cobri o rosto com as mãos e chorei. Ele estava certo, nunca falaria comigo daquele jeito. Era eu o tempo todo. Tudo que me disse era fruto dos meus próprios pensamentos e sentimentos. Tudo culpa minha.
Eu evitava pensar naquela noite, naquele acidente, pois me fazia lembrar da família que já tive. Então eu fingia. Fazia tempo que eu fingia. Ser feliz. Estar bem. Ser independente. Eu fingia tão bem que quase acreditei.
Depois dum longo cafuné, envolvi Melodia em seu cobertor preferido, pois estava gelada, e fui até o quintal. Mesmo sem a neblina, tudo estava estranho. Sentada no sopé da figueira, observei a vizinhança. As pessoas iam e vinham, magras, aversas à realidade, acinzentadas. O céu estava limpo, o sol reinava sem preocupações, mas, mesmo assim, estava tudo meio enegrecido, sem luz.
O que seria da minha vida agora?
Um figo caiu do meu lado, quicando e pousando quase na minha perna. Pela primeira vez, percebi que não gostava desse fruto. Eu gostava da ilusão que ele representava.
Retornei para o quarto da Melodia. A porta abriu com um rangido sofrido e envelhecido. Deitei na cama vazia. Abracei as cobertas. Cheiro de mofo. Caixas e mais caixas escondiam o belo papel de parede florido. Poeira, muita poeira. Estava tão cansada, mas tão cansada, que não me importava com aquilo. Eu só queria dormir.
Dormir para sempre. Aninhada nos braços de Jonas e segurando a mão de nossa filha.
Juntos, enfim.