1965 - Pesadelos

A luz da lua cheia se infiltra pelas frestas da janela.

Enquanto isso eu bato pregos furiosamente. Tento bloquear a entrada do vampiro.

Ao meu lado Richard reza.

Pergunto-me: como um homem sem fé como ele, espera ter alguma salvação frente ao ente das trevas que liberamos?

Viemos para esse fim de mundo, atraídos pela cobiça de recuperarmos um tesouro perdido nas lendas e crendices do povo do interior.

Chegamos a Itapeva seguindo as indicações de um mapa escrito por um padre na metade do século XVII.

Trouxe-nos a um casarão amaldiçoado.

A fazenda colonial pertencera a um coronel chamado Sebastião, homem cruel que sumiu sob condições ignoradas.

O povo do lugar, sábio, penso eu agora, gente simples do interior, implorou para que não passarmos a noite no lugar. Que era um lugar ruim.

Disfarçados como pesquisadores e muito arrogantes ficamos lá naquela noite fatídica.

Junto com o mapa havia um manuscrito que falava de uma espada santa cravada no peito de um demônio. Falava também de Dobrões cunhados em ouro que causaram a perdição de um rico senhor de terras locais que vaga pelo lugar eternamente.

Diziam às lendas que todos que passavam a noite no antigo casarão, voltavam mudados. Para bem... Ou para mal.

Richard, um filho de americanos naturalizados brasileiros, faz História na USP.

Foi ele que descobriu o mapa no arquivo nacional no Rio de Janeiro.

Se fosse por ele teria entregado o manuscrito, mas lhe propus um modo mais prático de ganhar um bom dinheiro com ele.

Íamos pegar o tesouro para nós depois o venderíamos para um museu ou para algum ricaço colecionador que quisesse gastar uma boa grana.

Confesso que não foi fácil convencer Richard. O cara era muito idealista!

Mas logo o dobrei adulando seu ego, dizendo que ia se tornar famoso e todo esse blábláblá furado.

Viajamos por mais de seis horas de São Paulo até esse cafundó do Judas.

Ficamos uns dois dias pela cidade até reunirmos todas as informações necessárias.

Richard bonito como era loiro e alto, logo fez algumas admiradoras e até comeu umas duas caipirinhas.

Sei que não sou um gatão como ele, mas me virei hehe.

Com nosso Pick-up cobrimos os quilômetros acidentados que separavam o casarão abandonado da cidade.

O lugar era decadente, não lembrava em nada o retrato imponente de que disseram o povo da cidadezinha.

Tinha trazido meu Trinta e oito. Para qualquer eventualidade, claro.

Richard carregava um rifle apesar de não saber nem atirar.

O pó dentro da casa era espesso. As teias de aranha tomavam conta do lugar.

Alguns móveis ainda sólidos tinham condições de uso.

Richard começou desajeitadamente a acender o fogão de lenha, enquanto fui inspecionar o restante da casa.

Nos fundos do casarão colonial encontrei algumas pegadas.

Meu faro de policial dizia que eram recentes e pelo tamanho, eram de um adulto descalço.

Talvez um curioso, nada com que se preocupar.

Ao lado da casa uma capelinha, totalmente arruinada. Decaída.

Rapidamente a escuridão tomava contado lugar.

Pegando sua lanterna Richard foi para fora da casa, procurar uma indicação do possível lugar onde possa ter sido escondido o tesouro.

Entramos na antiga capela, as luzes da lanterna fizeram longos círculos de luz nas paredes.

O reboco caía em vários pontos e um cheiro estranho penetrava não apenas suas narinas, mas também seus poros.

Estávamos há pouco tempo lá fora e ouvimos um barulho medonho como uma pessoa engasgada, mas muito mais alto.

Corremos para o interior do casarão.

Um homem de aspecto medonho passou correndo por nós, gritando algo como “Mestre” numa voz arrastada.

Richard tremia e o tranqüilizei dizendo que deveria ser um bêbado.

A noite passou com muitos gritos nos arredores, mas sempre que saía não encontrava suas origens.

Deveria ter estrangulado o maluco logo que topei com ele!

No outro dia Richard foi (armado com o rifle, claro.) até as senzalas enquanto investiguei os escombros da capelinha.

Fiz uma incrível descoberta: atrás da imagem de um santo qualquer havia uma passagem secreta!

Entrei com muito cuidado, descendo uma escada de pedra limosa que levava a um subterrâneo.

Fiquei eufórico ao encontrar logo de cara um baú apodrecido recheado de Dobrões de ouro da metade do século XVI!

Deviam valer centenas de Cruzeiros!

Entrando mais fundo na câmara subterrânea uma cripta lacrada me aguardava.

Quebrei o lacre usando a coronha da arma como martelo.

Um caixão com uma pesada tampa de pedra.

Dois homens comuns teriam dificuldade em movê-la.

Eu não era um homem comum. Na faculdade as gatinhas me chamavam de

“Touro”, tamanha era minha força.

Foi com dificuldade que girei a tampa que devia pesar quase duzentos quilos!

- Que que você achou aí?

Dei um pulo de susto.

- Você quase me mata do coração!

Richard arregalou os olhos ao jogar o facho da lanterna para o interior do esquife.

Um esqueleto nos aguardava com uma belíssima espada cravejada de jóias enfiada no fundo do peito.

Era o demônio da lenda.

Richard achou prudente não retirar a espada. Eu achei idiotice.

Arranquei de um golpe só do peito morto que fez um barulho como algo arrancado de uma múmia.

Um arrepio me subiu as costas.

Enfiando a espada no baú voltamos para o casarão.

Não notamos que algo aconteceu dentro do caixão.

O esqueleto começara a se mover.

Acabávamos de despertar a lenda.

A escuridão se aproximava rapidamente, mas em vez de irmos embora de uma vez algo me impelia a ficar.

Resolvi que seria nossa última noite no casarão.

Dentro da capelinha arruinada o anoitecer causou uma estranha transformação no ser que agora voltara à vida.

O esqueleto alimentado com sangue de roedores que corriam aos montes para a cripta, chamados não se sabe que maneira sobrenatural, voltava a ter carne que se formava das cinzas do caixão.

Mas que carne odiosa meu Deus...

A pele enrugada, a cabeça criara cabelo loiro ralo e fino e um esboço de barba.

Nas órbitas vazias, dois olhos brilharam vermelhos, repletos de malevolência.

Vivos novamente.

Dentro do casarão colonial algo estranho ocorreu.

Estavam no segundo andar quando ouviram passos ecoando pelo corredor central do prédio decadente.

Richard saiu do quarto para ver de que se tratava. Voltou gritando como um louco algo como “zumbi”!

- Estava estendendo a mão descarnada para mim!

- Calma cara! É apenas o bêbado!

O que entrou no quarto logo em seguida era muito mais que um bêbado.

A pele ressecada como um pergaminho, repleta de rachaduras por onde entravam e saíam sem cerimônia, baratas e larvas.

Os olhos da criatura nos observavam do fundo do crânio. Era puro ódio.

Avançou com velocidade surpreendente para tal estado de decomposição, e seus dedos podres agarraram o pescoço de Richard, que se borrou todo.

Saindo de meu estado de perplexidade total atingi o ser medonho com uma bela voadora.

Ele largou Richard.

Quando pretendia derrubar o monstro este foi mais rápido.

Acertou-me um murro tão forte que quase desmaiei.

Não esperava semelhante soco daquela coisa descarnada.

Minha boca sangrava e ele avançou sobre mim.

Richard me salvou atingindo o zumbi, ou seja, lá o que fosse com um belo tiro de rifle.

A criatura voou pela janela com um baita rombo no peito.

Olhando pela janela não vimos sinal algum do zumbi.

Porém em frente à capelinha horror maior nos esperava.

Um homem de capa preta, de aspecto cadavérico nos observava com os braços cruzados.

Seus olhos brilhavam com um fulgor avermelhado.

Quando abriu a boca ressequida dois belos dentes caninos brilhavam como um...

- Vampiro!

Richard não parava de gritar histericamente apontando o homem parado com expressão demoníaca.

- Isso é loucura! Vampiros não existem!! – gritei.

Mas em meu íntimo sabia que isso não era verdade.

Derrepente enquanto olhávamos para baixo, uma mão descarnada agarrou Richard puxando-o para baixo.

As pernas do americano subiram ao ar e rapidamente me virei para auxiliá-lo.

Fora agarrado pelo pescoço pelo zumbi em que havíamos atirado ainda há pouco.

Com a coronha da arma acertei duas vezes a cabeça do bicho, mas o desgraçado não largava.

No solo, dois andares abaixo, o vampiro apenas observava a tudo passivamente.

Finalmente consegui fazer o zumbi largar de Richard que caiu dentro do quarto, ofegante.

O zumbi voltou para o chão grunhindo durante toda a queda.

Quando chegou ao solo o braço direito se partiu, saltando longe.

O bicho estúpido não parecia sentir dor, tentava se apoiar no braço que não mais tinha caindo diversas vezes.

O vampiro pareceu divertir-se por alguns instantes com a situação, mas seu semblante logo voltou a ficar terrível.

- Pare animal inútil...

A voz do ser imortal era tenebrosa.

Do alto da janela vi o vampiro flexionar as pernas e no momento seguinte ele estava na sacada da janela, imóvel.

Seus olhos me fitavam com curiosidade incontida, até fraternal, porém meu instinto policial dizia para não confiar nele.

O vampiro deu um passo em minha direção.

Apontei meu trinta e oito em sua direção mesmo sem esperança alguma de que funcionasse.

- Parado!

O monstro sorri e dá um passo à frente.

Atiro e o vampiro nem sente.

- AimeuDeus!

Ele coloca os dois braços adiante pronto para me agarrar.

Tiro o pequeno crucifixo de prata, dado por minha avó e começo a rezar.

Peço perdão por tudo de mal que já fiz na vida.

O urro do filho da noite me surpreendeu.

Ele escondeu o rosto e se afastou.

Saltou da sacada da janela e sua forma amorfa some na escuridão.

Espantei-me, pois nunca fui um tipo religioso.

Richard assustado me puxa para longe da sacada.

- Vamos embora daqui! Este lugar é mesmo assombrado!

Tentei manter a cabeça fria naquele momento.

- Calma! Não podemos sair agora! Temos que esperar o dia nascer!

Nesta manhã bem cedo corremos até o Pick-up, só para fazermos uma terrível constatação:

- Alguém arrancou toda a fiação!

Richard fica histérico.

- Vamos a pé!

Após pensar por um instante e depois de alguns cálculos rápidos, vi que não era uma boa opção.

- Não. Chegaríamos lá só à noite. E a criatura nos pegará na estrada.

O filho dos americanos começa a chorar feito uma criança.

- Ah meu Deus! Nós vamos morrer!

Reunimos tudo o que pudesse servir para fazer uma barricada naquele quarto.

Móveis, ripas. Qualquer coisa.

Já mais confiante de que sobreviveríamos àquela noite, fiquei descuidado.

Mal começo a pregar ripas na janela, o zumbi ataca de novo.

Pula do teto, direto na sacada arrancando o crucifixo de meu peito.

Fico extremamente furioso, pego um vidro de álcool e atiro contra o morto vivo.

Encharcado ele tenta fugir, mas armado com uma mecha de um velho tapete de sisal, toco fogo nele.

O zumbi cai em chamas pela sacada a implorar por seu mestre e a noite se aproxima com uma velocidade estonteante.

Não temos mais salvação.

Corro de volta para o casarão, porém o vampiro é mais rápido.

Mal entro aos trambolhões no quarto e sou atingido com força estonteante, fraturo o pulso e algumas costelas.

Richard atira com seu rifle no peito ressecado da criatura.

Aqueles tiros matariam qualquer humano, mas não algo sobrenatural como ele.

O vampiro apenas olha para o rombo em seu peito e sorri, avançando na nossa direção.

Não havia nada que pudesse nos proteger naquele momento.

Olhei em volta e num lance de sorte e inspiração, junto dois garfos de ferro que estavam no chão, fazendo uma cruz improvisada.

Os aponto para o vampiro.

Algo como uma explosão azulada o atira longe.

Da porta do quarto ele nos olha com infinito ódio. Em seguida some na escuridão dos aposentos.

Começo a nos preparar para mais uma noite de horror.

Prego furiosamente a janela e Richard reza mecanicamente.

Uma reza aprendida em uma igreja tão falsa como as palavras que recita continuamente.

Passamos horas nesse incessante trabalho. Apenas o bater furioso dos pregos enferrujados contra a madeira envelhecida.

Como bola. Devia ter deixado Richard próximo da janela, assim teria me preservado.

O vampiro invadiu o quarto derrepente quando faltavam apenas três horas para o amanhecer.

Rasga a proteção de madeira que levamos a noite inteira para montar como se fosse de papel vagabundo.

O impacto me derruba. E quando tento levantar-me sou atingido novamente.

Vôo através do amplo aposento e bato em uma parede sólida.

A criatura infernal avança sobre um indefeso Richard, cuja falsa fé pouco faz para ajudá-lo.

Ele tenta fazer um sinal da cruz com os garfos, mas não obtém efeito algum.

O vampiro gargalha e pegando os dois braços de Richard parte seu corpo ao meio como se rasgasse um pano velho.

As tripas do americano enchem o solo. O ser infernal bebe profundamente do sangue que jorra.

- Maravilhoso! – diz com voz gutural – Há quanto tempo fiquei privado desse prazer?

Antes que eu possa esboçar uma reação, o vampiro está sobre mim.

Seus traços nórdicos pouco a pouco se rejuvenescem com o sangue ingerido.

Desmaio.

Já é manhã quando acordo. Tento enxergar, mas tudo está estranhamente embaçado.

Fico o dia inteiro evitando o sol. Tentando achar Richard.

O motor do Pick-up está funcionando à perfeição.

- Richard? Richard?

Grito por horas.

Onde será que aquele idiota se meteu?

Eu tive um péssimo pesadelo essa noite. E passo o dia vomitando tudo que tento engolir.

A noite está chegando e começo a me sentir melhor.

Logo após o escurecer saio para procurar o panaca.

Encontro-o na cripta.

Rasgado e sem uma gota de sangue. Fico horrorizado.

Não fora um pesadelo.

Ao meu lado está o vampiro. Sinto uma dor no pescoço e instintivamente ponho a mão no local.

Há duas pequenas feridas circulares.

- Qual seu nome... Escravo?

A voz é fria e sem inflexão.

- Meu... Meu nome é Humberto... Senhor.

Ajoelho-me contra minha vontade.

- Sou seu mestre, Ivan. Você matou o coronel Sebastião, meu antigo escravo e vai ocupar o lugar dele. Vamos entrar no casarão. Tenho muito que me informar sobre estes novos tempos, e você vai me responder.

Fecham-se as portas de carvalho do casarão. Ivan está de volta.

Ele é um bom mestre... Até permitiu que eu devorasse os restos de Richard...

Fim

Humberto Lima
Enviado por Humberto Lima em 05/11/2007
Código do texto: T725000
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