DENTRO DA BOLHA - clts19

Quem nasce nas trevas não se ressente da falta de luz, porém aqueles que ficam nas trevas sonham com os dias claros perdidos em divagações.

Enquanto a cabeça doía ensopando os cabelos com sangue quente, a última luz do submarino desaparecia na imensa lagoa recém-descoberta. Devaneios e realidade rompiam as fracas barreiras da sanidade. O brilho dançante no teto da caverna trazia alento naquela hora de profundo desespero, meus olhos fraquejaram fechando-se preguiçosamente e desde então a luz tornou-se uma saudosa recordação.

Deveria ter sido uma simples expedição de rotina, os riscos bem analisados provaram-se maiores que o previsto. Pela primeira vez fomos vítimas de um fator desconhecido.

Não sei por quanto tempo permaneci caída na areia da praia, em alguns momentos tive a impressão que meu corpo estava sendo arrastado como um objeto a ser descartado, por fim flutuava numa queda interminável.

Ao despertar, levei a mão no ferimento, senti o inchaço por baixo dos cabelos grudados. A dor ainda revirava meu estomago. Tentei ficar em pé, a falta da visão dificultava o equilíbrio, a cada passo, um abismo se punha diante de mim, cambaleando toquei numa parede, fiz dela meu apoio. Com o frio dos tijolos a minhas costas, esforcei para adaptar meus olhos àquela estranha situação. Por mais que tentasse, estava imersa num escuro absoluto. Ali parecia jamais ter existido a esperança.

Tateando a parede, segui pela direita. Poderia ser o trauma ou mesmo a demência tomando conta de mim, mas sentia que mil olhos me observavam, quase tocava aquilo que estava a minha volta, às vezes ouvia o arfar daqueles peitos roucos de respiração ritmada, tão próximos que o seu hálito gelado esfriava minha alma. Em vão, lançava os braços rumo ao desconhecido com esperanças de agarrar uma daquelas estranhas criaturas. Sem sucesso, sentei e chorei. A solidão despertava em meu coração a insignificância de uma existência obediente que jamais ousou sonhar. Consegui encontrar a paz apenas quando exausta dormi, também já não existiam lágrimas a derramar.

Despertei com um toque áspero em meu rosto. O pesadelo continuava, as provisões da expedição estavam fora de alcance, a escuridão tornava impossível saber o quão distante estava da praia, senão uma das lanternas poderia me ajudar.

Morrer era abandonar as esperanças, o que ainda restava quando esta a muito se esvaiu? Por uma eternidade permaneci paralisada naquele canto tendo como companhia aquela misteriosa presença que assombrava minha mente.

Nossas vidas foram muito bem planejadas, tínhamos uma tarefa a realizar, nunca desviaríamos daquilo para que fossemos designadas. O choque imprevisto me fez rever toda minha existência, havia algo além das cartilhas da academia, sem orientação estava pela primeira vez só, deveria tomar minhas próprias decisões, delas dependeriam minha sobrevivência.

Fui deixada para trás, a tripulação partiu talvez acreditando em minha morte. Não sabia se mais alguém estava presa ali, meus gritos ecoavam em meio a lamuria agonizante das criaturas que nos atacaram.

Sabia quando parti que era uma peça descartável. Sem utilidade, seria prontamente substituída por outra com as mesmas habilidades. Assim acontecia em nossa civilização. Importante sempre foi a missão, a sobrevivência de um jamais poderia ameaçar a salvação de muitos, por isso não esperava pelo resgate, porém agora pensava diferente, não queria ser esquecida, sentia no peito a dor daquelas que antes de mim foram descartadas, relegadas a obscuridade. O apego à vida, tornava o abandono ainda mais cruel.

O choro nem como consolo se mostrou útil, aquela bolha subaquática encrustada na rocha seria meu túmulo inesperado. Os habitantes daquelas ruinas pareciam sedentos de sangue, por inúmeras vezes senti que mandíbulas invisíveis destroçariam meus membros, criaturas medonhas desfilavam diante de mim, algumas possuíam dentes afiados, outras garras enormes, porém todas desejavam meu fim.

Tínhamos encontrado um tesouro inestimável, os prédios antigos atestavam a civilização gloriosa de outros tempos, artefatos tecnológicos que certamente precederam nossa moderna ciência ainda eram funcionais, e este foi nosso erro fatal.

A iluminação vinda do submarino somada ao nosso equipamento na praia mantiveram os fantasmas distantes, onde não havia luz sempre tinha movimento, em vão foram nossas investigações, aqueles seres misteriosos permaneciam ocultos. O primeiro ataque só aconteceu ao operarmos a estação de força, para nossa equipe de engenharia até que foi bem fácil.

Cabos de cobre conduziram eletricidade por diversos pontos da caverna. Estruturas de concreto e vidro foram iluminadas. A luz semeou a morte entre nós. Gritos de fúria ecoaram multiplicando-se a cada instante. É provável que jamais saibamos de onde os primeiros agressores saíram. Corri em direção ao submarino, fui alvejada logo nos primeiros passos, aos poucos a luz desapareceu. Agora a única coisa real estava diante de mim e mesmo assim permanecia além da minha compreensão.

Reunindo o pouco de coragem que ainda possuía, tentei explorar. Esperar a morte ou partir a seu encontro não seria tão diferente. Usando a parede como guia, dei alguns passos à direita.

Tinha algo ali comigo.

Mãos fortes me agarraram pelos ombros, como um trapo fui arremessada para o lado, em pânico, ouvi estilhaços de vidro se partindo. Não havia defesa, encolhida no chão tentei proteger minha cabeça com os braços, apenas por instinto, jamais venceria tal investida. Foram poucos minutos que refletiram a eternidade, senti ridícula ao ver que nada acontecia, melhor que tudo terminasse de uma só vez.

Permaneci encolhida, debruçada sobre os joelhos por mais algum tempo antes de criar coragem para me arrastar até tocar novamente a parede. A escuridão sufocava meu peito que poderia explodir a qualquer instante.

Alguma coisa pisou forte sobre os pedaços de vidro. O desespero fez com que caminhasse na direção oposta. Segui adiante andando por uma linha reta, o piso parecia liso sem nenhum obstáculo, mesmo assim não ariscava olhar para trás temendo confrontar aquilo que me assombrava.

Impossível dizer o quanto caminhei. Tentava caminhar apoiada pela parede. Estavam brincando comigo, vez por outra me arremessavam de um lado a outro perdendo ainda mais o pouco de orientação que poderia ter, contudo percebi que seguia por um longo corredor, pois com pouca variação sentia o frio do concreto ora a direita ora a esquerda de mim. O desespero acentuava o cansaço, a fome incomodava, a barriga clamava por algum alimento. Sentei angustiada. Fui tombando lentamente nos braços do sono. No fim já estava conformada. Não havia nada o que fazer.

Antes que pudesse encontrar um pouco de conforto, fui brutalmente agarrada pelos tornozelos, aquelas mãos fortes se quisessem partiriam meus ossos. Tentei em vão resistir enquanto me puxavam para frente. Com o peso de uma gigantesca criatura sobre meu peito, uma força descomunal prendeu-me ao chão, não conseguia mais mover, os gritos por socorro ecoavam pela escuridão.

Imobilizaram também minha cabeça.

Meus gritos como último sinal de minha liberdade finalmente foram silenciados.

Uma mistura pastosa e morna foi regurgitada em minha boca, aquele vômito de sabor cítrico descia pela garganta apesar dos esforços que fazia em busca da liberdade. Quando finalmente livrei-me daquele beijo infame, já quase sem forças, o sono me derrubou.

Muito depois de acordar, mantive olhos fechados, temia uma nova investida. Acreditei engana-los, o que eu desejava era apenas ficar ali encolhida até que tudo tivesse um fim.

O tempo se tornou um carrasco tão cruel quanto a escuridão. Minutos, horas, dias, nada mais importava naquela prisão.

Eu não os via, mas aquelas estranhas criaturas sabiam do meu engodo. Eles me sentiam, por algum tempo estudavam minhas reações. Mantendo-me inerte numa única posição comecei a sentir desconforto, nada pior que a dor do desespero.

Estranhamente percebi que a sede e a fome já não me incomodava. Isto já não tinha também muita importância.

Minha tática perturbou meus captores, não desejavam uma presa apática, queriam diversão, brincar antes do golpe final.

Um som metálico ecoou bem próximo, o susto me colocou de pé. Com os braços estendidos tateando o infinito, parti rumo ao desconhecido. Na minha frente uma enorme criatura me fez recuar. Estávamos novamente naquele teatro. Eles me guiando ao matadouro e eu sonhando com a liberdade.

O tempo aqui é algo imensurável, passo boa parte dele sonhando com os dias ensolarados a muito distantes. Dou-me muito bem com meus novos amigos, de certa forma criamos uma parceria, me guiam com gentileza pelos corredores escuros deste gigantesco abrigo criado antes do cataclisma que praticamente dizimou toda vida da face Terra, me alimentam como um filhote apesar dos protestos, pois prefiro usar minhas próprias mãos, até trazem presentes, objetos da sua antiga civilização.

Visito com frequência a praia do desembarque. A beira da lagoa, imagino o momento em que a abobada rochosa se ilumine com as luzes do resgate. São tantas descobertas, tantas saudades.

Acho que não enlouqueci. Registro todos os acontecimentos caso falte a sanidade, minha memória também já não é a mesma, ouço vozes e consigo ver pessoas no escuro, basta ignora-las.

Na escuridão daquele corredor, com o corpo dolorido, repleto de hematomas, pensei em desistir, dar cabo de minha vida, negaria a eles esta vitória. Lutar não era viável, por inúmeras vezes demonstraram sua superioridade enquanto de forma inútil me debatia indo de um lado a outro contida sempre por paredes que não conseguia enxergar.

Sem reações fui largada num canto qualquer, respirava com dificuldade pelo esforço da jornada enquanto limpava o suor que lentamente escoria da testa. Tentei decifrar o que estava a minha frente, meus olhos cansados preferiam permanecer em repouso. Demorou um pouco para perceber.

Um brilho avermelhado intermitente, bem fraco rompia o véu da escuridão.

Sem forças ou coragem, pensei ser uma ilusão alimentada pelo desespero.

Ergui-me sobre as pernas ainda bambas, o corredor parecia não ter fim, caminhei cambaleante rumo à esperança, quanta dificuldade ainda seria colocada a minha frente. O fim estava próximo, adiante uma bifurcação, do lado esquerdo uma porta e sobre esta, uma luz que me fez chorar.

A enorme câmara guardava a esperança da humanidade, alimentadas por reatores subatômicos, centenas de unidades criogênicas, e nos monitores, vinte e três com status operante.

Survival Horror

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 29/05/2022
Reeditado em 30/05/2022
Código do texto: T7526249
Classificação de conteúdo: seguro