ENCONTROS E DESENCONTROS

Ele acordou puxando o ar com a força de quem está sendo sufocado. Seus pulmões ardiam. Erguendo o rosto sujo pelo chão enlameado do parque, ele cuspiu uma mescla de saliva e sangue, sabendo que a parte pecaminosa da mistura não lhe pertencia. Um incisivo grande, amarelado e aguçado caiu de sua boca, sendo projetado junto da mistura expelida. Instintivamente, ele tocou com a ponta da língua o espaço vazio na arcada inferior e percebeu que um novo dente, retilíneo e simétrico, começava a ocupar o espaço deixado pelo instrumento de morte que abandonava seu corpo.

Com raiva, ele agarrou o fragmento na terra e o atirou para longe de si, como se quisesse expurgar a lembrança da noite anterior, algo que ele sabia muito bem ser impossível de esquecer. Embora não pudesse ditar o ritmo de um único músculo sequer, sua mente sempre permanecia ativa durante todo o percurso. Ele era apenas um passageiro dentro do próprio corpo, e aquilo era uma tortura em vida. Talvez, alguns como ele pudessem apreciar o momento, mas para ele tudo não passava de sofrimento e danação.

A madrugada já emitia seus últimos suspiros e era preciso correr para se recompor. Despido e sujo como estava, seria tomado como um criminoso, mas não pelos crimes que cometera. De pé, ele caminhou até a árvore oca, local onde sempre deixava as roupas antes de sua verdadeira identidade tomar forma. Os ciclos sempre iniciavam e terminavam no mesmo lugar, portanto, estabelecer uma rotina que facilitasse sua vida era algo imprescindível.

Sentindo-se um pouco mais humano por conta das vestes, ele caminhou, enquanto os raios matutinos lhe tocavam as costas oferecendo um pouco de calor e conforto. Ao longe, ele percebeu um casal que se alongava antevendo uma corrida pelo parque. Em silêncio, ele agradeceu aos céus por eles não terem cruzado o seu caminho um pouco mais cedo.

Vencendo a trilha de terra batida, seus passos o levaram até os limites do parque. A cidade começava a despertar. Sua mente divagava longe quando o som estridente de uma buzina lhe estapeou os ouvidos. Ele olhou para o veículo que cruzava velozmente a estrada a sua frente e que por pouco não o atirara para o alto. Atrás do volante, uma mulher parecia lhe gritar impropérios, enquanto gesticulava. Ele pouco teria ligado para o incidente se algo em particular não tivesse chamado a sua atenção.

Ele forçou os olhos na direção do carro que se distanciava, mas não conseguiu distinguir os traços da mulher. Mas, não seria preciso, pois cada nota aromática que exalava do seu corpo havia sido absorvida e processada pela, ainda presente, sensibilidade do olfato, apesar da recente regressão.

O rapaz, então, inspirou profundamente o ar da manhã, marcando em seu interior aquela lembrança. Ele jamais esquecia o cheiro de uma pessoa. Jamais. E, a partir daquele momento, havia a certeza de que ele a encontraria uma vez mais. Decidido, ele afagou o próprio rosto com a mão esquerda e bocejou em seguida. Estava cansado. Recuperar as forças naquele quarto fétido que ele chamava de lar era uma necessidade.

Já longe dali, a mulher dirigia apressadamente. Ela estava tão ou mais cansada que o rapaz que há pouco quase atropelara. O plantão noturno, agitado e corrido, não a deixara pregar os olhos nem por um segundo. Seu corpo ansiava por um pouco de repouso. Talvez, ela não admitisse, mas bem lá no fundo soubesse que a razão por trás de tamanha agitação respondesse pela possibilidade de um novo amor que se avizinhara em sua vida de modo inesperado e súbito.

Ela já havia abdicado de qualquer desejo de felicidade, até conhecê-lo. E da maneira mais improvável possível. O homem chegara ao pronto socorro mortalmente ferido por um ataque de arma de fogo. Ela e sua equipe passaram horas ininterruptas para salvar a vida do desconhecido. Quando ele despertou a salvo, seus olhares se cruzaram e, naquele momento, ela soube que uma nova página em sua vida começaria a ser escrita.

A despeito da gravidade do ferimento, o rapaz se recuperou rapidamente e tão logo teve alta do hospital passaram a se ver com uma frequência que passou a ser quase diária. Ele lhe confessara que devia a ela sua vida, seu coração, e que faria de tudo para retribuir esse ato de bondade e compaixão.

Apesar de toda a conexão que demonstraram reciprocamente, aquela noite seria a primeira a qual efetivamente compartilhariam. Ela não conseguia conter a ansiedade. A noite anterior havia sido difícil e tudo que ela mais desejava era chegar em casa e poder descansar para o encontro.

A noite chegou de forma diferente da anterior. Não havia o menor sinal de que a chuva forte que castigara os últimos dias fosse marcar sua presença. No céu desprovido de nuvens, um círculo gordo e amarelo despejava luminosidade na cidade.

Longe do centro urbano, aos pés da serra, sentada no jardim do chalé, a mulher deslizava o dedo pela borda da taça de vinho, enquanto aguardava pelo anfitrião. O rapaz lhe dissera que pretendia que tudo fosse perfeito naquele encontro, e o ruído estranho que eles teriam ouvido pouco antes fora um motivo justificável para que saísse e fosse averiguar nos fundos da propriedade.

Algo que não deveria caminhar entre os viventes, ganhava forma banhado pela luz do luar. Ali, manipulado por aquela que do alto sorri, não havia mais espaço para humanidade. Os ossos em expansão rasgavam a matéria que uma vez retalhada e solta caía no chão. A carne, ensanguentada e exposta, tornava-se escura e apodrecida, enquanto fios espessos e firmes preenchiam toda a superfície desnuda. Dentes e unham eram expelidos pelo corpo que necessitava de algo mais incisivo para seus propósitos. Um uivo aterrador se espalhou por todo o vale.

Assustada, a mulher se levantou de modo atabalhoado deixando a cadeira cair. Chamando pelo rapaz, ela temia por ele ao mesmo tempo em que pressentia que algo estava ali por ela. Algo que a desejava e que não descansaria até encontrá-la.

Ela ensaiou uma corrida até a casa, mas seu caminho fora interrompido pela presença de uma criatura jamais imaginada, nem mesmo em seus piores pesadelos infantis. A fera diante de seus olhos caminhava como um humano, mas, ainda que pudesse descrever contornos de um homem em seu olhar, havia, ao mesmo tempo, uma aura maligna incapaz de existir até mesmo no mais vil dos seres.

A mulher chorava e implorava pela vida, ao passo que a besta caminhava em sua direção. No entanto, conforme caminhava, era possível perceber o som de estalidos secos e prolongados. Então, mesmo com os olhos lavados em lágrimas, ela entendeu que um fenômeno estranho ocorria diante de sua presença. O demônio ali presente ganhava os contornos de um homem mais uma vez.

− Olhe para mim. Eu te mostrei como realmente sou.

Horrorizada, a mulher não queria acreditar que o homem por quem se apaixonara exibia uma face tão perversa. Como aquilo era possível? Como alguém tão doce e especial poderia ser, na verdade, um representante do próprio inferno.

− Veja! Você se lembra quando te disse que eu não era como os outros homens? Você se lembra do que me disse?

− Sim. Eu falei que sabia que você não era igual aos outros. Mas eu disse isso porque me referia a você ser uma pessoa melhor do que todos os que havia conhecido. Jamais poderia imaginar algo tão medonho assim.

− Não tenha medo de mim. Estou aqui para cumprir o que te prometi quando você salvou a minha vida. Eu havia sido atingido por um dos que me caçam. Mas ele me atingiu com a prata em forma humana, se fosse em minha verdadeira forma eu não estaria aqui. Porém, um projétil como aquele sendo prata ou chumbo poderia ter me matado na minha condição mais frágil. Mas você me salvou.

− Eu deveria tê-lo deixado morrer. Se eu soubesse de tudo isso, assim o teria feito.

− Não diga isso. Eu não quero o seu mal. Basta uma pequena mordida e você se tornará uma igual a mim. O melhor presente que eu poderia lhe oferecer em retribuição. Venha.

De maneira diferente da anterior, o homem ganhava os contornos de fera de maneira rápida, eficiente e quase indolor, enquanto corria na direção da mulher, que, mais uma vez, gritava e fugia pela vida.

A fera, em quatro patas, galopava num ritmo frenético em seu encalço. Em desespero, a mulher foi ao chão e, resignada, aguardou pelo encontro frio com as lâminas amareladas que preenchiam a boca da criatura. Uma sombra escura nublou por instantes a face pálida da lua. Caída, a mulher exprimiu toda a sua dor através do sofrimento em sua voz solta pelo ar. Ela fechou os olhos e esperou o impacto. Porém, ao invés disso, ouviu o som de um disparo e viu a criatura tombar ao seu lado com um buraco na testa, de onde vertia um filete ínfimo de sangue com um brilho fino e prateado.

Aos poucos, a fisionomia conhecida daquele que aprendera a amar substituía as linhas grosseiras e disformes do demônio que a ameaçava instantes antes. Apoiando os braços no chão, ela se ergueu e perscrutou a noite em busca da origem do disparo.

De trás de uns arbustos surgia um desconhecido, embora seus caminhos já tivessem cruzado anteriormente. O homem trazia um rifle na mão. Ele olhava atentamente para a mulher, pois, por intermédio dela, chegara até aquele a quem caçava há muito tempo. A criatura caída era um alfa, um demônio capaz de criar outros semelhantes, igual fizera com ele próprio num infeliz incidente, transformando a sua vida num verdadeiro inferno.

Era seu dever por um fim naquela multiplicação de sofrimento e morte. Infelizmente, embora ele pudesse reter e rastrear qualquer odor, isso não funcionava contra seus semelhantes. Mas, quando ele percebeu o cheiro do maldito sutilmente incrustado na mulher, ele soube que bastaria segui-la para chegar até ele. Um erro de sua parte havia sido cometido. Era um fato que se o maldito quisesse a mulher morta, ela assim já estaria. Não, ele não a queria como alimento, a queira para si, por isso a empesteou com seu odor. Agora estava morto.

− Quem é você?

− Isso não importa, moça. Está vendo isso?

A mulher então percebeu uma espécie de punhal encravado na coxa esquerda do desconhecido.

− Você não faz ideia da dor que preciso suportar por ter essa lâmina de prata em meu corpo. Estou lutando contra todos os meus instintos para mantê-la no lugar, mas essa é uma batalha que sei que perderei e, na verdade, já não tenho forças para resistir. Isso é a única coisa que está impedindo a minha transformação. Eu não sou como ele, não tenho o poder de controlar o demônio em mim. Portanto, tudo o que posso lhe dizer nesse momento é: corra!

− Mas, eu…

− Corra!

Um urro de dor e fome se espalhou pela mata.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 06/06/2022
Código do texto: T7531836
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