CONVERSANDO COM O CAPETA

Uma das primeiras lembranças que tenho da minha infância é a daquela estranha e assustadora mansão abandonada. Sempre passávamos por ela no caminho de casa.

O casarão ficava em uma das áreas mais nobres, no centro da cidade, cercada por imóveis empresariais e residências de alto padrão. Não era murada, mas cercada por uma imensa cerca danificada, deteriorada pelas décadas de abandono.

O casarão não era muito longe de onde eu morava, nem da escola que frequentava. Quando nos reuníamos no recreio, um dos assuntos preferidos era indagar o que existia no interior da casa. A imaginação dos garotos era tremenda. Alguns diziam que a casa era habitada por duendes, outros diziam que fantasmas ou vampiros seriam os moradores do local.

Quando meu pai era criança ele mesmo passou por esta situação, pois a mansão já tinha sido abandonada nesta época. Ele dizia que a verdadeira fonte original do folclore assustador do local seria o fato de que na construção da mansão vários escravos teriam sido mortos em acidentes. Dizia que uma espécie de fonte artificial transcorria a maioria dos cômodos, como se fosse uma piscina continua. Agora só existiam alguns destroços desta original obra arquitetônica, mas na época que meu pai era criança, ele relata que viu com os próprios olhos, na companhia de 3 amigos, surgir do nada, no interior dos escombros uma espécie de líquido vermelho que parecia sangue. Na época ele tinha 12 anos, a mesma idade que tinha quando resolvi fazer uma excursão pelo local, sem avisar para nenhum dos meus amigos, nem para meus pais.

Poderia ter ido de bicicleta, pouparia uma caminhada de meia hora, mas pensei que ela poderia dificultar a minha entrada na mansão ou até mesmo impedir a minha fuga rápida do local, acaso algum monstro saísse de um dos aposentos. Por volta das 4 da tarde eu coloquei dentro da minha mochila um canivete suíço (para furar algum vampiro ou monstro), um chocolate e um pacote de biscoito recheado (lutar com seres desconhecidos pode dá fome) e mais minha garrafa de água. Também levei uma revistinha de mulher pelada que guardava escondido (sei lá, vai que a caça ficasse chata).

Chegando ao local, não foi difícil achar uma das brechas na velha cerca. Entrei olhando para os lados, achando que a polícia a qualquer momento fosse me parar. Depois de alguns passos lentos eu comecei a perder o medo. O jardim era formado por estranhas esculturas. Algumas eram bem estranhas, no formato de anjos apocalípticos, outras lembravam pássaros estranhos, dos quais não sabia nominar.

Conforme eu adentrava no local tudo aparentava ser mais assustador. As antigas árvores pareciam esconder algo sinistro em suas raízes. A cada farfalhar de folhas e de galhos eu ficava sobressaltado. Tirei o canivete da bolsa e continuei firme. Estava disposto a descobrir o segredo daquele local.

A Porta da frente havia sucumbido ao tempo há décadas, mas decidi entrar por alguma janela ou porta que estivessem circundando o local. A intenção era surpreender os fantasmas ou bichos malignos que estivessem ali, penetrando suas entranhas como um cavaleiro antigo esfolando um dragão.

Finalmente havia achado um local perfeito. Uma passagem na lateral esquerda do imóvel. Ao lado tinha o espaço deixado por uma janela destroçada, mas parecia mais “dramático” entrar rastejando por um buraco existente. Eu pensava que assim poderia dá de cara com um duende, pois achei que seria o local por onde passavam para fazer suas diabruras na calada da noite.

Fiz como os soldados dos filmes que passava na sessão da tarde, passei a cabeça pelo buraco e comecei a rastejar para o interior da mansão. Contudo, eu estava mais crescido do que achava, pois fiquei entalado na altura do peito.

Contorci-me tentando forçar a passagem. Depois de uns dois minutos entalado eu já estava gritando desesperadamente por ajuda, mesmo que isto despertasse a fúria de um vampiro ou lobisomem pelas redondezas. Cada segundo que passava minha aflição aumentava. Senti que a parede se mexeu um pouco e assim forcei com toda a força o corpo. Uma espeça camada de poeira caiu sobre a minha cabeça, depois, senti uma pancada e tudo escureceu.

Quando acordei, passei as mãos na cabeça e senti um galo gigante. Nem me dei conta direito de onde estava. Passado alguns minutos foi que percebi que não estava acordando de um pesadelo. Estava em uma bela cama, com lençóis que nunca tinha visto antes, os tecidos eram suaves. Ao redor havia uma escrivaninha e algumas cadeiras feitas com madeira escura. Na época eu não sabia o conceito de morrer e virar um espírito, portanto, estar morto não pareceu uma opção viável. Eu apenas gritei, gritei e depois griteis mais alto pedindo socorro.

A porta do quarto foi aberta, como se algo houvesse atendido meu pedido, mas não era minha mãe ou meu pai que vi, era um anão, vestido com roupas pretas e uma estranha gravata borboleta amarela. Confesso que em vez de medo deu vontade de rir. O anão logo sorriu, parecendo adivinhar meus pensamentos. Ele disse com uma voz meio fina e sinistra:

— Bem vindo a minha casa pequeno amigo. Não vou lhe fazer nenhum mal. Minha reputação é maior do que os meus feitos.

Não entendi bem a frase enigmática, mas respondi:

— Quem é você moço? Você pode chamar os meus pais? Quero ir pra casa.

— Eu sou o demônio, o capeta, logo os seus pais chegarão.

— Mas como o capeta pode ser um anão? Eu pensei que o capeta fosse igual ou mais feio do que o “Vingador” da Caverna do Dragão.

— Não, esses desenhos animados não podem ser levados a sério. Acredite, sempre fui e sempre vou ser um anão, mas isso não diminui o que sou.

— Qual o seu nome verdadeiro senhor anão, digo, capeta?

— Tenho vários nomes, muitos me chamam de legião.

— Ah tá, vi isso naquele filme que a menina vomita no padre e faz saliência com a cruz. Acho que era “O exorcizador”...

— Era o “Exorcista”, verdade, eu também assisti ao filme, meu nome de fato é “Otavianus”, mas acho que com um nome desses ninguém ficaria com medo, legião é mais bonito. Copiei do filme isto.

— Senhor capeta, o senhor é até legal.

O capeta ficou visivelmente emocionado quando eu falei isto. Ele até sorriu e deixou escapar uma lágrima.

— Obrigado, faz muitos milênios que alguém não diz algo assim para mim, meu próprio pai nunca me considerou muito...

O capeta agora chorava como se fosse uma criança que teve tirado o brinquedo favorito.

— Não fique assim senhor capeta — falei para o anão que chorava na minha frente. Quando meus pais chegarem eu peço a eles pra você ir com a gente tomar uma sorvete ou comer um hambúrguer com batata frita.

O demônio inofensivo foi lentamente na direção de uma janela. Abriu a cortina e ficou olhando. Fui ao seu encontro. Quando cheguei ao seu lado o que vi não foi à paisagem assustadora da mansão. Tudo estava diferente. O que antes eram as assustadoras esculturas agora era apenas um esboço de puro granito não moldado. Escravos martelavam e escavavam toda a propriedade mais a frente. Eram chicoteados e muitos sangravam com as costas ardendo pelas chibatadas.

— O que está acontecendo, por que tudo está mudado? — perguntei ao anão demônio.

— Tudo está como sempre esteve e estará, pelo menos para mim. Estou nesse local há tanto tempo que não me lembro mais. A realidade como você conhece não se aplica a mim. Posso estar hoje 200 anos no passado ou 1000 anos no futuro. Mudam os meus companheiros, mas a minha sina é a mesma. Estou aprisionado neste local para toda eternidade. Você pode achar estranho pessoas sendo escravizadas por outras e tratadas como animais, mas até pouco tempo atrás isto era considerado comum. Tudo que queria era amor. Acabei perdendo a cabeça por isto, desrespeitei meus pais e irmãos e agora vago esporadicamente pelo tempo e pelo espaço, muitos chamam isto de inferno, mas eu chamo apenas de lar.

Fiquei com pena do demônio, mas precisava voltar para minha casa.

— Senhor capeta, posso voltar para a minha casa?

— Sim, mas lembre-se sempre que....

De repente eu acordei. Alguns bombeiros estavam ao redor derrubando a parede onde eu estava entalado. Foi muito vergonhoso. Passou até no jornal da TV: “Garoto fica preso em casarão antigo e é resgatado”. Meus amigos zombaram de mim durante semanas. Aquilo tudo pareceu muito real. Sinceramente não acho que foi um sonho ou um delírio pelo desmaio com um destroço que caiu na minha cabeça.

O que o capeta quis dizer por último acho que nunca saberei, nem pretendo saber, o inferno parece bem mais assustador do que pode ser, melhor não ir para lá.