A MULHER DA CASA MALETTI - clts 20

- Aquela mulher é louca e você consegue ser pior que ela.

- Não cara. Já planejei tudo, é só você não dar para trás.

A tarde teimava em dar lugar a noite, todo o Pará sofria com o terrível mormaço daquela inexplicável onda de calor, Belém não era diferente.

Biscate e Tião discutiam sobre a empreitada num banco da Praça do Cajueiro.

- Meu primo tem um amigo que faz entregas de comida. Ele deu o serviço completo.

Biscate, malandro desde menino nunca pegou no pesado, às vezes dava sorte, outras tomava surra de turistas e acabava pernoitando no xadrez, era figurinha repetida para os homens da lei, mas desta vez tinha certeza. Tirou a sorte grande.

Por outro lado, Tião já cansado de embarcar em canoa furada seguindo o amigo, se mostrava relutante. Quando o serviço é muito fácil, tudo indica que tem algo errado.

- Olha, outro dia quando foi levar o almoço da velha, o tal cara deveria receber uns atrasados. Tudo dava uns cento e quinze contos. A doida pagou com duzentão, nem quis o troco, ela não pega dinheiro miúdo, só gosta de notas de cem. O malandro embolsou oitenta e cinco mireis. Estou te falando. Você é meu chapa, não pode ficar de fora.

- Vem com essa não Biscate. Você se lembra de que mês passado teve até tiro. Ainda bem que sou magrelo, o cara quase me acetou. Passou tirando tinta.

- Desta vez é garantido. Ontem veio o sujeito do banco. Eu sei por que se vestia todo engomado carregando uma daquelas pastinhas pretas que tem nos filmes. Estava cheia de dinheiro, sinto nos meus ossos. Ele ficou só na porta, nem entrou, daí uns minutos recebeu a mala de volta e foi embora. Te garanto meu velho. Estava lotada de verdinhas.

- Conversa, Biscate, você viu o cara do banco por que queria que fosse o cara do banco e você sabe que notas de cem são de um azul desbotado. Aposto que o sujeito vendia formol, veio renovar o estoque da velha. Dizem que ela mora ali desde a época de D. Pedro, ela é bruxa. Até minha avó quando menina tinha medo desta senhora.

* * *

Nos áureos tempos do norte, Belém se tornou porta de entrada da região amazônica, quem desejava explorar as riquezas da floresta faziam dali seu quartel general.

Muitas famílias do sul e até do estrangeiro enchiam a cidade de coisas modernas, eram tantos novos hábitos que ali muito cedo ganhou ares de Europa.

A quinta dos Maletti, uma solitária propriedade no Morro das Mangueiras aos poucos foi ganhando companhia. Suas vizinhas eram belas, porém mansão alguma roubaria o trono daquele casarão colonial planejado por artífices italianos.

Dona Hortência Maletti, moça prendada podia ser vista nas janelas do casarão, jamais descia às ruas. No começo, sua família prosperou com o comércio negreiro, depois explorou ouro e com o fenômeno amazônico aumentou sua fortuna tratando da manufatura da borracha.

Os melhores partidos da região tentaram conquistar o coração da beldade. Comerciantes, políticos, artistas e até um janota americano andou ciscando aquele terreiro. Nenhum arrebatou os olhares da dama.

Sem marido ou filhos, a moça permaneceu só. Os negócios deixaram de ser rentáveis, os anos se acumularam trazendo o cansaço e hoje aquela que foi o orgulho da velha Belém destoa envergonhando a vizinhança.

Quem pela rua passa, comtempla a fachada rota de vidros quebrados emoldurada pela ausência de reboco, em diversos pontos da beira do telhado, caibros apodrecidos se espoem às intempéries. Sob a luz da lua, a sombra da mangueira morta projeta-se da terra como dedos esqueléticos de um passado glorioso. Ali onde outrora havia fartura, agora jazia tudo em ruinas.

Nos dias de mocidade da avó do Tião, a casa já havia sido tomada pelo abandono, nas janelas do palacete apresentava a figura excêntrica da mulher de cara branca que provavelmente um dia tinha sido feliz.

* * *

- Você não acredita em mim, mas acha que a mulher é uma espécie de múmia. Claro que herdou a casa. Só não gosta de aparecer.

- Então tá. Se ela tem dinheiro, por que não conserta pelo menos o telhado, quando chove, lá dentro deve molhar mais que do lado de fora. E esses cães, coitados, estão mortos de fome, vão comer até nossos ossos.

- Tião, Tião, já te falei. Tá tudo dominado, é só jogar um pedaço de pão e correr pra galera. Vão ficar quietinhos, quietinhos. Tem mais, ela não gosta de gente por que deve ter sido largada pelo namorado.

- E você? Confia no que seu primo fala. Ele é igual papagaio, só repete o que ouve dizer. Tá cheirando a encrenca, e das grandes.

Enquanto a noite vinha lenta, os dois resolveram andar pelo quarteirão. Malandros muito tempo parados chamam atenção. Alguém um pouco mais precavido poderia acionar o camburão.

Aproveitando a última luz do dia, a ocupante da quinta preparava-se para recolher. Sem energia elétrica a escuridão vencia o dia mais cedo lá dentro.

Em frente a uma penteadeira vitoriana, com os pés imersos na bacia cheia de infusão de arruda, hortelã e sais de banho, a senhora Maletti espalhava uma pomada em seu rosto e colo, sua pele alérgica aos raios do sol necessitava tais cuidados mantendo-a como prisioneira de sua própria alcova. Desde muito cedo aprendeu que os perigos espreitavam do lado de fora daqueles umbrais. Restava-lhe a proteção das paredes carcomidas de seu antigo lar.

O tempo parecia ter cessado seu correr. Biscate estava tenso com tantas reclamações do parceiro. Companheiros de tantas jornadas, não entendia o motivo de tanta relutância.

Na esquina, bem no fim da praça havia um bar, todas as mesas vazias, no balcão uma morena de olhos apertados brincava com o celular. Se tomassem uma, certamente Tião perderia o medo.

- Que tal uma pinga para espantar o calor?

- Tá maluco! Não basta o tempo que ficamos na praça dando bandeira, você ainda quer meter a cara no boteco. Se der merda, todo mundo vai saber que passamos o dia rondando o lugar.

Ele tinha razão, por não serem do bairro, acabariam sendo suspeitos. Bastava uma simples descrição e antes do dia acabar estariam fichados. Tem outra, Biscate não tinha freio, após a primeira dose não iria parar até despejar toda a garrafa.

Um suspiro enfadonho ajudou a expressar a desilusão com seu amigo. Ele só via o lado ruim da coisa.

- Você tem certeza que ela mora só?

- Claro. Meu primo falou que por uns tempos morou fora, acho que nos Estados Unidos, voltou fugida. Acredita que levou uma empregada marajoara com ela, a pobre coitada nem português falava direito. Trabalhou feito escrava por mais de vinte anos. Se a vizinha não achasse aquilo esquisito, a mulher tinha morrido de trabalhar. Foi nos anos setenta, eu acho.

- Aí também não né Biscate, pô, você não sabe de nada, só acha. Primeiro a mulher não sai de casa, depois morou na gringa. Decide meu. Isso vai dar ruim, estou pressentindo.

- E daí se a coroa sai ou não sai. O negócio é o dinheiro. Só cenzão. Quantas notas devem caber naquela mala. Vamos por o burro na sombra. Vida de marajá.

- Sei não, sei não!

A escuridão tomou conta da rua, como de costume quase tudo estava deserto, apenas o bar permanecia aberto esperando alguma alma sedenta.

Mais uma curta caminhada pelas redondezas para certificarem-se que tudo estava tranquilo. A noite combatia com violência o brilho das luzes de mercúrio no topo dos postes. O palco estava armado para aquela aventura. Seria muito fácil subjugar a vítima, se gritasse ninguém iria ouvir, se ouvissem não sairiam em seu auxilio. A mulher da cara branca jamais angariou simpatia. A louca da quinta dos Maletti manchava a imagem do bairro, um trator deveria limpar aquela imundice da face da terra.

Olhando em todas as direções, invadiram o quintal pelo portão de ferro batido. Seguiram pelo passeio de tijolos soltos, ladeado por ervas daninhas. Não tardou para que os cães os cercassem, pelo menos meia dúzias de espécies variadas. Tião jogou os pães que estavam em sua mochila. Os mais rápidos abocanharam a oferta fugindo com os outros em seu encalço.

Biscate tinha razão. Famintos, dependiam da bondade de estranhos, por isso não atacaram.

A imensa porta de mogno protegia os segredos do sombrio interior da mansão. Pelos vidros quebrados distinguia-se um grande salão. A maçaneta não funcionou, eles tinham ferramentas que nem precisaram ser utilizadas. Onde antes havia vidro, Biscate pode enfiar a mão. Tateou até encontrar uma rustica tranca de madeira. Girou e porta se abriu.

No quarto de cima, a senhora Maletti despertou...

Com ajuda de lanternas, contemplaram a derrocada do imponente aposento.

O salão muito espaçoso estava entulhado de moveis antigos, a maioria em pedaços. Estantes, guarda-louças, sofás e um velho piano próximo da escada para o andar de cima guardavam sobre si caixas de pizzas e outras comidas, algumas azedas rivalizando em odor com as fezes de cães espalhadas por todo lugar.

Algumas janelas estavam bloqueadas com pedaços de tábuas, outras conservavam restos de cortinas bordadas, dava até para ver a luz dos postes lá na rua. Nas paredes, pendurados de forma displicente quadros dos mais diversos estilos, alguns com paisagens campestres mostrando indígenas de corpos nus, outros mais solenes estampavam os retratos dos pilares daquela família.

Os invasores não conheciam arte, se olhassem de perto descobririam assinaturas famosas. Eles queriam dinheiro, as tão apregoadas notas de cem.

A medida que avançavam em direção ao coração da casa, as sombras adquiriam vida. Um chapéu jogado sobre o candelabro pareceu um gigante na tocaia, o balançar da cortina em frangalhos projetava no piso o suave rastejar de uma serpente. A cada passo, Tião sentia o medo lhe sufocar. Até as trincas das paredes traçavam o contorno de semblantes em desespero. Biscate cego pela ganância seguia na frente rompendo qualquer obstáculo.

Na última janela do lado esquerdo era de onde a cara branca da mulher solitária espreitava, lá deveria ser sua alcova. A esta hora, surpreendê-la-iam em pleno sono, obrigando-a ceder-lhes tudo que possuísse algum valor.

Seguindo por entre livros mofados, tapetes enrolados e móveis quebrados, o larápio sentiu vontade de vomitar. Apoiou-se no corrimão, se não fosse a presteza do Tião em socorrê-lo, tudo aquilo poderia ir ao chão.

Caminhando mais um pouco, por baixo das roupas sujas abandonadas, uma tabua rangeu ao ser pisada. A sensação de ter olhos vigiando deixou Tião ainda mais desconfiado. Jamais deveria ter ignorado seu coração, não deveriam estar ali, pessoa alguma deveria entrar naquela misteriosa casa.

Vencendo os embaraços, pararam diante dos aposentos da velha. Com certeza a porta ausente havia sido usada como tapume de alguma brecha do assoalho decrepito. Com cuidado examinaram o local. A fraca luz das lanternas não poderia alarmar a residente.

O quarto não era diferente do resto dos outros cômodos. A mobilha decadente misturava-se à imundice. Sobressaiam deu um lado a penteadeira e do outro um surrado roupeiro, entre eles a cama.

Apresando em surpreender a vítima, Biscate correu encontrando o leito vazio. Fez um sinal de silêncio ao amigo que precavido se inclinava ao lado da cama. Lá embaixo, o lixo não oferecia abrigo.

O roupeiro parecia aberto, ali poderia estar escondida. Juntos seguiram em sua direção.

Espantados viram a porta se abrir.

Uma luz cegante atordoou os invasores. Inconscientes caiaram ao chão.

Tião acordou nos porões da Quinta dos Maletti. Estava algemado por grilhões enferrujados, tentou gritar, sem voz percebeu sua boca obstruída por uma haste de metal atrelada a nuca por tiras de couro, apesar do esforço apenas gemeu. Com o tempo seus olhos foram se acostumando com o ambiente.

Diante dele, partes do amigo Biscate eram acrescentadas na antiga receita da pasta que a velha remexia ao som de sinistras gargalhadas.

TEMA: Baseado em fatos reais

Nos últimos meses foi amplamente noticiado nos telejornais e mídias eletrônicas a situação de uma idosa que vivia num casarão caindo aos pedaços no bairro de Higienópolis, inclusive que era investigada pelo FBI. Este conto toma liberdades criativas inserindo uma possível causa sobrenatural a um fato cotidiano. Não é uma fanfic. Que tiver curiosidade sobre o fato, as matérias jonalisticas estão disponíveis no Google, basta digitar casa abandonada de Higienópolis.

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 25/08/2022
Reeditado em 27/08/2022
Código do texto: T7590183
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