Necronutrição

Dentro das mentes situa o conhecimento, radical fosfato do espírito, duas fitas compostas de sonhos e lembranças emaranhadas no infinito além do ser.

Um aglomerado de matéria em algum lugar no tempo e no espaço se recusou a esfriar.

À medida que o movimento no cosmos diminuía, forçou a temperatura a cair.

O calor emitido pela união de tal matéria causou efeitos grandiosos em suas composições.

Um escudo invisível apareceu ao redor do corpo, limitando as influências cósmicas.

Com a luz queimando dentro dele, nasciam sombras.

Espectros saíam de suas cavidades e vagueavam em seu céu.

Como não podiam passar o escudo, não podiam alcançar a escuridão do cosmos, assustados pelas luzes e pelo calor emitido das entranhas pelas quais entraram em existência, começaram a chorar.

Em grande velocidade eles giravam...por um tempo indefinido, derramaram suas lágrimas sobre as faces da matéria, que também girava junto com a dança de seus filhos.

Os vestígios de tal tristeza cobriram o aglomerado, resíduos das lágrimas acumuladas nas cavidades e na face da matéria, que continuava a dançar. Extasiado com esse movimento, ele mudou até mesmo sua aparência para uma forma circular.

Alguns espectros fizeram sua morada nas sombras mais frias, outros continuaram a vaguear no céu.

E o escudo que os separava do cosmos foi enfraquecido à medida que a temperatura da matéria caía. Eventualmente outros corpos vinham do cosmos, chocaram com o escudo, mas devido ao enfraquecimento ele foi quebrado, e um buraco abriu o caminho para a circulação dos espectros entre a matéria e a escuridão. Um corpo orgânico com aspectos humanóides e culturais, que apesar de morto era repleto de vida, ao contrário de tudo o que existia, tocou a face da matéria e a mudança começou.

A matéria criou consciência e meios de comunicação, uma onda de conhecimento se fundiu a ela, cada pedacinho de si mesmo, comunicou, conheceu e sentiu um ao outro, um senso de unidade fez deles um todo e a primeira vontade surgiu.

O que era uma aglomeração de elementos minerais e depois de água, tornou-se uma entidade consciente, inteligente e viva, que se autodenominou Octal.

Logo iniciou-se a proliferação de fungos e bactérias, devoradores de escuridão, caóticos, implacáveis.

Explosões coloridas de cogumelos gigantescos, musgos e flores adornavam a paisagem.

A morte, ainda criança, desfrutou o início do que seria seu banquete eterno.

Os vermes alimentados pelos cadáveres dos fungos sofriam constantes mutações, novos habitantes, descendentes dos primeiros, começaram a nascer com hábitos decompositores.

A constante e certa mudança dilatou a consciência de Octal, o tempo passou rapidamente, tudo o que ali nascia, ali era devorado.

Os vermes que se alimentavam dos cogumelos gigantes cresceram por quilômetros, outros evoluíram para insetos, voadores, terrestres e subterrâneos.

Em estratégia, os fungos diminuíram de tamanho, exceto por alguns, que se separaram da grande rede micelial e não compartilharam seu conhecimento com o grande espírito.

Eles se levantaram gigantescos e fortes, semelhantes a uma noite estrelada, determinados a devorar aqueles que os devoravam, arrancaram seus micélios do chão e se tornaram ainda maiores, criaram lanças, dominaram a ciência, domesticaram o fogo e água, foi feita a primeira tribo, os cefaloprófitos.

Ao longo de Octal, eles vagavam batalhando contra criaturas colossais. Em um momento de caça, no silêncio eles sentiram algo estrondoso estremecer todo o solo. Na caça, quem se retira é a presa, e o que se aproximava na distância também estava a caçar.

Um inseto voador, de casca dura e verde escuro, que refletia a luz dos cefaloprófitos se aproximava. Um grito tribal foi emitido dos fungos gigantescos, lanças cortaram o vazio até atingirem a carne, o inseto caiu abatido, o chão tremeu e uma grande nuvem de areia subiu.

Durante alguns minutos todos os cefaloprófitos saciaram sua fome com o cadáver da caçada bem sucedida.

Repentinamente um buraco titânico abriu-se na areia, engolindo quase todos os cefaloprófitos gigantes, só sobreviveram os mais afastados do cadáver do inseto.

Um verme assustadoramente grande para os primeiros caminhantes, apontou suas presas para fora do buraco e retornou ao intestino de Octal, causando terremotos.

Após terem se chocado com algo devastador, os cefaloprófitos permaneceram inoculados, proliferando seus micélios para efetuar sua reprodução, conectando-se novamente à grande rede micelial, tornando-se uma unidade com Octal.

Octal não tinha dia nem noite, mas conhecia a necessidade de seus filhos de colaborar com o constante desenvolvimento da vida. Expulsou os espectros de suas cavidades, com descargas de energia mais intensas.

Os cefaloprófitos liberaram seus esporos luminosos no ar, nuvens verde e violeta espalhando sua progênie que crescia rapidamente com o calor de Octal e as lágrimas dos espectros.

Com hipercomunicação e memória coletiva restaurada, os cefaloprófitos descobriram que aquele verme titânico, descansava calorosamente ao redor do coração de Octal.

Uma segunda vez, os primeiros caminhantes se separam da grande rede micelial, desta vez em maior número, e desceram um túnel até o centro de Octal. Sem que os cefaloprófitos pudessem reagir, a boca aberta do verme, cheia de dentes afiados por quilômetros a frente, era tudo o que eles podiam ver antes de serem engolidos. O verme titânico cresceu imediatamente, cavando túneis ainda mais largos até o coração de Octal e o engoliu. O verme titânico entrou em um estado de hibernação, Octal morreu, sua consciência permaneceu fragmentada nos esporos dormentes em sua matéria. O escudo desapareceu, os corpos vagantes do cosmos se chocaram e estilhaçaram o que sobrou daquela grande entidade morta, até se tornar mais um pedaço de matéria do cosmos. A maioria dos pedaços permaneceu no vazio, outros se chocaram com escudos de outras entidades, mesmo depois de milhares de anos-luz. Aqueles que chegaram ao chão de entidades mortas, sem o clima ideal para a vida extraterrestre, permaneceram os mesmos. Aqueles que colidiram com os escudos se estilhaçaram, e quando chegaram ao chão, influenciaram o todo, contaminando novos corpos hospedeiros com os fragmentos da consciência de Octal, causando animação no que estava suspenso por milhares de anos.

Em 1972, a notícia dos avistamentos de OVNIs em Prados Mórbidos chamou a atenção de todo o mundo. Mas o que causou espanto na sociedade, segundo a mídia da época, foi um caso isolado dos OVNIs. Uma mentira anunciada para abafar um caso polêmico. Instituições acusaram e persuadiram uma jovem adolescente a acreditar que ela tinha explosões psicóticas e era culpada de crimes hediondos, tais como execuções quase impossíveis de serem realizadas por apenas uma pessoa. Tudo começou quando um grande objeto metálico, maior e possivelmente mais pesado que o meteorito Hoba, apareceu misteriosamente nas terras de um fazendeiro local. Ninguém o viu cair, e foi visto pela primeira vez pela filha do fazendeiro, uma menina de dezessete anos de idade que sofria de um caso extremo de fonofobia e estava sempre usando tampões auriculares. A situação se agravou quando o fazendeiro impediu que estudiosos, espectadores e até mesmo as autoridades entrassem em sua propriedade. Ele reuniu um grupo de agricultores, que se armaram e começaram a atirar nas pessoas, que, para ver este objeto misterioso, violaram as cercas de arame farpado em suas terras. Mesmo com os corpos de alguns invasores caídos, mortos à vista de todos, outros continuaram a invadir, correndo em direção ao gigantesco objeto.

Os fazendeiros mataram várias pessoas até a chegada da polícia, que após uma longa e sangrenta troca de tiros, eliminou todos os participantes daquele grupo de fazendeiros, inclusive o proprietário da terra. Quando se aproximaram do objeto, os policiais ouviram uma freqüência sonora, entraram num estado de transe e atiraram uns nos outros. O chão estava repleto de corpos e a grama encharcada de sangue. Apenas a filha do fazendeiro sobreviveu.

Encostada na parede da varanda de sua casa, cobrindo os ouvidos com as mãos, a menina ficou aterrorizada, levantou-se e viu todas aquelas pessoas mortas, no quintal onde sempre brincava. Ela aproximou-se do objeto, parou e olhou toda a carnificina. Algas e fungos haviam crescido no objeto misterioso. A garota, curiosa, tocava alguns cogumelos viscosos de cor roxo escuro com pontos brilhantes, que se moviam. Alguém se aproximou sem que a menina notasse e tocou seu ombro, no susto ela tropeçou, caiu para frente com o rosto sobre o objeto e desmaiou. Algumas substâncias dos cogumelos entraram em contato direto com as feridas no rosto da garota e ela sonhou. No sonho, havia uma floresta com uma penumbra densa de névoa violeta, sombras escuras com tentáculos circundavam a menina. Apalpando o vazio a sua frente, ela caminhou até tocar algo sólido, e começou a apalpar, senti-lo para identificar o que era. A névoa violeta estava baixando ao nível dos olhos, e a menina percebeu que estava tocando uma cabeça podre presa em um galho de árvore. Espantada, notou as grandes presas que a cabeça tinha. Ela olhou para os lados, e as figuras com tentáculos desapareceram. Em todas as árvores havia cabeças presas. À distância, uma cobra gigantesca com chifres maleáveis se aproximava batendo os chifres nas árvores. Seus olhos eram amarelos e vermelhos. A garota correu, mas parou de fugir quando percebeu que o corpo da cobra estava ao seu redor. A enorme cobra se aproximou à frente da garota e abriu a boca, expandindo-se, revelando um humanoide que saía de seu interior: um corpo feminino despojado de sua pele, sangrando em carne viva. Sua cabeça era o crânio de uma vaca, no buraco de seus olhos via-se vestígios de névoa violeta. Ela aproximou-se da menina, e uma voz mais poderosa e assustadora que um trovão, ecoou de todos os cantos, abalou o chão e as pernas da garota que caiu de joelhos cobrindo suas orelhas.

— Como é bom vê-la novamente! Olhe para mim, eu e o som da minha voz que ecoa neste local não vamos machucá-la, tire suas mãos dos ouvidos e confie em mim, Silvana Alves.

A menina olhou para o ser enquanto tapava os ouvidos com as mãos.

— Você percebe que está me escutando e isso não lhe faz mal? Nós estamos dentro de sua mente, e sua mente dentro de outra mente coletiva. Preste muita atenção no que vou lhe dizer! Silvana, sei que parece loucura, mas isto é real, não apenas um sonho ou alucinação! Não tenho muito tempo para explicar até que sua experiência se intensifique. Será difícil a cada segundo que passa, os pensamentos vêm correndo na sua direção, fora de sintonia, feito várias rádios em diferentes estações de notícias. Aproveite o deslumbramento desta rede invisível de informações e aprenda! Quando for insuportável, espere, crie consciência de que vai passar, são efeitos químicos. Quando você acordar, todos estarão mortos no chão, inclusive sua mãe. Escute atentamente! Não toque nos corpos, eles estão contaminados, um fungo de um mundo antigo e distante os inoculou e está proliferando dentro deles. Este fungo emite uma frequência sonora que faz com que humanos e animais percam sua sanidade, depois tomam o controle do sistema nervoso central dos hospedeiros. Silvana, quando acordar, coloque uma máscara com filtro, certifique-se de usar seus protetores auriculares e queime os corpos antes de eclodirem para liberar os esporos no ar. Se isto acontecer, pode desencadear um efeito dominó que vai mudar todas as vidas terrestres.

Silvana, mesmo com os ouvidos tapados, entendeu tudo. Levantou-se, baixou as mãos e perguntou ao ser...

- Quem é você, como sabe meu nome e como está certo de que estas coisas acontecerão?

- Sou apenas vestígios de informações, uma consciência fragmentada que viajou de um tempo não muito distante de agora, para um passado além dos mundos, mais antigo do que a existência desta galáxia, portanto já tive muitos nomes.

- Como assim, o que está acontecendo? Estou ouvindo tantas vozes, eu quero acordar, não quero morrer!

A mente de Silvana estava se expandindo, as informações e pensamentos vinham como ondas, cada vez mais rápido e maior. Ela acreditava ter perdido completamente sua sanidade. Quando a onda chegou, Silvana respirou e tentou falar, mas só podia gritar "Aaaa...".Atirada ao chão na floresta, ela olhou o ser na sua frente. Arregalava os olhos e gritava, colocando as mãos na cabeça. As árvores se transformaram em carne, gemidos de dor e gritos horrorizados emitidos pelas almas que saíam dos crânios amarrados nas árvores, e o humanóide de cabeça de vaca desapareceu lentamente, como fumaça na escuridão. Antes de desaparecer completamente, ele deixou um sussurro, que foi proferido apenas nos momentos em que as ondas passavam.

Quando Silvana acordou, colocou as mãos sobre o rosto e notou que havia se machucado. Cambaleou até sua casa, lavou o rosto na pia do banheiro, curou uma ferida nos lábios e outra acima do nariz, e em seguida sentou-se no vaso sanitário, ainda em choque com toda a experiência. Quando foi tirar os tampões auditivos, lembrou-se do sussurro e os deixou no lugar. Silvana foi para debaixo do chuveiro e se molhou até encharcar suas roupas. Depois desceu até o porão, colocou uma máscara que seu pai usava para pulverizar o campo, vestiu um macacão de proteção apiário e entrou na cozinha à procura de fósforos. Sua mãe tinha o hábito de escondê-los. Silvana ouviu um estalo vindo do quintal, olhou da janela e viu uma fumaça verde perto de alguns corpos. Subiu em uma cadeira, encontrou os fósforos no armário e os colocou no bolso de seu macacão, depois, pegou um galão cheio de gasolina na despensa do alpendre. A barriga e os olhos dos mortos encheram-se como balões e em seguida explodiram, liberando esporos no ar. Os esporos também saíam das cavidades dos corpos que não haviam estourado. Silvana passou jogando gasolina sobre os mortos e viu seu pai, com a barriga e os olhos flácidos, rasgados, vazio, sem órgãos e sua carne por dentro totalmente branca, coberta por um conjunto de hifas emaranhadas. No poste da cerca, ela desmaiou quando encontrou sua mãe, enforcada com arame farpado. Suas mãos estavam ensangüentadas, sua barriga e olhos inchados quase explodindo, esporos saíam da boca, orelhas e nariz. Silvana fez uma oração, derramou gasolina sobre o cadáver de sua mãe, e quando ela acendeu o fósforo os mortos começaram a falar. Todos estavam dizendo as mesmas coisas ao mesmo tempo:

- Silvana, você é nossa fonte de orgulho, sempre soubemos que você superaria grandes obstáculos! você pode ler nossos lábios, mas tire os protetores, filha, confie em nós. Só queremos protegê-la, escute nossa voz, esta é a última vez…

- Mãe, desculpe, eu não queria fazer isso com todos vocês, mas tenho que deter esta proliferação.

Silvana deixou cair o fósforo aceso na perna do cadáver de sua mãe e o fogo se espalhou para os outros corpos, que gritaram até voltarem ao pó. Ela encontrou todo o veneno que havia na fazenda, encheu as bombas do trator, pulverizou o objeto misterioso e toda área do terreno onde estavam os corpos. Após terminar, voltou para casa, tirou os protetores auriculares, tomou um longo banho quente e exausta, adormeceu.

O objeto misterioso no pátio rachou, de dentro da casca robusta, saíram alguns cefalópodes sombrios, semelhantes a águas-vivas e flutuaram até os pastos. Coagiram o gado a segui-los e sugaram todo o sangue dos animais. Ao amanhecer, Silvana acordou com o exército invadindo sua casa. Foi presa e algemada em um caminhão militar, ela observou ao redor das estradas de terra que brincou durante toda sua infância. Nos pastos, centenas de animais: cabras, vacas e cavalos, todos em pele e ossos, caídos, mortos no chão. Silvana cantou baixinho, seus olhos regaram os caminhos secos da memória, pronunciou aquele sussurro e para um sonho profundo ela saltou.

Autor: Aleph Creep