O bar na beira da estrada

Sentado na varanda da casa na chácara, Afonso observava os campos, que no passado, estavam cobertos de lavouras de soja e batata. A fazenda do avô se estendia até perder-se de vista no horizonte. Com o tempo, devido às dificuldades de comércio e do clima seco, as plantações diminuíram, as terras tornaram-se ociosas e improdutivas.

Quando o avô morreu, o pai de Afonso não herdou uma fazenda grande, mas uma pequena chácara que produzia para o próprio sustento. O pai e a mãe morreram, e o filho estava ali agora, chegando aos quarenta anos, sozinho e pessimista com o futuro. Constatando que o tempo é cruel.

Afonso estava acostumado àquele lugar, não queria sair dali, mas também não podia ficar naquela rotina, cuidando de meia dúzia de canteiros de hortaliças. Precisava tentar algo novo.

Sentado naquela varanda, olhava através do campo de mato ralo, um ponto distante onde, de vez em quando, algo relampejava, um clarão rápido, fugaz.

Eram reflexos nos parabrisas dos carros que passavam pela estrada de asfalto. Muito distante para vê-los, ou ouvir o ronco de seus motores, apenas o brilho do sol em seu casco de aço. À noite, eram as luzes dos faróis atravessando a escuridão e em seguida, as lanternas vermelhas sumindo na distância.

Então, naquele instante, decidiu usar o dinheiro da poupança, dinheiro que havia guardado para melhorar a chácara, para comprar o bar que estava à venda bem ali, naquela estrada. Era um modo de mudar de vida, de atividade, sair daquele marasmo sem emoções que era sua vida. Seria um bom investimento.

Levou alguns dias para que a compra e venda fosse realizada em cartório, conforme manda a lei e o bom senso. O bar não era grande, tinha um balcão de fórmica, uma geladeira industrial, oito mesas e trinta e duas cadeiras de plástico reforçado, uma bancada de serviço e utensílios diversos.

O bar de Afonso funcionou razoavelmente por cerca de 1 ano e meio. Ali paravam viajantes que iam para o litoral, para a serra, caminhoneiros, vendedores e comerciantes. A féria no fim do mês não era grande coisa. Depois de pagar as contas com despesas de água, luz, impostos, salário de dois funcionários, sobrava muito pouco. Afonso começou a pensar que fez um mau negócio comprando aquele bar, e tudo piorou quando uma rodovia interestadual foi construída dois quilômetros dali. Os carros que passavam em frente ao bar, seguiam agora pela estrada nova. O bar ficou então jogado às moscas.

Os poucos clientes que entravam no bar eram de caráter duvidoso, mas Afonso não se importava. Nada mais importava, estava falido, não tinha família, nem perspectivas de futuro. Pensou em vender o bar, mas quem compraria? Cada dia o estabelecimento ficava ainda mais avariado pelas brigas, maus tratos, garrafas arremessadas, e até tiros, que esburacavam as paredes. Logo, o lugar virou referência entre bandidos e pessoas sem escrúpulos, sem dignidade e sem vontade de viver. Assim como Afonso. O bar, na beira da estrada, acabou atraindo o que o dono sentia por dentro.

Aquele dia comum e ordinário se transformou aos poucos. As nuvens escureceram gradativamente, tão devagar que ninguém percebeu. E no meio da noite, uma tempestade pegou todos de surpresa. O bar estava vazio, nenhum cliente desde que abrira. Afonso mandou o único funcionário para casa e já estava se preparando para fechar quando uma moto estacionou em frente, e seu condutor, vestido de preto, entrou e pediu uma garrafa de whisky. Fazia tempo que a bebida não era pedida, então Afonso prontamente serviu o homem. Um senhor já, devia ter mais de sessenta anos, barba e cabelo grisalhos, muitas rugas e manchas senis pelo rosto e braços. Sentou na mesa do fundo e começou a beber em doses pequenas. Afonso achou melhor não incomodar o homem.

Logo em seguida um carro parou bruscamente, como se o condutor tivesse resolvido parar no bar no último segundo. Depois de alguns minutos, uma mulher entrou, sentou no tamborete, se debruçou sobre o balcão e pediu uma caipirinha. Ela devia ter entre trinta e quarenta anos, parecia cansada, exausta. Não usava maquiagem e suas roupas não denunciavam seu trabalho nem a posição social, na verdade, ela era muito comum e passaria despercebida em todos os lugares, era quase invisível.

Quase no mesmo instante, entraram dois homens, jovens ainda, mas a aparência era de homens calejados, massacrados pela vida e emoções violentas. O mais velho, com os cabelos dispersos sobre olhos e orelhas, tinha tatuado no braço direito, um dragão chinês e no pescoço, abaixo da orelha esquerda, uma aranha viúva negra. Carregava pela alça, uma mochila preta, de pano. O companheiro deixava a camisa aberta no peito, para exibir uma corrente de ouro. Usavam roupas comuns, mas com aspecto de sujas e puídas.

Ficaram parados por um momento, examinando o ambiente, depois se sentaram numa mesa, de costas para a parede e pediram cerveja, que Afonso serviu com a rapidez que lhe era peculiar. Ele não os conhecia, mas imaginou que boas pessoas não eram. A mochila aos pés deles sob a mesa, era suspeita.

O homem de preto tossiu violentamente por alguns segundos. Levou um lenço à boca para limpar e depois de examiná-lo rapidamente, dobrou com cuidado e voltou a guardar no bolso do paletó. Ao ver que os outros olhavam para ele, disse:

— Câncer no pulmão. Os médicos disseram que eu tinha dois meses de vida. Isso foi há três anos.

Meteu a mão no bolso, pegou um maço de cigarros, pegou um, colocou entre os lábios e acendeu com um isqueiro platinado.

— O senhor tem câncer no pulmão e ainda continua fumando? —indagou a mulher.

— Fumando ou não fumando, a morte chega de qualquer forma.

— Poderia parar, fazer um tratamento. Hoje em dia a medicina está muito avançada em termos de cura.

— Câncer não tem cura — sentenciou o rapaz do colar de ouro — meu avô morreu de câncer nos rins, meu pai morreu com câncer no estômago, o irmão dele morreu com câncer na garganta. Câncer hereditário. Não sinto nada por enquanto, mas vou ter com certeza. Ele vai aparecer algum dia, não muito distante. Está aqui dentro, escondido em alguma parte do meu corpo, esperando o dia certo para se mostrar. É por isso que eu quero aproveitar a vida enquanto tenho saúde.

A mulher fez um gesto para ele.

— Exatamente! Devemos aproveitar a vida enquanto temos tempo.

Afonso não conseguiu se conter e entrou na conversa.

— E trabalhar bastante. Sem dinheiro não se consegue nada na vida.

A mulher afirmou:

— E ter bons amigos, amigos fiéis que nos ajudam em tudo. Vocês são amigos ou irmãos? — indagou para os dois rapazes.

—Amigos — respondeu o rapaz — Somos amigos desde crianças. Com certeza somos fiéis um ao outro, não é Tom?

Tom esvaziou o copo de cerveja, colocou sobre a mesa e encheu novamente. Parecia aborrecido e sem vontade de responder. O companheiro continuou olhando para ele, à espera de uma resposta.

— Sou fiel a você, sim, Guto. Está satisfeito? Acha que vou te trair?

A mulher soltou uma risada irônica.

— Me casei com um homem que dizia ser fiel e no fim não era. É difícil encontrar um homem sincero.

O homem de preto revelou:

— Por esse motivo nunca me casei e nem quis ter amigos.

— Como é mesmo o seu nome?

— Renato.

— Muito prazer, o meu é Diana.

— Sua mãe lhe deu esse nome em homenagem à princesa Diana? Lady Di? — perguntou Guto.

— Não. Em homenagem à deusa Diana. Minha mãe achava que esse nome me daria sorte, que eu seria, não uma princesa, mas uma rainha, uma deusa. Ela me criou como uma princesa, como toda mãe cria suas filhas. Mas voltando ao assunto, seu Renato, olhando assim para o senhor, eu lhe acho triste e amargurado, e com razão, acho que o senhor deveria passar o tempo que lhe resta junto da família e não num bar de fim de mundo, bebendo e fumando. Além do mais, deveria usar roupas coloridas e não essas pretas de aparência sinistra. Desculpe a sinceridade. Eu falo demais.

Renato esboçou um sorriso.

— Sempre gostei da cor preta. A escuridão da noite pra mim é a melhor parte do dia.

— O senhor é agente funerário? — perguntou Guto. Tom deu um tapa no braço dele.

— Cê tá ofendendo o homem.

— Não me ofendi, não. Na verdade, também trabalho com morte. Estou aposentado agora.

— Foi coveiro?

— Não. Fui pistoleiro. praticava assassinato por encomenda.

— Aí está uma boa profissão! — exclamou Diana, gesticulando com o copo quase vazio — Acabo de sair da cadeia por ter matado um homem. Meu ex companheiro. Foi em legitima defesa, ele tentou me matar, mas o juiz decidiu que eu era a culpada. Peguei dezesseis anos, mas cumpri só seis.

— E saiu por bom comportamento? — Guto perguntou, parecendo mais interessado do que era de se esperar.

— Digamos que sim… mais ou menos… enfim, estou livre agora e não tenho mais nada, família, amigos, emprego, perspectivas… nada. — levantou o copo vazio em um brinde. — E vocês, meninos, tentem ficar longe da cadeia, hein… não é mole como parece.

Guto cutucou Tom com os pés por debaixo da mesa e olhou interrogativamente para a mochila.

—Digamos que seja… inevitável. Qual conselho você daria pra gente? — Questionou Tom de forma sarcástica.

— De verdade… seria melhor a morte. — Respondeu, amarga.

— Olha, com isso, eu posso ajudar… — Renato gargalhou entre um acesso de tosse - tenho minha pistola aqui.

Um silêncio pesado caiu sobre todos. Cada um pensando na vida, no passado e no futuro. Que futuro teriam? Nenhum deles parecia ter um futuro minimamente promissor. Cadeia, doença, solidão e ostracismo, miséria…

— Eu topo. — Diana foi a primeira.

—Topa o que, mulher? — Guto perguntou, assustado.

— A morte rápida e indolor.

— O que acham de um jogo? — propôs Renato — Pra animar a noite… já ouviram falar em roleta russa?

Tom ficou animado.

— Aquele em que a gente aponta a arma e atira, não sabendo se vai morrer ou não?

— Exatamente! Eu me aposentei, então não quero matar mais ninguém, mas não é por isso que estragaria o prazer de vocês de tirar a própria vida, e quer saber, eu vou entrar nessa também. Se eu morrer, o último que sobrar pode ficar com a pistola e com a minha Harley que está lá fora. O que me dizem?

— Eu topo! — Diana afirmou — E se eu morrer, o último fica com o carro que eu roubei… não se preocupem, foi em outro estado, a polícia não está atrás dele.

— Eu também topo — disse Tom, depois de virar mais um copo.

Guto não gostou da proposta.

— Você tá louco? Vai entrar mesmo nessa?

— E por que não? A polícia tá na nossa cola, não vai dar pra escapar não, meu irmão… e não vamos pegar só alguns anos não, nosso caso vai ser perpétua… e você sabe o que fazem com … na prisão. Prefiro morrer aqui hoje mesmo.

— Não sei não, cara… sempre soube que ia morrer jovem… mas hoje, agora?

— Alguma hora vai ter que ser, e você não prefere que seja sem dor? — Renato perguntou antes de escarrar no chão.

— Tá bom, então… A gente não tem nada pra oferecer… só o que está na mochila…

— E o que tem aí? — Perguntou Afonso, que até então ouvia tudo calado.

— Só quem sobreviver vai saber… — Respondeu Tom.

— Eu também quero participar… e quem sobreviver fica com o bar.

— Opa, agora o negócio ficou interessante! — exclamou Renato.

Eles se sentam a uma mesa só, Tom em frente a Guto, Renato diante de Diana e Afonso na ponta. Afonso arranjou cinco palitos de dentes, quebrou um, misturou sem que os outros vissem.

— Quem pegar o quebrado, é o primeiro.

Renato pegou o seu revólver 38, bastante usado, mas ainda mortal, extraiu as balas e deixou só uma na cápsula. Girou o tambor e colocou a arma sobre a mesa. Renato e Diana tiraram um palito inteiro, Guto, o quebrado. Renato empurrou a arma para ele.

Guto hesitou, olhou para Renato e seus olhos frios. Olhou para Tom, que olhava para a arma e se manteve pensativo.

— Não sou covarde — disse, pegou o revólver, encostou o cano na têmpora e apertou o gatilho. A arma faz click e não disparou. Ele teve sorte, por enquanto.

Afonso recolheu os palitos, misturou e distribuiu e quem pegou o quebrado foi Diana. Ela sorriu e agarrou a arma.

— Também não sou covarde.

Colocou o cano debaixo do queixo e apertou o gatilho. Nada aconteceu.

Tom é o seguinte e também ele passou ileso. Nova escolha de palitos. Desta vez, Renato, Diana, Tom e Guto tiraram palitos grandes. O palito quebrado só podia estar na mão de Afonso. Ele abriu a mão e lá estava ele, o palito quebrado. Afonso sabia que não podia desistir. Sem pressa, ele pegou a arma, encostou na cabeça e apertou o gatilho. Nada aconteceu.

Num gesto brusco, Tom pegou o revólver das mãos dele e examinou o tambor. Havia uma marca na câmara que continha a cápsula. Renato sabia exatamente onde a bala se encontrava e na vez dele, ao pegar o revólver, girava o tambor. Furioso, Tom levou a mão na cintura e por baixo da camisa, pegou uma pistola e deu um tiro em Renato. O homem caiu para trás. Assustado, Afonso jogou a cadeira para trás e se refugiou atrás do balcão.

Mas Renato não morreu, ferido no peito, pegou a segunda arma no coldre debaixo do braço dentro do casaco, e deu um tiro em Tom. Recuperando o controle, Guto se abaixou, abriu a mochila e pegou uma submetralhadora UZI.

Mas ele não teve tempo de apontar para Renato, que disparou duas vezes contra ele. Guto estremeceu e se retorceu, apertando o gatilho enquanto caía. Uma rajada de balas atingiu Diana no peito, no rosto, e na prateleira de bebidas. Os estilhaços caíram sobre Afonso, agachado, com a cabeça entre os joelhos.

Afonso viu a sua velha espingarda debaixo do balcão. Resistindo ao medo, ele pegou a arma, apontou para Renato mas não aconteceu nada. Rapidamente ele procurou pelos cartuchos. A munição de Renato tinha acabado também. Freneticamente ele procurou no bolso do paletó, enquanto uma mancha vermelha se espalhava pelo seu peito.

Afonso achou os cartuchos da espingarda e quando levantou para mirar em Renato, viu que ele não estava mais lá, Diana estava morta, Guto também e de onde estava não conseguia ver Tom. Ouviu alguém pisando sobre vidro e virou bem a tempo de ver um vulto de preto, não pensou duas vezes antes de atirar. Ainda viu Renato finalmente cair com um buraco no coração, antes de sentir o sangue escorrendo e a visão escurecendo. Antes de perder completamente a consciência, pensou que aquela noite havia sido a mais animada e interessante da sua vida e não mudaria nada, mesmo se pudesse.

Quando amanheceu, os dois policiais rodoviários que patrulhavam as redondezas, encontraram o bar na beira da estrada completamente silencioso. Ainda com as luzes acesas, ainda com a placa na porta que dizia: Aberto. Quando entraram, se depararam com os corpos.

Horas depois, a perícia deu o laudo: Um bando de criminosos invadiu o bar e iniciaram um tiroteio onde todos morreram, inclusive o dono do bar, o único cidadão sem ficha criminal.

Depois dessa fatalidade, o bar na beira da estrada ficou abandonado, ninguém se interessou por ele, diziam que era assombrado e que em noites de tempestade, quem passasse na estrada podia ver as almas dos defuntos ainda bebendo e conversando, exatamente como estavam momentos antes de morrerem.

Priscila Pereira e Antônio Stegues Batista
Enviado por Priscila Pereira em 25/01/2023
Reeditado em 25/01/2023
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