A AMIGA DO TRABALHO

Jairo descia apressado a rua rumo ao ponto de ônibus, era a segunda vez na semana que se encontrava atrasado para o trabalho. Juliana, sua amiga e colega de expediente, o aguardava em frente a uma banca de jornal. A jovem parecia entretida com algo nas manchetes de um periódico pendurado no chamariz do comércio.

─ Por onde você andou, Jairo? Já estou aqui há quase vinte minutos. Todo dia atrasado.

─ Estou aqui, estou aqui. O que você estava lendo?

─ As notícias do dia nesses jornais que sangram se espremer. Uma coisa horrorosa, uma moça encontrada trucidada.

Os olhos do rapaz correram pelas imagens sensacionalistas do periódico, algo capaz de embrulhar o estômago, sobretudo naquele horário às voltas do café da manhã. E, apesar daquelas fotografias projetarem um sentimento de repulsa num primeiro momento, não tardou para que algo mais abrangente o tocasse, uma estranha impressão de déjà-vu.

─ O ônibus, Jairo!

O grito emitido por Juliana serviu para tirá-lo do momento de introspecção proporcionado pela sensação incomum.

─ Vamos!

Rapidamente, ambos adentraram o coletivo que estava suficientemente vazio, a despeito do horário, para que conseguissem um assento lado a lado. Caso não encontrasse o tráfego muito pesado, chegariam ao local de trabalho em pouco menos de trinta minutos.

─ O que deu em você, Jairo? Estava distraído, viajando diante da banca de jornal. Tem aversão a sangue também? Conheço um monte de gente assim. Isso tem a ver com a criação. Os pais superprotegem os filhos, não deixam que sofram um arranhão. Aí qualquer coisa do mundo real é motivo de espanto.

─ Não fale besteira, Juliana. Meus pais, as pessoas que me criaram, foram cuidadosos sim. E corajosos. Pois não é fácil encontrar nesse país quem esteja disposto a adotar uma criança com a idade que eu tinha, sobretudo com a minha cor de pele. Mas, a atenção que tinham nunca se confundiu com excesso de zelo, com paparico, longe disso. O que senti diante daquelas fotografias não foi repulsa.

─ Então o que foi? Você estava com uma cara estranha….

─ Não sei ao certo. Naquele momento fui tomado por um lampejo, um estalo que me remeteu a uns pesadelos que têm perturbado o meu sono nos últimos meses.

─ Como assim?

─ Eu acordo cansado, muito cansado. Sabe aquela sensação de uma noite mal dormida? Mas eu não me lembrava do conteúdo dos sonhos que causavam tanta agitação ao meu sono, até ver aquela manchete. De repente, os eventos de angustiantes se tornaram claros como o dia em minha mente, como se eu estivesse ainda dentro deles.

A garota franziu o cenho, mas não emitiu uma só palavra e permaneceu concentrada no relato que o rapaz fazia de modo tão peculiar.

─ Não sei, Juliana. Não sei te explicar, mas era como se eu visse a mim mesmo de uma outra perspectiva, sabe? Eu estava livre, desobrigado de quaisquer privações. Eu, eu simplesmente vagava por onde eu queria ir, da maneira que desejava fazê-lo. Eu via o parque citadino, ou melhor, eu o percorria de uma maneira inimaginável. Eu sentia a aspereza, o calor de cada particulado da terra batida em meus pés e mãos. Era possível sentir e descrever cada nota aromática no ar. Enquanto eu corria e meu toque cortava a grama do relvado, a fragrância verdejante deixada para trás inebriava meu olfato, era uma impressão tão marcante que posso sentí-la nesse momento e imagino que agora que me lembrei, eu jamais volte a esquecer.

─ Jairo, isso é tão….tão….animalesco.

─ Sim. Verdade, Juliana. Eu me sentia integrado à natureza. A noite não guardava segredos de mim. Ao mesmo tempo em que os matizes flertavam em tons de roxo à lilás ao meu redor, ofereciam um esplendor que nem mesmo a mais competente palheta de um artista seria capaz de reproduzir. Mas….

─ Mas?

─ Mas, com toda essa exuberância veio à tona a razão de minha angústia. Enquanto eu corria livre, eu via uma sucessão de cadáveres, gente morta, estraçalhava. Amontoados de partes humanas. Carne e sangue como eu jamais imaginei. E, o que é pior, algo que eu reluto muito em dizer em voz alta, eu gostava do que via.

Perplexa, a garota tentava buscar palavras para expor o que sentia diante de um relato tão perturbador, mas não fora preciso, pois o ponto de descida se aproximava. Para ela, então, bastou consternar a situação.

─ Foi apenas um pesadelo, meu amigo. Já acabou.

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O dia de trabalho acabou e com ele a chegada do fim de semana se avizinhava.

─ Vamos, Jairo. É sexta-feira. As meninas e eu iremos ao barzinho. Venha com a gente.

─ Não estou muito animado para isso não, Juliana.

─ O que foi? É por causa da lembrança do sonho? Desencana disso. Já passou.

─ Não. Podem ir. Divirtam-se por mim lá.

No fundo, Jairo tentava dizer a si mesmo que as palavras da amiga faziam sentido, mas somente o que encontrava era a melancolia solitária do pesar. Como ele queria que os pais adotivos ainda estivessem por perto. Era como se a tragédia estivesse fadada a caminhar ao seu lado por toda a vida. Logo após ele já ter idade suficiente para discernir o mundo, as pessoas que o escolheram no orfanato lhe contaram que sua família original havia sido morta e só sobrara ele, como se por obra da divina providência. Jairo nunca fora atrás da história, não lhe interessava. Bastava saber que fora escolhido quando todas as estatísticas estavam contra ele. Mas a sorte não se farta em mostrar sua contraparte vez ou outra, a tribulação voltaria a cruzar seu caminho, dessa vez de uma forma mais viva, quando um acidente de automóvel lhe tiraria as pessoas mais importantes. Agora estava só. Tão solitário quanto a imensa e amarela lua no céu escuro e desprovido de estrelas que lhe encarava com pesar pelo vão da janela do apartamento que seus pais adotivos deixaram.

Deitado na cama que lhe parecia extremamente fria, Jairo fechou os olhos e desejou que seus sonhos voassem e o levassem a um paraíso encantado, onde anjos o conduziriam a um campo imaginado e florido, onde seus pais estariam lhe esperando de braços abertos.

O display do aparelho celular já marcava três e trinta e um da madrugada de sexta-feira para sábado, quando Juliana e Mara se despediram de Talita e Rebeca que saíram num automóvel de aplicativo. Quanto a elas, iriam a pé, eram vizinhas de prédio o qual não distava muito de onde estavam. Bastava cruzar as dependências do parque. A prudência não é muito amiga do teor etílico que, naquele momento, corria alto nas veias das jovens.

─ Ei, tem um cara parado bem ali, olhe Juliana.

Eram três horas e trinta e três minutos. O estranho diante delas apresentava uma fisionomia mesclada entre dor e satisfação. O tórax do rapaz subia e descia rapidamente, um vapor esbranquiçado escapava de sua boa, a despeito do calor da madrugada.

As amigas diminuíram o passo, mas continuaram a seguir em frente. Acreditavam que voltar, naquele momento, não seria uma boa ideia. O senso de análise de ambas estava completamente comprometido. Mara, posicionada à frente, arrastava a outra pelo braço.

─ Não podemos demostrar medo, Juliana. Ele não vai fazer nada. Confie em mim.

Juliana, inspirava o ar noturno e a lucidez começava a fazer morada em seu interior, como se um alerta de preservação tivesse sido acionado em sua mente.

─ Espere, Mara.

Juliana tomou a frente e olhou diretamente para o estranho, cujo semblante se mostrava um pouco mais devido à incidência do luar sobre ele.

─ Não pode ser. Jairo? É você, Jairo?

O rapaz nada respondeu. Para a mulher diante dele, os traços em seu rosto não deixavam dúvidas. Juliana, ainda que ébria, conhecia muito bem aquela fisionomia. Mas os contornos que vieram em seguida nada lembravam a face que via diariamente em direção ao trabalho.

Com um grito que travou o caminhar das jovens, o rapaz caiu de joelhos e com a palma das mãos no chão. A sequência ocorreu de modo rápido e decisivo, totalmente diferente do que o senso comum costuma supor.

Aquilo diante delas não era mais um homem. Mara foi jogada de encontro ao solo por uma sombra que nublou por alguns instantes o círculo amarelo no céu. A criatura deslizava seus dedos com a perícia de um grande mestre dando vida a uma obra-prima. Mas a tela que ele usava era de carne, e a tinta exibia um tom monocromático e pecaminoso.

Juliana, em pânico, encontrou forças para quebrar o gelo de suas pernas. Ela sabia que não havia o que fazer pela amiga, seus olhos vítreos e perdidos perscrutavam a imensidão vazia diante deles. A ela, Juliana, só restava fugir, correr para o mais longe que conseguisse. E foi o que ela tentou fazer.

Os passos, de início vacilantes, tornaram-se ágeis movidos pela urgência. Ela olhou para trás e notou o focinho da fera debruçado sobre o ventre exposto de Mara. Sem muito questionar, saltou o cercado de madeira que protegia o passeio público do córrego que atravessava todo o parque, mas antes de fazê-lo, girou mais uma vez a cabeça, porém agora ela já não via a criatura, apenas o que restara do corpo sem vida da amiga.

Seu coração disparava em aceleração, mas não havia espaço para desespero. Só havia uma saída: continuar fugindo. Seus tímpanos quase foram rasgados pelo uivo aterrador que ribombou pelas estruturas da ponte sobre sua cabeça. As lágrimas em seu rosto se mesclavam às águas fétidas e rasas do córrego que respingavam conforme ela tentava se apressar.

De súbito, o som de um grande impacto no espelho d’água arrancou-lhe um grito da alma. Ela não teve coragem de olhar para trás e encarar aqueles olhos amarelos e o sorriso aguçado de setas alvas e frias que, de certo, lhe aguardavam. “Engula o choro”. Era o que sua mãe lhe diria. “Nunca abaixe a cabeça para ninguém”. Seriam as palavras do seu pai. “Não seja dramática, Juliana”. Diria entre risos seu amigo Jairo. Jairo. Como ele poderia ser o demônio que ansiava por devorá-la?

Não. Ela não se deixaria levar assim, não se entregaria sem resistência e, como por obra divina, Juliana encontrou um caminho em meio à escuridão e definiu que chegaria até ele, de qualquer forma.

Entre pulos desajeitados, tentativa de corrida com a água nas panturrilhas e quedas com braçadas pouco produtivas, ela chegou à entrada do bueiro incrustado na parede, no exato instante em que os ruídos de impacto com a água se tornavam mais próximos.

O espaço na parede era estreito. A garota se espremia para avançar, o que conseguia com muito custo e não sem escoriações. Ela ganhava cada palmo de distância rezando para que fosse o suficiente. Não tardou para que um braço enorme adentrasse pelo buraco numa tentativa de alcançá-la. Juliana sentia a ponta das garras raspando na sola de seu calçado. A besta urrava de raiva e frustração, enquanto a garota buscava aderência na superfície lodosa para se desvencilhar de uma vez por todas de se perseguidor.

A abertura se afunilava cada vez mais, obra de alguns blocos soltos, provavelmente. Juliana sabia que não conseguiria prosseguir por um milímetro que fosse, de modo que só lhe restava torcer para que a fera não encontrasse uma solução para seu dilema.

O tempo passava e ora a fera esticava o braço, ora enfiava a cabeça executando um movimento acelerado e repetitivo com a mandíbula. Ela sabia que não alcançaria a ansiada carne da garota, mas não se fartava em torturá-la com a possibilidade.

Juliana achava que a aflição que a dominava não poderia se intensificar, mas ela estava enganada. De súbito, uma torrente de detritos do esgoto passou a descer pelo encanamento fazendo com que seu corpo começasse a escorregar em meio à água fétida e o limo. Em desespero, a garota tentava se agarrar em busca de salvação. Percebendo a mudança de cenário, a fera intensificou os ataques conseguindo lacerar a sola do um dos pés de Juliana atravessando a borracha do calçado com as garras afiadas de uma das patas. Gritando de dor pela ínfima amostra do que a aguardava, ela reuniu o que lhe restava de forças e pressionou os cotovelos rentes aos cascalhos da tubulação, deixando mostras de pele e sangue no processo. Como um último esforço e contando com boa parcela de sorte, suas mãos encontraram reentrâncias fortes e largas o suficiente para funcionar como um suporte que a impedissem de deslizar para a morte certa na boca da criatura.

Furiosa e frustrada, a besta urrava e uivava com a cabeça dentro do bueiro. O estrondo ribombando em sua cabeça era ensurdecedor, ela sentia que seus tímpanos seriam dilacerados e lutou contra a vontade de tapar os ouvidos.

A fera não esmorecia. Juliana sentia os músculos do corpo, sobretudo os dos braços esticados, queimarem como brasa, ela não sabia quanto mais ainda conseguiria resistir. Com a resignação a lhe oferecer um abraço, ela pensava em tudo o que havia vivido e nas coisas em que ainda ansiava viver, mas com um estranho pesar de que nada mais seria possível. Ela sentiu uma sonolência reconfortante chegando acompanhada do formigamento nos membros superiores.

Juliana se mantivera por um tempo que não fora capaz de descrever envolta nessa consternação, mas, embora não soubesse precisar, o intervalo decorrido tratara de fazer com que a manifestação da criatura a seus pés cessasse, assim como se mostrara suficiente para trazer os aguardados raios de sol. Percebendo a luminosidade substituir onde antes só havia trevas, fora incapaz de conter as lágrimas e a perda da consciência.

─ Aqui…aqui…por aqui, pessoal. Ajudem, rápido.

Sonolenta, Juliana descreveu os vultos do que mais tarde compreendeu que eram as silhuetas dos membros da equipe de resgate que a haviam encontrado e retirado daquele túmulo lodoso.

─ Não se preocupe, senhora. Você vai ficar bem.

Enquanto era carregada pela equipe de paramédicos, ela tentava a todo o custo reunir forças para dizer com a maior clareza possível:

─ Prendam….prendam ele. Jairo. Jairo Martins. Ele….ele...trabalha comigo...ele...ele é o assassino...prendam ele...Jairo...prendam o Jairo.

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Jairo, uma vez mais, despertava com o recorrente cansaço que lhe acometia em datas específicas nos últimos meses. Um entorpecimento tão grande preenchia sua boca ao ponto de supor que nem toda a água do mundo seria capaz de lhe aplacar a sede. Sentia cada junta do corpo ser retorcida por uma dor lancinante, algo que ele não compreendia.

Ele abria e fechava a mão direita e jurava ser capaz de ouvir o rangido das falanges. Três pancadas fortes na porta de entrada o fizeram sobressaltar. Ninguém nunca o visitava, além de Juliana. Mas ela nunca o fizera numa manhã de sábado.

─ Quem é?

As pancadas seguintes foram acompanhadas do estrondo causado pela porta vindo abaixo.

─ Polícia! Aqui é a polícia!

Sem nada entender, Jairo foi surpreendido pelos policiais que adentravam seu quarto de arma em punho.

─ Parado! Parado! Não se mexa.

Estarrecido, até meio abobalhado, o rapaz ensaiou um erguer de mãos desajeitado e antes que pudesse abrir a boca para balbuciar qualquer palavra, fora atingido pela pesada sola de um coturno. O golpe o fez cair de costas no chão completamente sem ar e com as marcas do solado estampando seu pijama.

Ainda sem compreender a situação, Jairo se viu algemado e jogado na traseira da viatura que saiu em disparada. E, com a mesma eficiência, sentiu o choque do seu corpo contra a parede crua de uma das celas da delegacia de polícia metropolitana.

─ O que eu fiz? Ei, o que eu fiz?

─ Cala essa sua boca, vagabundo ­ limitou-se a dizer o guarda ao girar a chave no ferrolho.

Desolado, com os dedos entrelaçados nos cabelos, Jairo recostou-se na parede e deslizou até ficar sentado no chão imundo e frio. Nos pensamentos, a ideia da vergonha que seus pais sentiriam se estivessem vivos. O que fizera para merecer tal destino? Será que nunca encontraria paz na vida?

“Não”.

A resposta para a pergunta que fizera para si mesmo fez com que seu corpo tremesse, pois não havia mais ninguém perto dele, nem mesmo outras celas estavam ocupadas.

─ O que?

“Você nunca terá paz, assim como eu também nunca terei”, disse-lhe a voz que parecia vir dos recônditos mais profundos de sua alma.

─ Quem disse isso?

“Olhe para fora, Jairo”.

Só então o preso percebeu que havia um pequeno vão gradeado na parte superior da parede às suas costas. Com esforço, ele conseguiu saltar e agarrar-se às barras de ferro e, contraindo os bíceps, espiou pelas frestas.

As celas da delegacia eram uma parada transitória para os detentos, de modo que não havia no prédio uma preocupação exacerbada com o isolamento. A lacuna entre o concreto dava para o pátio onde ficavam as viaturas e, após o muro do edifício, havia uma pequena praça.

Num dos bancos do largo, Jairo percebeu algo que o fez esmorecer ao ponto de largar as peças metálicas que o sustentavam. Como resultado fora de encontro ao solo. Alguns minutos foram necessários para que pudesse se recompor e retornar ao ponto de observação capaz de certificá-lo de que seus olhos não lhe pregavam uma peça.

E, de fato, não era uma ilusão. O que ele via parecia ser tão real quanto o sol sobre o jardim. Ali, postado sobre o assento de madeira e ferro fundido, estava ele mesmo.

“Não. Não, Jairo. Você não está louco”.

O seu outro eu movimentava a boca e ele ouvia suas palavras diretamente na cabeça.

“Somos iguais, irmão. Nascidos da mesma mãe, filhos do mesmo pai. Gêmeos. Por isso você me percebe, assim como eu o distingo entre todos. Por esse motivo e por outros você me ouve, você descreve meus movimentos, minha vida”.

─ Como isso é possível?

“Nossa família, digo, nossa família de verdade, era grande, irmão. Antes de nós vieram seis irmãs, então nós nascemos. Primeiro eu e cerca de dois minutos depois, você. Esse ínterim pode parecer ínfimo, mas fora suficientemente decisivo para selar nossos destinos”.

“Bastaram apenas cinco anos para que nosso pai percebesse a natureza que me abraçava. E, sem qualquer cerimônia, ele tentou por um fim em minha vida em favor do restante da família e de todos ao nosso redor. Entenda, Jairo, essa tenra idade pode não trazer grandes memórias ou tenacidade para alguém comum, mas posso lhe assegurar que minha existência passa longe da mediocridade”.

“Mesmo com os exatos cinco anos que você tinha, eu já sabia o que era, o que me esperava e o que precisava fazer. Assim, antes mesmo do nosso pai conseguir por em prática seu plano nefasto, eu incendiei a nossa casa, com todos dentro. Mas, por obra do destino, você sobreviveu e fora adotado depois de um tempo no orfanato, enquanto desapareci no mundo vivendo como o selvagem que eu era”.

─ Do que você está falando, afinal?

“Já tive muitos nomes, irmão, mas nenhum deles me faz jus. Por todo esse tempo me esqueci ou tentei me esquecer de você, até que há alguns meses nossos destinos se cruzaram e eu resolvi me aproximar, pois um plano passou a me consumir. Estou cansado, Jairo, muito cansado. Para o meu projeto funcionar era preciso que você voltasse a ser uma pessoa solitária e desamparada, então, numa noite, cruzei em minha verdadeira forma o caminho dos seus pais adotivos. Apenas o susto bastou para que o veículo se desgovernasse e no fim você já sabe”.

Um ódio que Jairo jamais sonhou poder surgir em seu coração brotava como uma erva daninha naquele momento. Mas, ao invés de largar as barras, suas mãos torceram ainda mais o ferro poroso, como se pudesse esganar o maldito que lhe falava.

─ Você o que?

“Calma, você vai entender o meu propósito. Então, continuando a observá-lo percebi que a única pessoa que ainda se importava com você era a sua amiga Juliana. Você não sabe, mas foi preso porque eu a ataquei, quase a matei, e ela pensa que foi você”.

─ Maldito! Maldito!

“Eu te entendo, te entendo. Na verdade, eu só queria deixá-la assustada o suficiente para chegarmos ao ponto em que estamos. Agora, irmão, escute, eu estou cansado, muito cansado dessa vida, não aguento mais, mas eu não posso tirar minha própria existência porque isso me condenaria a uma danação ainda pior e, até hoje, nunca encontrei alguém capaz de me ameaçar a esse ponto”.

“Ouça, você vai pegar toda a prataria de sua mamãe morta, sobretudo o cordão com o crucifixo e vai derreter tudo e moldar quantas balas de prata puder. E então vai carregar o calibre. .38 do seu velho papai postiço. Depois você vai me procurar e quando me encontrar vai enfiar uma bala bem no meio da minha testa, mas faça isso antes de eu retalhar você por inteiro”.

─ Você não passa de um louco! Um louco! Eu não sou um assassino…eu não sou…

“Mas, Jairo, lamento te informar que logo após a minha passagem, você passara a ocupar a posição de sétimo filho porque será como se eu nunca tivesse existido. As almas de nossas irmãs estão em repouso, mas a minha evanescerá por completo para a total e completa não existência e eu finalmente terei descanso, mas para isso você precisa carregar o meu fardo, ocupar o meu lugar”.

─ Jamais farei isso! Jamais! Nem que eu tenha de permanecer aqui para sempre.

“Jairo, Jairo, você logo será libertado pois não haverá provas contra você e, além do mais, você vai querer me ajudar. Sabe por quê? Porque essa noite eu matarei sua amiga Juliana, logo, com um só ato estará livre, uma vez que o verdadeiro assassino atacará enquanto você estará aqui e, ao mesmo tempo, receberá o combustível que falta em seu coração para fazer o que deve. Até breve, irmão”.

─ Não! Maldito! Não!

Desesperado em sua cela, Jairo demorou a perceber a presença de Juliana do outro lado das grades, acompanhada do delegado de polícia.

─ Como você pôde fazer isso, Jairo? Como?

A garota e a autoridade viraram as costas e saíram.

─ Juliana! Juliana! Não fui eu, Juliana! Você corre perigo! Fuja, Juliana! Fuja!

Estarrecido por saber que aquela seria a última vez em que veria sua amiga do trabalho, Jairo ouviu uma gargalhada ressoar por sua mente, algo que lhe acompanharia até o fim dos seus dias.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 21/02/2023
Código do texto: T7724473
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