RATANABÁ, A Cidade Que Nunca Existiu - Clts 22

- Veja bem. Não quero lhe faltar com o respeito, porém os especialistas que o senhor consultou, não passam de charlatões alucinados.

- Professor, sei que já pesquisou a fundo os rincões do nosso país, por isso estou aqui.

- Fábulas, folclore, lendas. Tudo isso é bom para histórias de ficção. Não acredite nestas lorotas deputado.

- Temos imagens de satélite, a estrada no interior da mata. Tudo comprovado. O Dr. Enéias sempre teve razão.

- Perdão, aquele era outro descompensado. A comunidade cientifica repudiava suas teorias da conspiração, sua tese terraplanista.

- Não desejo entrar em discussões filosóficas, nobre professor. O diário do padre Hernandez comprova tudo.

- Padre Hernandez é um personagem fictício, criado pelos caçadores de tesouro, mais um dos vários mitos irrelevantes.

- É real professor. O senhor é o melhor, se não o fosse, eu procuraria outro. Temos cientistas, pesquisadores. Temos profissionais que dariam tudo para por os olhos nos escritos do padre, mas o senhor. O senhor é a pessoa que precisamos. Se tiver a mínima possibilidade de ser real, sei que não irá desperdiça-la. Por isso estou aqui.

- Meu caro deputado, agradeço a consideração, mas acreditar no que expôs, seria o fim da minha carreira, da minha credibilidade.

A conversa entre o deputado Ferraz e o professor Júlio Silveira não progredia.

Ferraz, um dos homens fortes do atual governo tinha a certeza de possuir a chave para desvendar um segredo milenar escondido no seio da floresta amazônica e que com as mais novas tecnologias poderia fazê-lo salvando a popularidade do presidente, pavimentando assim sua própria estrada até o planalto.

A seu favor, contava com um velho calhamaço de folhas amarelas atribuído a Hernandez Figueroa, que alguns afirmavam ser o mestre de Carvajal, o dito cronista do explorador Francisco de Orellana em sua viagem desde o império Inca até o litoral brasileiro.

Como bom anfitrião, Júlio serviu outra dose de licor ao visitante, esperava dissuadi-lo de tal empreitada, alertava do perigo ao invadir terras demarcadas. Uma violação ao território indígena, poderia trazer mais problemas a seu presidente, o fracasso da descoberta seria o fim dos planos de reeleição. Para o professor, isto até seria bom, não simpatizava com o mandatário, alguns sacrifícios valiam a pena.

Aqueles dois homens escondiam segredos.

O deputado não o procurou como sua primeira opção, na verdade nem desejava estar ali. Era sua última oportunidade de sucesso onde outras tentativas já haviam sido frustradas.

O professor não era inocente. Sabia das constantes investidas dos governistas sobre a mata, mas agora estava preocupado. Com o surgimento do diário, tudo seria bem diferente.

O padre Hernandez Figueroa jamais chegou a mestre. Não passava de um simples noviço que por azar teve a incumbência de carregar e organizar os papeis do ilustre explorador.

A noite se adiantava quando os detalhes foram acertados. O professor acompanhou Ferraz até o elevador, despediram-se de forma cordial e Júlio retornou a seu apartamento.

- Boa noite Capitão.

Antes de pisar na garagem do edifício o deputado prestava contas da incumbência.

- Esta tudo combinado. Não se preocupe, ele esta com a gente. No fundo este bando de comunistas só querem uma coisa. Dinheiro, e olha que nem chegou perto daquilo que o senhor me autorizou. Além de comuna ainda é burro.

Júlio sentou-se no sofá, serviu-se de mais licor. Apanhou o celular.

- Opa. Ele acabou de sair. Acho que é real, o diário pode ser autentico. Não. Não o vi, apenas copias. As imagens de satélite são bobagens, inconclusivas. Pois é, como disse, com o diário a situação é diferente. Sabíamos que poderia acontecer. É um risco.

A espera valeu a pena. O desinteresse pelo exposto dava tranquilidade a Ferraz e seus amigos, se fazer necessário foi a arma que o professor usou. E deu certo, naquela noite, em poucas imagens, pela primeira vez tinham pistas do diário proibido de Hernandez Figueroa, em suas páginas, a solução do mistério da cidade que existiu bem antes dos dinossauros, o berço da humanidade.

- Semana que vem teremos outro encontro. Sim, em Brasília. Um grupo de trabalho. Com certeza negacionistas, defensores da terra plana. Crentes em mitos. Não se preocupe. Não saberão. Fique tranquilo, dará certo, eu sei.

Despediram-se enquanto Júlio caminhava em direção à janela. Do lado de fora a lua brilhava sobre os prédios vizinhos.

A descoberta corria em segredo de estado, seria a quarta expedição enviada ao coração da selva. Desta vez acreditavam contar com um verdadeiro especialista. Tentaram a seu próprio modo e o fracasso os impunha a presença daquele rato de faculdade. Quando conseguissem seu objetivo, o comuna seria descartado.

- Brasília continua a mesma, mergulhada em corrupção.

- Calma Professor, ainda tem muita gente honesta. Nosso partido irá revelar os podres desta nação.

Ao ouvi-lo falar com tanta convicção, Júlio não consegui esconder um sorriso. A corrupção a que se referia era aquela em que Ferraz e seu presidente estavam metidos até a alma.

Enquanto falavam, o carro oficial sangrava a Avenida das Nações rumo ao centro de comando das operações, uma mansão luxuosa que também hospedaria o ilustre convidado.

A construção possuía três pavimentos. No primeiro, áreas de trabalho, no segundo, quartos para os visitantes, apenas o terceiro era restrito, com elevador privativo direto da garagem, sempre guardado por seguranças.

A equipe de estudos formada há alguns meses explorava teorias, mapas topográficos retirados dos arquivos da Biblioteca Nacional e principalmente relatos dos moradores locais.

O assessor cuidou das bagagens, o deputado acompanhou Júlio a uma sala onde os trabalhos importantes se concentravam. Uma pesada aura tomou conta do lugar. Misto de inveja e admiração.

Naqueles rostos não tão desconhecidos, percebia-se alguns desafetos, parte doutores alienados e alunos frustrados, quase nenhuma credibilidade.

- Amigos e colaboradores – Começou o deputado em tom de discurso da vitória – Hoje nossa equipe recebe um importante reforço. Gostaria de lhes apresentar o professor Júlio Silveira, sei que sua competência o precede, mas quero frisar que a partir deste momento contamos com o maior especialista na cultura dos povos amazônicos. Seus conhecimentos sobre a vida dos ribeirinhos serão de grande valia em nossa empreitada.

Seguiu naquele monologo enfadonho por um longo período até que por fim acompanhou o hospede a seu alojamento, despedindo-se de forma calorosa.

- Sei, já se passaram três dias. Não percebi nada de relevante. Muita papelada inútil. Procuram por fantasmas. Dá forma que está, ficaram anos perambulando pela selva. Não se preocupe, conheço as implicações que envolvem uma possível descoberta. Calma, quem sabe no encontro de amanhã consiga mais informações. Claro que são do governo, quem mais teria acesso a estes documentos. Claro que não, o diário deve estar bem guardado. Minha função é separar os boatos da realidade. Baseiam-se em histórias de garimpeiros. Delírios de pescadores. Devo desligar, podem desconfiar, te ligo assim que possível. Relaxa, não tem nada que possa nos preocupar. Até mais. Te ligo. Relaxa.

Para algo ser encontrado, tem que saber onde procurar. Nada nas pesquisas indicavam progresso. Relatos de missionários coloniais confundiam-se com depoimentos arrancados a força de indígenas subjugados. Talvez os misteriosos patrocinadores pudessem acrescentar algo que Júlio ainda não sabia.

Como de praxe, o deputado faltou à sessão, também não esteve na mansão. A reunião seria naquela noite, o professor parecia apreensivo, não sabia o que esperar.

Quando os grupos de trabalhos foram dispensados, Júlio ocupou-se em revisar alguns papeis tentando ludibriar aquela ansiedade.

- Professor, nossos amigos chegaram.

Ferraz invadiu a sala muito animado.

- Caro deputado, o senhor não deu notícias o dia todo, achei que a reunião havia sido adiada.

O deputado o segurou pelo braço de forma cordial convidando-o a acompanha-lo. Subiram ao terceiro andar seguindo por um corredor guardado por homens de terno. Entraram por uma porta aberta pelo assessor.

- Boa noite professor Júlio Siqueira.

Ao entrar foi saudado em tom de deboche por um militar do exército que estava de pé, outros dois permaneceram em silêncio no sofá num canto da sala. Apesar da pouca luz, próximo à janela, Júlio reconheceu um dos filhos do presidente.

- Boa noite senhores. Retribuiu a saudação que não despertou empatia em ninguém.

- Sr. Júlio – começou o filho do mandatário – Serei breve, o tempo esta contra nós, sei que como estudioso que o senhor é, já sabe o que buscamos.

- Temos documentos que comprovam a existência de Ratanabá, o berço da civilização – completou Ferraz com grande entusiasmo.

- Senhores, a cidade é um mito, pesquisei tudo que existe sobre ela, é tão fictícia como Atlântida. Leiam minhas teses, sei que poderemos descobrir muita coisa em nossa expedição, mas a cidade perdida é fantasia.

- O senhor não pesquisou tudo professor. O militar falou em tom ríspido. A partir deste momento lhe daremos acesso ao Diário de Hernandez.

- Me desculpem, ainda não fomos apresentados. Júlio tentava se situar em meio àquele bando de lobos.

- Como disse antes, o tempo esta contra nós, haverá o momento de apresentações e por que não de comemoração. Ferraz traga a caixa.

Um pequeno baú de madeira reforçado por tiras de cobre foi deixado diante do professor. O deputado estava em jubilo, sentia-se o portador do santo Graal.

- Acho desnecessário lhe prevenir que deste prédio nenhuma informação pode vazar, o senhor passa a trabalhar neste andar. O diário não foi escrito em espanhol, não se parece com nenhuma língua conhecida.

O professor não precisou fingir surpresa, já havia visto uma pequena amostra daquela escrita, Ferraz acreditava que foi por elas que ele aceitou fazer parte daquela expedição.

O suposto filho do presidente, caminhou em direção a Júlio. Com a mão em seu ombro decretou.

- Ferraz esta a seu dispor. Tudo que for necessário, ele providenciará.

Após anos de buscas, Júlio Silveira tinha em mãos aquilo que jurou destruir, mas algo estava errado, naquele momento o solo pareceu tragar seu espírito. Sabia que deveria seguir até o fim.

* * *

Durante a ação humanitária coordenada pela FUNAI em terras Yanomami, uma bolsa de couro surrado foi entregue aos agentes de saúde. Para muitos, seu conteúdo jamais fará sentido.

(Notas pessoais)

Decifrei o código da escrita, estava ali o tempo todo, só não sabiam como interpretar. A mistura do inca com espanhol me guiou pelo caminho das páginas do manuscrito.

“São muitas semanas nestas águas. Os sobreviventes ameaçam debandar-se pela mata, alguns já o fazem, tentam a sorte em meio ao desconhecido. Se faz necessário a captura de mais selvagens, o que coloca em risco a expedição.”

“O bruxo inca que nos guia parece piorar, temo que a doença o leve cedo demais. Têm noites que arde em febre, repetindo palavras em sua língua, o capitão o pune severamente, mas isso só piora a situação. Tento traduzir algumas palavras, meu mestre insiste que são apenas blasfêmias.”

“O dia começou com outra de tantas tempestades, acampados na margem do rio vimos um dos barcos de suprimentos se perder.”

“Fomos visitados por alguns nativos, eram bem receptivos, o capitão se alegrou. No pescoço do pajé, a pedra verde atestava as palavras do bruxo. O capitão preferiu se fazer de amigo.”

“Os dias agora são lentos, Orellana se mostra tenso, suas investidas não causam efeito, nada descobriu sobre a origem da pedra. O velho inca morreu, não suportou as constantes pancadas.”

“Difícil se acostumar com o cheiro da carne queimando. Outro grupo foi reunido no centro da aldeia. Estavam em pares. Aos adultos foi dada uma escolha. A maioria tirou a vida dos filhos a golpes de porretes, aqueles que se recusaram, voltaram ao cárcere após testemunharem os pequenos serem desmembrados enquanto gritavam. E o fogo ardia faminto. No fim todos morriam um pouco.”

“O tormento se prolongava, minha fé em Nosso Senhor estava abalada, eram humanos, pessoas como nós, por mais pecados que possuíssem aquele suplício me parecia cruel. A razão já me faltava.”

“Naqueles meses aprendi muito sobre os silvícolas, tinha que dar um basta em toda atrocidade. Meu mestre andava desconfiado, ele compactuava com tudo, suas anotações eram anedotas da realidade, em suas palavras combatíamos o mal em nome dos Santos.”

“Não estou certo do que fiz, as mortes aumentaram. Muito sangue na areia, a tribo foi dizimada, poucos sobreviveram. Perdoe-me Deus, por todos os meus pecados.”

“Nossa caminhada é difícil, meus antigos companheiros estão prestes a nos alcançar, porém estes homens conhecem cada trilha, cada igarapé. A chuva recomeçou.”

“Não conseguimos despistar os mateiros, tampouco nos capturam, isto me causa angustia. O pajé diz que estamos perto, a ajuda chegará em breve, mas algo esta errado. Sinto um arrepio sinistro.”

“Subimos o rio por mais uns dias, não o grande rio, agora um de águas escuras. A beleza das praias ocultava os perigos. Caminhamos por um longo tempo, seguimos por um igarapé menor, o som de uma cascata parecia próximo.”

“Não era uma cascata. Por entre as copas exuberantes das árvores um enorme paredão se revelava, como uma ferida aberta, do alto, um rio se precipitava, ao tocar novamente o solo, a mais bela lagoa havia sido criada.”

“Nossa fuga cessou. O paredão se estendia por quilômetros nas duas direções. Não tardou o ataque, Orellana instigou seus homens contra nosso grupo de fugitivos, em minutos estaríamos mortos.”

“Aqueles homens, aquela tribo não nos atacou, nossa ajuda finalmente chegou. Quando os vi emergindo do lago, tive certeza de serem anjos do Senhor. Nadavam como peixes, tinham pele alva como os nórdicos, os longos cabelos envolviam quase todo seu corpo, lutaram bravamente brandindo lanças de quase dois metros.”

“O sentimento divino de caminhar sobre as águas do lago precedeu a admiração de ver a queda d’água cessar seu cair. Por trás daquele véu, um caminho incrustrado por cristais luminosos nos conduziu ao que me parecia uma enorme cidade, uma como jamais conheci. Seus prédios colossais de um verde exuberante, iluminados por um sol que não cegava o olhar. Conheci seus habitantes, conheci sua história, vivi por anos entre eles, agora dizem que devo partir, com este rascunho de mapa chego ao grande rio.”

Na bolsa não havia mais nada além de uma etiqueta com um número de celular. Por mais que tentassem Júlio Silveira permanecia fora de área, mas ele não era o único herdeiro de Figueroa.

Tema: Tribos Selvagens

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 02/03/2023
Reeditado em 02/03/2023
Código do texto: T7731132
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