A MÃE DOS PEIXES

I

─ E então, por onde começo?

Recostado no confortável acolchoado de couro, ele permanecia de costas para a psicóloga. Um discreto aroma de menta emanava pelo ar. Havia, também, um leve tilintar produzido por uma cortina de cristais que balançava com o sopro suave do condicionador de ar. Tudo isso somado à iluminação a meia luz tornava o ambiente confortavelmente aconchegante.

─ Por onde se sentir mais à vontade. Não há um roteiro, nem caminho preestabelecido, apenas procure liberar o que lhe aflige.

Com o olhar perdido no teto, onde imagens eram projetadas pelo contraste entre sombra e luz, a mente do rapaz divagava, aumentando o estado de melancolia no qual estava mergulhado há algum tempo.

─ O que irei lhe contar, doutora, aconteceu há alguns anos e iniciou toda a danação em minha vida. Onde, apesar da riqueza, viver não passa de sobrepor os dias a base de medicamentos. Não aguento mais isso.

A profissional apenas assentiu com a cabeça e o rapaz iniciou o relato contando que havia se mudado com a filha pequena, a qual ostentava a tenra idade de cinco anos à época, para a região da bacia amazônica, logo após o falecimento da esposa. Com poucas perspectivas na cidade grande, ele rumara para aquele rincão na esperança de conseguir juntar algum dinheiro no garimpo ribeirinho.

Diferentemente de outros aventureiros, ele resolveu montar morada num local relativamente distante do acampamento principal. Próximo do delta de um dos afluentes do rio principal, ele construiu uma pequena casa da melhor maneira que pôde, com os recursos que a natureza e a coletividade lhe permitiram.

O tempo passava e, a despeito do sustento da família, quase nada conseguia retirar das águas, até que em certo entardecer, enquanto caminhava com a menina pela margem do riacho, ouviu um cantarolar diferente que lhe chamou a atenção.

De súbito, a criança se soltou de sua mão e correu à frente.

─ Não corra, filha, espere, você vai se machucar.

Ele deixava a menina ganhar distância, apenas acompanhando seu percurso com o olhar. Ela contornou um amontoado de pedras, saindo do seu campo de visão por um instante, executando o mesmo trajeto, ele se deparou com a cena que mudaria a sua vida.

Sua filha estava nos braços de uma estranha. A mulher de feições indígenas ao vê-lo, abraçou a menina e retomou a toada, embalando-a. A moça, uma representante dos povos da região, lhe oferecia um sorriso e afagava os cabelos da pequena. Naquele momento, o garimpeiro percebeu que ela faria parte de sua história.

Não tardou para que um novo laço familiar fosse estabelecido. Apesar das diferenças culturais, a moça se adaptou à rotina da casa e o trio vivia como num sonho projetado. A única peculiaridade que a nova integrante da família mantinha era a de se ausentar por cerca de uma hora durante a noite. Era um hábito, ela dizia. Precisava manter as próprias raízes junto à natureza. Como contrapartida, ela sempre lhe trazia um presente.

─ Mas por que você precisa ir à noite?

─ Porque preciso trilhar os caminhos de Yaci, meu amado. E, além do mais, ela ilumina as veredas que me levam aos tesouros que te trago.

─ Mas eu gostaria de ir com você. Talvez juntos consigamos descobrir o veio dessas riquezas.

─ Lamento, mas devemos retirar da natureza apenas o necessário, nada além disso. Mas não se preocupe. Teremos o suficiente, sempre. E, caso algo venha a me acontecer, pegue tudo o que lhe trouxe e vá embora daqui com a menina.

─ Como assim?

─ Apenas me prometa.

─ Está certo. Eu prometo.

Ambos selaram o acordo com um beijo e a moça, mais uma vez, se despediu para o passeio noturno, rotina que se repetia noite após noite. E, a cada retorno, ela sempre retribuía o período de ausência com uma pequena pedra colorida ou lasca de ouro bruto. Com o passar do tempo, o acumulado havia se convertido num pequeno tesouro. Mas, a ambição do rapaz crescia na mesma proporção do montante.

Em uma noite iluminada por uma lua gorda e amarela, tendo a certeza de que a filha dormia placidamente e em segurança, ele trancou a residência e se aventurou no mato seguindo o rastro da companheira.

Em poucos instantes, ele ouviu o familiar cantarolar que sempre era percebido quando a moça estava feliz. Vencendo alguns arbustos, ele chegou a uma reentrância rochosa no leito do riacho e a avistou.

Com as costas nuas voltadas para a margem, ela alisava os cabelos e murmurava uma melodia, mas havia algo insólito, e o rapaz se aproximou lentamente para definir suas suspeitas.

Os membros inferiores da jovem refletiam o luar numa tonalidade prateada. O rapaz levou as mãos à boca, sufocando um grito que ameaçava escapar. Refazendo-se do susto, ele desembainhou a faca de caça e, pé ante pé, surpreendeu a consorte, agarrando-a pelas madeixas e arrastando-a para a terra seca.

─ Por que está fazendo isso? Sou eu, não vê? Mesmo nessa forma, continuo a mesma.

Ainda que sob a parca iluminação, era perceptível o tom levemente esverdeado da tez do ser jogado ao chão. Enquanto falava, os dentes finos e serrilhados se destacavam nos lábios quase sem vida. Mas, o realce definitivo respondia pelas linhas sinuosas de uma esguia e reluzente cauda que fazia as vezes do que seriam as pernas da criatura.

─ Não! Você não é a minha mulher. Você é um demônio!

Montado sobre o ventre da esposa, com o tronco voltado para a cauda, o rapaz fazia uso da lâmina afiada para arrancar as escamas do apêndice písceo. A mulher gritava movida pela dor, enquanto as placas duras voavam pelo ar e o sangue espesso lavava o chão de barro.

─ Pare, por favor, você está me matando. Não faça isso, você sabe que detém o meu amor e também possuo o seu.

─ Não! Não é você que eu amo, não esse monstro diante de mim.

Até então, a mulher evitara fazer uso das longas e curvas garras que ornavam a ponta dos seus dedos, apesar de toda a agonia na qual estava submetida. Entretanto, sentia cada vez mais o alerta de urgência emanando em seu peito. Em sua verdadeira forma, a ausência da água a tornava cada vez mais suscetível ao instinto primitivo e feral que lhe era inerente.

Assim, mesmo lutando por seus sentimentos, não conseguira evitar a ação e, descrevendo um arco no ar, fez surgir cinco talhos escarlates nas costas do homem ao qual afiançara todo o seu amor.

O rapaz rolou para o lado sofrendo intensamente pela laceração, ao passo que a moça se arrastava pelo cascalho em busca do abraço reconfortante do recôndito úmido. Uma vez a salvo, ela emergiu do riacho apenas com a cabeça para fora do espelho d'água, olhando fixamente para o amado.

─ Maldita! Maldita! ─ gritava com as costas abertas e o sangue jorrando ─ você nunca mais vai me ver. Irei embora para sempre.

─ Não. Você pode ir embora, mas eu o acharei aonde for. Eu o encontrarei e tomarei seu tesouro. Se você teme a mim, então receie a água, pois somos uma só essência.

O rapaz viu aquela com a qual há poucos momentos dividia um lar submergir e desaparecer na escuridão do rio, mas não sem antes ler em seu olhar fulgente e ferino que precisava se manter o mais afastado possível, pois não havia mentiras em suas palavras. Ainda naquela noite, ele pegou a menina e suas gemas coloridas e desapareceu no mundo.

II

A psicóloga ouvia o relato atentamente, limitando-se, apenas, a menear a cabeça vez ou outra. Sempre que ouvia uma pausa mais alongada, ela pigarreava como se solicitasse a continuidade do relato.

─ Sabe, doutora, eu trouxe um tesouro daquelas terras ribeirinhas e com tempo e habilidade multipliquei aquela fortuna.

Hoje sou um homem muito poderoso, mas nem toda a minha influência é capaz de me livrar do sofrimento no qual me encontro. Sinto que estou enlouquecendo. Os anos passam e está cada vez mais difícil manter a serenidade. Sinto que estou sendo monitorado a todo o momento. Eu devolveria o tesouro de bom grado, se isso me trouxesse paz.

A profissional permanecia em silêncio, vez ou outra anotava algum apontamento no pequeno bloco em suas mãos e gesticulava para que prosseguisse.

─ Já perdi alguns negócios importantes por não me atrever a chegar próximo ao litoral. Aproximar-me de praias, lagos e rios acabou por se tornar algo muito além de uma fobia. Preciso que me ajude. Por mais de uma vez, enquanto sobrevoava o oceano, tive a nítida impressão de ver a imagem reluzente de Numiá por entre as ondas, como se estivesse esperando por um relés descuido.

─ Numiá?

─ Sim, desculpe não ter mencionado antes. Numiá, a mãe dos peixes, é como ela se autodenomina. Já se passaram treze anos desde que a deixei nas águas daquele rio.

─ Sim?

─ Eu li, doutora. Estudei as lendas. Se ela for quem alegou ser, não tenho como escapar. Ela caminha pelas águas, ela nunca desiste do que quer.

─ Mas se passaram tantos anos e você ainda está aqui.

─ Doutora, doutora, o tempo não faz o menos sentido para ela. Fazer com que eu tenha o gosto de uma vida plena e depois tirar isso de mim faz parte de suas ambições.

─ Mas, mas isso é loucura.

─ Eu sei. Eu sei, doutora. Sei que estou enlouquecendo. Temendo por algo que pode nunca acontecer, ou que pode surgir a qualquer momento. Apavorado a cada chuva que pode ser o prenúncio de sua chegada. A cada minuto, sinto que a perda da sanidade me afasta um pouco mais do meu dever de pai. E isso me apavora.

─ Acalme-se, você está seguro aqui. Beba isso. Livre sua mente dessa névoa acinzentada. Tudo ficará bem.

Sorvendo um gole, ele sentiu o frescor da água relaxar seus pensamentos. A luz projetava no teto imagens de sombras de pássaros batendo suas asas para a imensidão, logo um carrossel começou a girar, com os cavalos subindo e descendo. Sentia-se, de fato, mais reconfortado, ao ponto de quase adormecer, o que viria logo a seguir, quando figuras de peixes saltando uma cascata preencheram sua visão. A sombra de uma jovem indígena lhe sorrindo fora a última coisa que vira antes de ser abraçado pelo deus do sono.

III

O som de ondas se chocando de encontro às pedras compunha uma canção de acalento aos seus ouvidos durante aquele ínfimo instante no qual despertamos e nenhum problema parece existir. Mas, bastaram algumas palavras para que toda a felicidade que um dia jurara poder existir fosse dissipada de seu coração.

─ Olá, meu amor.

Ele abriu os olhos e percebeu que estava numa espécie de jangada em alto-mar. Ao longe, ele via luzes cintilantes numa praia distante.

─ Vê? Sobre nossas cabeças Yaci brilha plena, ela nasceria exatamente assim naquela tarde quando nos conhecemos.

O rapaz olhava para aquela jovem e percebia que suas feições indígenas não haviam mudado uma só linha. A beleza que lhe cativara não evanescera com o tempo, pelo contrário, se é que havia possibilidade lógica em sua afirmação.

─ Como vim parar aqui? A psicóloga, ela me dopou? Foi isso?

─ Não havia nenhum entorpecente no que você bebeu. Apenas água. A água que dei a ela. Não há distinção entre mim e a água, somos um só corpo.

─ Como? Por que ela faria isso?

─ Porque os homens, e mulheres, são gananciosos, meu amor. Há mais valor num punhado de pedras coloridas do que na suposição de virtude.

─ O que você quer de mim, Numiá?

─ Você sabe.

Os olhos do rapaz miraram um longo ferimento cicatrizado numa das pernas da jovem.

─ Sim. Você me machucou muito. As marcas atingem também essa minha forma. Mas suas palavras de rancor me feriram muito mais. Ainda assim, eu te perdoo. Venha comigo.

─ Você sabe que não posso. Nossos mundos são diferentes. Eu tenho uma filha.

─ Alana está feliz. Deixe pedras e metais para ela. Deixe que viva a vida do jeito que melhor lhe convier e viva comigo sem preocupações ou medo.

─ Numiá, eu não posso. Você, você é um monstro, não é uma mulher.

Sem dizer uma só palavra, a indígena se jogou nas águas e desapareceu. O rapaz, atordoado, olhava em todas as direções, até que um reflexo prateado nublou a luz da lua trazendo uma nova presença a bordo.

─ Você me acha um monstro? Um demônio? Essa sou eu, sem máscaras.

O rosto de linhas suaves e finas agora exibia um sorriso que tinha início nos lóbulos das orelhas, onde um par de fileiras serrilhadas e afiadas distorcia qualquer senso de humanidade. Os olhos, até então negros e amendoados, convertiam-se em duas massas grandes, opacas e gelatinosas, ausentes de pálpebras, cílios ou sobrancelhas. Traços quase imperceptíveis faziam as vezes do que fora um nariz. Em seu pescoço, guelras grosseiras abriam e fechavam, num aparente esforço para sugar o ar.

A tez cor de bronze dera lugar ao tom esverdeado de escamas brilhantes. Retorcendo a longa cauda, Numiá se aproximou e tocou o rosto do amado. Ele sentiu o contato úmido e lodoso, onde uma gosma cobria a pele conforme ela deslizava os dedos. Os ganchos afiados sugeriam que seria possível arrancar a metade de sua face com um gesto simples. O cheiro era insuportável, remetia a peixes apodrecendo há dias sob o sol forte.

─ Não tenha medo de mim. Não lhe farei mal, novamente.

─ É impossível não temer você. Apenas, me deixe em paz.

─ Está certo, meu amor. Se você não me quer, pode ir embora. Mas nunca se esqueça do que lhe prometi.

─ O que…

Não deu tempo para que terminasse a frase. Numiá, com espantosa velocidade mergulhara e desaparecera nas águas do oceano.

Reconfortado, ele sentiu as ondulações da maré guiarem a jangada lentamente rumo às areias da praia. Conforme se aproximava, ele percebia que as luzes que vira ao longe correspondiam ao que parecia ser uma festa, um luau talvez.

Com dificuldades, por obra da pressa em se livrar das malditas águas, ele chegou à terra firme e, olhando para os céus, prometeu a si mesmo ficar o mais longe possível de qualquer corpo d´água. E, ainda de joelhos na areia, ele ouviu um chamado:

─ Pai? O que está fazendo aqui, pai?

─ Filha, saia daqui, agora. Por que você me desobedeceu? Eu sempre a proibi de chegar perto de rios, mares e lagos. Por que me desobedeceu?

─ Acalme-se, pai. Eu já sou crescida, sei me cuidar muito bem.

─ Não. Não sabe. Você não tem ideia do que está dizendo.

As pessoas iam e vinham em meio à música e bebedeira.

─ Alana! Alana!

A garota ouviu um chamado e se virou para a praia.

─ Numiá? Mãe, é você?

─ Você se lembra de mim?

─ Nunca a esqueci.

Correndo na direção da moça indígena, que considerava como mãe, Alana não percebeu os gritos do pai que foram sufocados por uma canção que só ele conseguia ouvir. Paralisado pelo som em seus ouvidos, ele era capaz apenas de observar sua filha correr para os braços da mulher, como um dia fizera muitos anos antes.

Sem poder mover um músculo, ele sentiu lágrimas escorrerem em seu rosto e se lembrou que Numiá também estaria nelas, pois eram uma só essência.

Estarrecido e impotente, viu o demônio dar um suave beijo no rosto da menina, fazendo-a desfalecer em seus braços. E, caminhando lentamente para as águas, converteu a canção em algumas palavras que o rapaz nunca deveria ter se esquecido:

“Eu te prometi, há muito, que o acharia e tomaria o seu tesouro.”

“Mas não se preocupe, sou uma mãe generosa e, com Alana, as águas ganharão mais um peixe”.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 16/04/2023
Reeditado em 25/04/2023
Código do texto: T7765128
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