O INFERNO DE CADA UM

I

A noite anterior

A chuva, que no início da noite se mostrava fina e despretensiosa, havia se tornado mais forte e incisiva com o passar das horas. Em meu peito, a convicção de que o ataque partiria daquela direção. Não era comum por parte dos demônios arrancarem suas vítimas de dentro de casa, não, não era. Eles buscavam os incautos, sobretudo os mais fragilizados. Postado sobre a motocicleta, eu mantinha a vigia abrigado sob a marquise da sede da associação de moradores. A menos de duzentos metros de onde eu estava, os seguranças do tráfico de drogas eram açoitados pelas pesadas gotas da tempestade. Eu conhecia os dois desde crianças, eram um pouco mais jovens em relação à minha idade. Agora estavam ali, desviados da retidão e a mercê de algo que estava além de sua compreensão. Trajados por impermeáveis de coloração amarelada e berrante, algo que concorria contra a missão que deles se esperava, mostravam-se como alvos fáceis, não contra a incursão de inimigos, mas para uma ameaça ainda maior. Eles eram as únicas vivas almas à deriva pela noite. Eu os via como uma isca.

Não era possível percebê-la, mas ela estava lá escondida por trás das nuvens escuras e carregadas. Do alto, ela torturava e guiava o amaldiçoado em sua sanha. Era a voz que incitava e comandava; “Vá lá, mate por mim. Farte-se num banquete em minha homenagem.”

E ele, o ominoso, sempre obedecia, não havia como resistir. Atendendo àqueles apelos, percebi sua chegada. A tempestade e os ventos fortes levantavam uma bruma barrenta por sobre o campinho de várzea. No início, apenas um vulto malfeito era perceptível nos limites das balizas de madeira, mas não tardou para que os contornos bípedes daquele a quem buscava revelassem a sua essência. E, assim como o notei, os garotos do tráfico também, mas não acreditei quando percebi que eles estavam tentando acender os morteiros para avisar os comparsas debaixo de toda aquela água em vez de fazerem uso do armamento em sua posse.

Quiquei a motocicleta e apertei forte o punho, derrapando a roda traseira e levantando barro e cascalho com o processo. Fazendo uso das quatro patas, a criatura galopava em alta velocidade na direção da dupla. Com a pistola preparada na mão esquerda, corria para vencer a distância antes desse encontro.

O garoto conhecido como Duda, engatilhou o fuzil que portava e tomou a dianteira começando a atirar na direção do demônio. Mas, se mesmo em condições favoráveis aquele pessoal já não dispunha de muita habilidade, debaixo de tanta chuva, onde o alvo não passava de um par de órbitas amareladas bruxuleando de modo errático, obter êxito não seria tão fácil.

Muitos disparos foram ouvidos, mas apenas lama, pedras e mato foram atingidos. Ilesa, a fera saltou sobre o rapaz, agarrando-o num abraço hediondo. Ambos rolaram pelo alagadiço do solo, mesclados pela sonoridade caótica entre o arfar ansioso do predador e os gritos desesperados de sua presa. Sob a parca iluminação de um poste, o horror fora testemunhado tanto por meus olhos, quanto pelos do outro garoto, Rogerinho, o qual, inexplicavelmente, conseguira acender o pavio do morteiro. Logo, o estampido de rojões explodia pelos céus tenebrosos da favela.

Mas a ajuda não chegaria, ao menos não a tempo de socorrer o garoto que tinha o ventre aberto pelas lâminas afiadas que ornavam a boca e as mãos da fera. Com movimentos velozes e repetitivos, o focinho ora se enfurnava no vão escancarado e ensanguentado, ora elevava-se para o firmamento, despejando uivos aterradores em favor daquela que do alto lhe sorria.

Com lágrimas e chuva a molhar seu rosto, Rogerinho despejava sem cessar o chumbo de sua pistola contra as costas da criatura. No entanto, a despeito dos tufos de pelo voando pelo ar, nenhum outro dano era causado à fera.

“Saia da frente”, gritei para o garoto, enquanto empinava a moto de encontro ao corpo do maldito, aproveitando-me do fato do campinho ficar a um nível mais baixo relativo ao asfalto da via que margeava o local.

O impacto fez com que o bicho caísse com as costas no chão de barro, mas o disparo que efetuei não foi preciso o bastante, acertando-o apenas nos ombros. Mas o teor da minha munição fez com que ele gritasse para os céus novamente, porém com mais dor do que satisfação em suas notas. Entretanto, mesmo sofrendo, seus movimentos não esmoreceram, de modo que minha nova investida fez morada em suas costas.

Colocando-se mais uma vez em quatro patas, ele iniciou a fuga no sentido da escola ao lado da quadra poliesportiva. Subi na motocicleta no intuito de ir atrás dele, mas ao arrancar, fui ao solo, a roda dianteira estava empenada demais para manter-se estável. Não desistindo, corri na direção que ele havia seguido e pulei o muro. Mesmo ferido, entendi que a criatura ainda era mais rápida do que eu, e, quando a vi saltar com facilidade os limites escolares e ganhar o matagal da sede do departamento local de obras, resignei-me. Não haveria como alcançá-la. Saquei os binóculos de visão noturna e acompanhei o vulto esverdeado até que desaparecesse do meu campo de visão. “Corra, tio, corra o quanto puder. Mas não conseguirá fugir para sempre”. Gritei para a noite. Eu sabia para onde estava indo.

Voltei para o local do ataque e falei para o rapaz que chorava de joelhos no chão enlameado. “Moleque, preste atenção. Ninguém vai acreditar no que você viu. Então, diga que um grupo rival invadiu na calada. Eles renderam e mataram Duda que havia largado o posto em meio à tempestade. Você percebeu e reagiu, colocando-os para correr. Entendeu?” A muito custo, o garoto meneou a cabeça, então peguei a motocicleta e parti, empinando-a sob a roda traseira.

II

A história

Hoje em dia é comum ouvirmos a frase: certo dia, meus amigos e eu saímos para brincar pela última vez e ninguém percebeu, ou algo do tipo. Pois bem, essa máxima não se aplica a mim ou a qualquer um daquele grupo de garotos, uma vez que tivemos plena consciência de que nenhum de nós seria o mesmo após os eventos do que chamávamos de a “travessia do inferno”. O que começara como uma brincadeira, culminara com a morte de dois amigos queridos, Jean Carlos, um menino cuja inocência fora roubada por uma fera inominável, a mesma que destroçara Ralf, o cachorro mais odiado e amado da comunidade.

Nunca ousamos pronunciar a nomenclatura adequada para se referir ao demônio que caminha sob a luz do luar, em razão de tratar-se de um mal agouro, um chamado para que a besta viesse até nós. Nunca o fizemos, mas, ainda assim, ela nos achou. Sim, ela nos encontrou, mas também ao seu próprio fim. E, apesar da tragédia e dos traumas, nós, os que sobrevivemos, achávamos que o mal nunca mais caminharia em nosso lar.

Não poderíamos estar mais enganados. A danação que atormenta a alma dos amaldiçoados não se dissipa simplesmente, nem mesmo a morte física é capaz de esvanecê-la. Penso que fui o primeiro a perceber isso, pois vi o mal enraizado nos olhos amarelados do seu novo portador. Eu vi, mas não quis acreditar e, pior, nada fiz e me arrependo profundamente disso.

O maldito demônio que morrera empalado pelos vergalhões afiados daquele terreno baldio tivera a identidade revelada como sendo um filho bastardo do meu avô, o sétimo numa sequência de homens. Apesar da não legitimidade perante a lei da igreja, a hereditariedade paterna, responsável pela disseminação da desgraça, pouco se importa com isso. Como eu disse, a essência maligna não morre, ela encontra um novo caminho. E, nesse caso, a trilha encontrada fora a da alma do meu tio Maurício, o sétimo filho legítimo, o que fora batizado pelo irmão mais velho, como reza a superstição, a fim de evitar a possessão demoníaca. Algo que, infelizmente, se mostrara ineficaz pela maneira como lhe fora transmitido o fardo.

Mauricinho, com era conhecido, era apenas cinco anos mais velho do que eu e fazia parte do bando de crianças que se esbaldava pelas ruas daquela comunidade do subúrbio carioca no início dos anos oitenta. Tímido e constantemente melancólico, eu percebi sua última expressão humana desaparecer quando ele me visitou na noite seguinte à tragédia, episódio que as autoridades creditaram como o ataque de um maníaco, porque apenas um homem comum fora encontrado entre as ferragens, não a fera que todos nós vimos e contra a qual lutamos. Pela janela do meu quarto, a que dava para o quintal, Mauricinho me contou sobre seus temores e ali vi que sua vida estaria perdida para sempre.

Eu me calei. Fechei meu entendimento e minha mente. As semanas seguintes trouxeram mudanças profundas nas cercanias do bairro. Nós, as crianças que enfrentamos a fera, não passávamos de sombras do que um dia fomos. Nossa rotina era uma repetição mecânica de idas e vindas à escola. Nada além disso. Não havia espaço para as brincadeiras de pique. Não havia vontade de correr ou pular. Os chinelos, que faziam as vezes de traves no futebol nas ruas de barro, teimavam em ocupar sua função original. Não havia ânimo para pés descalços, terra no rosto ou joelhos ralados.

Em paralelo, uma praga oculta parecia se espalhar por todos os lados. Nossa comunidade, que apesar de humilde, sempre fora um reduto familiar, transformava-se pouco a pouco num antro de drogas, violência e criminalidade. Jovens que admirávamos, passaram a portar armas e olhares perdidos. Crianças menores abandonavam seus heróis em favor da escória que se alastrava. Maridos agrediam suas esposas, filhos maltratavam os pais. Velhos e animais eram largados à própria sorte. Ninguém, absolutamente ninguém, se importava.

Meus amigos, cada um deles, e suas respectivas famílias, foram embora e nunca mais os vi. Na verdade, quem teve condições, fugiu para sempre daquela comunidade. Eu fui o único daquele grupo que ficou e exatamente um ano após os eventos, a nova face do mal, enfim, se revelou.

Naquela noite, meu avô se balançava em sua cadeira predileta na varanda, seu olhar nunca mais encontrara uma direção desde que Mauricinho desaparecera. Eu estava sentado no beiral da cisterna sob a goiabeira no quintal. Um garoto mais novo que eu e que havia acabado de se mudar para a casa vizinha não parava de falar diante de mim, embora eu não ouvisse uma só palavra do que ele dizia. Ele teimava em me seguir para todo canto, contra a minha vontade. Um belo plenilúnio derramava sua luz em nossas cabeças.

De súbito, meu avô colocou as mãos no peito e gritou: “Mauricinho”.

Um odor nauseante empesteou o ambiente. Sinceramente, não tenho palavras para descrever o quão horrível e sufocante se tornou o ar ao nosso redor. Olhei para o ressalto da laje e vi meu tio de pé olhando para baixo. A noite clara e quente revelava a esqualidez de seu corpo e o amarelado em seu olhar. A besta estava nele, mas ainda não mostrava sua forma por completo, algo que aconteceu de forma rápida e em oposição ao senso comum durante o salto em nossa direção.

O demônio agarrou o garotinho e transpassou o muro ao lado da goiabeira, desaparecendo por entre a vegetação e o lixo da construção abandonada nos fundos da propriedade do meu avô. Meu avô. Meu pobre avô. Essa fora a última vez que o veria vivo. Um ataque cardíaco ceifara sua vida, talvez fosse demais ver com os próprios olhos algo que apenas o músculo necrosado fora capaz de sentir, até então: a maldição, de fato, passara do filho espúrio para o legítimo.

Aos pais do menino nada restava, além de seguirem o rastro de retalhos ensanguentados no terreno ao lado. A violência do local ficara com os créditos. Eu nada disse do que vi. Não adiantava. Ninguém se importava. O demônio com a letra L era apenas a personificação do que aquele lugar se tornara.

Após o ocorrido, a cada mês havia um novo ataque, alguém desaparecia. Um dependente de drogas desavisado pelas ruas da favela, um velho solitário num casebre, jovens em promiscuidade em hora e local errados, uma criança por conta própria no becos e vielas, uma mãe solteira com um pagão nos braços, ou até mesmo, um rapaz a serviço do tráfico, cujas armas de nada serviram. Pessoas invisíveis, num rincão esquecido por Deus.

A cada ciclo, eu temia ser o próximo e desejava com todo o coração fugir para sempre daquele lugar na primeira oportunidade que se mostrasse. Mas os anos se passaram sem que nenhuma das duas possibilidades de concretizasse. Mas a minha sorte estava para mudar, assim como a minha determinação.

Depois de anos vivendo de pequenos serviços e mendicância, para ter o mínimo para ajudar a tia com a qual morava na casa do meu avô, uma vez que meu pai desaparecera no mundo sem que eu me lembrasse de seu rosto e minha mãe morava na casa da família para a qual trabalhava e que, convenientemente, proibia a minha ida para junto dela, eu obtive a oportunidade que tanto ansiava.

Com a chegada do período para alistamento militar, eu consegui, ao mesmo tempo, uma renda e talvez o mais importante e que me fez mudar de opinião quanto ao meu destino: meios e treinamento adequados para revidar.

Eu me esforcei a cada exercício, em cada teste de aptidão. Extrapolei os limitei do que era exigido. Eu caçaria o maldito. Colocaria um fim ao demônio e libertaria meu tio da maldição, ofereceria a ele um descanso digno longe das garras do inferno em sua alma.

Assim que julguei adequado, passei a rondar a favela com a motocicleta que um amigo me repassara em financiamento. Naquela época, não era difícil evadir do quartel com a arma de serviço, na verdade, era até incentivado para garantir segurança aos soldados e ordem nas ruas, a ditadura militar ainda imperava.

Mais uma vez, diferentemente do que pensa o senso comum, não é necessário uma bala de prata para por fim à fera, como ficara provado com a aniquilação da besta anterior diante das múltiplas lacerações pelos vergalhões de ferro fundido. Claro, o demônio não é um animal comum, longe disso, sua resistência é absurda, mas um ataque perfeito é capaz de subjugá-lo. Difícil é encontrar a coragem e a destreza para fazê-lo. A prata pode sim acelerar os danos à criatura devido à intolerância ao metal. Mas como pude aprender, um projétil de prata não obtém a mesma eficiência no disparo com relação ao chumbo por ser um metal menos denso. Mas, como adicional e por precaução, derreti um cordão de prata que comprei de um meliante na favela e pincelei o metal derretido na ponta de cada bala do estoque que também comprei junto a um dos rapazes do tráfico. Uma coisa seria fazer uso do armamento do exército brasileiro, outra seria utilizar a munição sem uma justificativa plausível.

As noites de vigília se mostraram tentativas e erros, uma sucessão de desencontros, até que em certo plenilúnio marcado pelas lágrimas dos céus, finalmente consegui me deparar com meu tio demônio, mas não obtive sucesso em enterrar um projétil banhado em prata em seu coração ou cérebro...ainda.

III

O embate final

Era a noite seguinte à do meu encontro com a fera e, diferentemente da ocasião anterior, o céu se mostrava limpo e livre de nuvens. O manto escuro e salpicado de estrelas oferecia uma face gorda e amarela sobre a cabeça dos viventes da região. Eu estava limpando e preparando a pistola com as últimas quinze balas pinceladas com prata de lei, quando algo inusitado aconteceu. Rogerinho, o garoto que fazia a segurança do tráfico batia à minha porta, e não estava só. Gabi, a irmã mais nova de Duda, o rapaz que fora destroçado pela fera, e que também trabalhava para o poder paralelo – difícil encontrar que não o fizesse – o acompanhava. Eles estavam armados e dispostos a ajudar no embate contra o demônio.

Não precisei pensar muito. A verdade é que eles não durariam muito naquela vida que escolheram e, se tivessem de morrer, que fosse por uma causa maior. Assim, partimos para o duelo com meu tio. Eu havia colocado uma nova roda dianteira, a suspensão não estava perfeita, mas não havia tempo para algo melhor. Rogerinho e Gabi seguiam numa outra motocicleta, mais nova e potente, eles dispunham de mais recursos, por assim dizer.

Seguíamos apenas com pistolas, a dupla não poderia fazer uso de um armamento mais pesado porque a fera estava escondida num local perigoso, uma comunidade ocupada por uma facção rival. Então, teríamos de nos preocupar com duas ameaças, a dos homens e a do demônio.

Postada entre o tanque de combustível e o meu guidão, estava Balalaica, uma cadela mestiça que não pôde me acompanhar na noite anterior por conta da tempestade. Durante muito tempo confiei no seu faro e senso de alerta durante as noites malditas. Ela conhecia o odor do meu tio e daria o alarme em caso de necessidade. Agora, eu fazia uso de suas habilidades para rastrear o demônio. Ela não tinha o porte de Ralf, o cachorro que lutara contra a fera original, sendo morto por ela, mas dispunha da mesma valentia e fidelidade.

Gabi conhecia uma entrada oculta para a comunidade por meio da mata fechada. A vantagem seria entrarmos despercebidos, a desvantagem seria não poder seguir com os veículos. No acesso da encostas apenas dois vigias na contenção. Rogerinho tomou a frente para investir contra eles, mas tomei sua arma. Eu não confiava em sua perícia, e não poderia desperdiçar minha munição com aqueles dois. Então, fazendo uso da pistola do rapaz, investi contra a guarda. Eles caíram sem ao menos perceberem de onde vieram os disparos.

Com a passagem livre, passamos a subir a encosta tomada pela vegetação. Balalaica seguia na vanguarda. Depois de cerca de trinta minutos por entre pedras soltas, buracos e mata fechada, chegamos ao cume do lado desocupado da comunidade. No entanto, o local não estava de todo desabitado. A cadela havia parado adiante de onde estávamos, e, em postura alerta, indicava algo à frente.

Havia um casebre, um barraco, montado junto a uma reentrância de pedra oculta por muito mato. No alto de uma das pedras, que mais parecia o dorso polido de um rinoceronte, vimos meu tio Maurício prostrado olhando para o céu. Ele murmurava e gesticulava, como se implorasse por um basta naquela vida de danação. E, do alto, a lua apenas derramava seu brilho amargurado sobre ele.

O que havia começado como um choro, convertera-se numa mescla de gritos e lamentos. A menina ao meu lado ensaiou uma investida, mas a contive. A fera precisava mostrar sua verdadeira face para ser morta com eficiência.

Balalaica gania baixinho ao meu lado. Não seria preciso esperar muito. Mauricinho olhou em nossa direção e, mesmo de longe, pude descrever aquele olhar melancólico com o qual estava acostumado. Mas, tão rápido como um pensamento, o teor humano ali presente deu lugar a uma aura nefasta. Ele saltou como um homem e chegou ao solo como uma fera. Sem estardalhaço. Sem mutações mirabolantes. Era como se simplesmente seu corpo tivesse sido virado ao avesso, onde a parte interior agora se mostrava. Uma verdade com uma monstruosidade crua e cediça.

Rogerinho e Gabi, ignorando os meus apelos, correram na direção da criatura disparando suas armas. Maurício, a fera, se desvencilhava com extrema facilidade das investidas e, ao mesmo tempo, ganhava terreno contra eles. Segurei a cabeça de Balalaica com as duas mãos e disse-lhe: “Vá, garota, se esconda”.

Com uma patada, o demônio acertou Gabi, jogando-a longe com a força do golpe, ao passo que o rapaz era agarrado pelo pescoço e erguido. De pé, a fera levantava sua vítima apontando-a para o céu, como num brinde, antes de decepar seu pescoço e se servir com os fluídos que jorravam fartos do vão, enquanto olhava para a menina caída.

“Mauricinho!” Bradei, de arma em punho e corpo livre diante da criatura. “Sua luta é comigo, tio. Deixe essa menina e venha me enfrentar.”

O demônio me olhava e oferecia as linhas de dentes aguçados como se zombasse de mim com um sorriso. Caminhando lentamente, ele ergueu o corpo desacordado da menina e o partiu ao meio, com facilidade, fazendo uso das fileiras agudas em seus dedos.

“Não!” Meus gritos foram abafados pelos uivos para a noite. Lancei-me em sua direção apertando o gatilho freneticamente. A fera não se esquivava, se deixando atingir pela munição banhada pela prata. Acredito que todas as quinze balas o atingiram. A maioria no tórax, mas uma em cheio em um dos olhos.

Uma fumaça densa e fétida vertia das aberturas no corpo de Maurício, de onde um líquido escuro escapava. Ele estava mortalmente ferido e acreditei que tinha vencido, um descuido com o qual teria a eternidade para me lamentar.

Meu tio projetou o corpo com uma facilidade incompatível às múltiplas lacerações que ostentava e me agarrou pelo pescoço, como fizera com Rogerinho. Eu levantei a pistola e enverguei o gatilho uma, duas, três vezes, mas nenhum resultado obtive, além dos cliques secos.

Então, Mauricinho posicionou meu pescoço entre as suas mandíbulas. Fechei os olhos e esperei pela completa escuridão, mas, ao invés disso, senti seus dentes penetrarem a minha carne e um ardor imenso me dominar, como se ácido estivesse sendo derramado em minha pele e invadido meu sangue. Mais uma vez gritei, mas agora pela dor.

Senti um impacto e tanto eu quanto a fera fomos ao chão. Era Balalaica. Ela havia projetado seu corpo franzino contra a criatura enfraquecida. Uma agonia inominável dominava não só o meu corpo mas também, e principalmente, a minha alma.

“Meu sobrinho”. Eu ouvia uma voz mesclada por sofrimento e sordidez. “Eu morro, agora e para sempre. Mas a maldição não morre, ela sempre encontra um meio. Para a minha alma poder descansar, a sua precisa carregar o fardo”.

Balalaica saltou contra a garganta de Maurício e acelerou a ação proporcionada pela amálgama de chumbo e prata. Antes de morrer, pude ver nos olhos do meu tio a serenidade encontrada pelo descanso eterno da morte após tantos anos de fúria e sangue. Até mesmo a usual melancolia dos seus tempos de menino dera lugar a um estranho semblante de paz.

Quanto a mim, sentia meu sangue ferver nas veias. Maurício se deixara atingir por mim porque me queria para ocupar o seu lugar como escravo da lua cheia. E minha ânsia por libertá-lo não me deixou ver o preço que teria de pagar.

Ainda caído no chão, sem ter forças para me levantar, sentia a língua espessa de Balalaica sobre meu rosto, ela não entendia o perigo em ficar agora ao meu lado, a fidelidade canina era a prova mais inequívoca de dignidade e amor.

“Vá garota, saia daqui, vá embora. Fuja, salve sua vida”. Ela se negou a me deixar e quando perdi os sentidos e a lucidez, não sei mais o que aconteceu. Cada um tem o seu próprio inferno.

Leia também o conto original A TRAVESSIA DO INFERNO no link abaixo:

https://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/6582944

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 21/05/2023
Código do texto: T7793785
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.