Felipe - Conto CLTS 24

Felipe estava sentindo-se realizado, afinal, conseguiu abrir sua tão sonhada barbearia, apesar de todos os contratempos. Aos trinta e cinco anos, finalmente estava dando “um rumo na vida” como sempre ouvia seu velho reclamar... Ele ficaria orgulhoso se o visse agora... É ... ficaria orgulhoso, ainda mais pela boa clientela que já havia conseguido em tão pouco tempo.

Com o passar dos dias, Felipe percebeu que havia algo estranho, sempre os mesmos clientes. Na mesma hora do dia, solicitando os mesmos cortes. Não parecia natural. Procurava lembrar-se quem eram aquelas pessoas, mas não consegui. Por que não conseguia?

Numa quarta-feira, decidiu prestar mais atenção. O primeiro cliente foi o sr Joaquim, um homem gordo, cinquentão simpático que sempre pedia o corte “na régua” e a barba bem-feita. Vestia-se como se estivesse vivendo nos anos 1950. Felipe puxou assunto sobre o clima, mas Joaquim pareceu incomodado com a conversa e respondeu de forma monossilábica, fazendo Felipe encerrar ali seus questionamentos.

O segundo cliente, sr Severino, Felipe lembrava dele da infância, homem simples, que falava que ja foi importante, mas que perdeu tudo. Felipe sempre achou curiosas as histórias de Severino e fazia questão de dar atenção enquanto ele falava sobre o seu passado glorioso que não havia sobrado nem o pó dos sapatos.

A terceira cliente era Isabela. Felipe sempre achou estranho uma mulher ir à sua barbearia para cortar o cabelo, mas pagando pelo serviço, ele o fazia, sempre se perguntando por que ela não ia ao salão de beleza com manicures e cabeleireiros... Isabela tinha um olhar aflito, sempre perguntando se ainda ia demorar, e sussurrava quase ao ouvido dele: “não deixe te pegarem... eles estão aqui... fuja...”

As palavras de Isabela ecoaram na cabeça de Felipe fazendo-o entrar numa espiral vertiginosa de delírios. Quem eram eles? Por que deveria fugir? Para onde?

Atordoado, percebeu que suas mãos estavam sujas com algo grudento e com cheiro forte. Ao olhar atentamente, percebeu que era sangue. Seu? De outras pessoas? Afinal, o que aconteceu?

Desnorteado, tentou firmar a vista e entender o que havia acontecido. Sua barbearia estava toda revirada, havia sangue espalhado pelo chão e até no teto. Aflito, perguntou-se como conseguiu sobreviver a um ataque tão furioso... Sua cabeça zumbia... Não conseguia pensar, a dor aumentava, parecia que ia explodir. Bang!

Ao abrir os olhos, Felipe percebeu que estava num quarto de hospital. Máquinas ligadas ao seu corpo, bipes e medicação. O mundo girava, enquanto tentava entender o que estava acontecendo... Tentou falar, mas não saia voz. “O que está havendo comigo?? Mas que...” novamente foi apagado pela medicação.

Em sua barbearia, tudo organizado, aguardando os clientes, “Que pesadelo doido... parecia que eu estava num filme de terror...” Tentou lembrar os detalhes do sonho, até que o sr. Joaquim apareceu, após ele o sr Severino e isso foi reativando as memorias confusas de Felipe. Enquanto finalizava o atendimento, pensou alto: “Agora só falta a Isabela” e deu um riso sarcástico duvidando de si mesmo, no que ela aparece e pergunta porque ele está com cara de bocó. Ao ouvir sua voz, e ver confirmados seus pensamentos, Felipe torna-se pálido, “não pode ser... não é real” e sai andando rapidamente na direção dela xingando-a e mandando-a embora. “Suma daqui! Por sua causa eu tive tudo destruído! Foi você quem fez isso comigo! SAIA DAQUI!” Assustada Isabela tenta dizer que não sabe do que ele está falando, quando Felipe ergue a navalha cortando-lhe o pescoço profundamente sem permitir qualquer defesa da parte dela.

Sr. Severino tenta escapar da fúria de Felipe, mas ele o encontra, empurrando-o contra a porta de vidro que se esfarela, deixando o idoso extremamente ferido. Envolto numa fúria demoníaca, Felipe manda todos se calarem, pois não aguenta mais tantas pessoas falando ao mesmo tempo em sua cabeça. A polícia chega em pouco tempo. Tentam conter a fúria de Felipe que se vê cercado, sentindo que está encurralado e perdido. Mas não pretende se entregar: “não vai ser fácil para vocês...” Enquanto procura uma forma de escapar sem ser pego, ele vê Isabela. “Mas que diabos ela faz aqui? Eu cortei a garganta dela...” mas ela o guia, ele a vê toda ensanguentada, mostrando a saída no meio da fumaça da bomba de efeito moral que a polícia jogou. Sua cabeça começa a girar, um enjoo forte, olhos ardendo... seu corpo inerte cai no chão, e apesar de consciente, não consegue erguer-se. Tudo fica escuro.

“Ei, cara vai ficar aí parado e não vai fazer nada?” – Felipe leva um susto ao perceber que está em pé, na barbearia, com o cliente esperando o atendimento. “Cara, você está bem? Tá parado aí mó tempão” ... Tentando entender o que está acontecendo, arranja uma desculpa: “foi mal cara, estou numa enxaqueca braba” ... Felipe percebe que a realidade está fugindo do seu controle e procura entender o que está acontecendo, afinal.

Marca no calendário o dia da semana, para ter certeza de que não está ficando louco. Coloca no celular o lembrete no despertador. Tira foto de todos os objetos que possui em sua barbearia. Faz marcações mudando alguns detalhes para que no dia seguinte possa confirmar que está tudo do mesmo jeito. Tenta refazer seu trajeto, mas empaca na primeira dificuldade, pois não consegue lembrar onde mora, nem como chegou ali.

Aflito começa a dizer em voz alta seu nome completo “Felipe Menezes; Felipe Menezes; Felipe Menezes; Felipe... Felipe... Felipe...” Começam a vir lembranças turvas de seu pai chamando-o, enquanto ele corre para longe. “FELIPE!” Num susto, vê-se em pé novamente em sua barbearia. “Eu não dormi, como cheguei aqui? Eu não dormi” ... Procura sair do prédio mas os clientes começam a cercá-lo , impedindo sua saída e sufocando seu corpo enquanto ele tenta desesperadamente se livrar daquelas pessoas que o seguram e o impedem de se movimentar. Nesse momento ele apaga. E sonha.

Novamente seu pai aparece. Estava mais velho do que conseguia se lembrar, em seus sonhos sempre o via mais novo, e a si mesmo como uma criança com uns 10 anos, eram suas melhores lembranças e as mais estranhas também, afinal o que acontece depois? Por que não consegue se lembrar? Com muito esforço chama pelo pai que chora ao ouvir a voz do flho... “Meu filho... Porque? Porque?” A voz embargada do pai, entrecortada pelos soluços do choro deixam Felipe mais confuso do que antes. Ele tenta segurar o pai e percebe que sua mão está presa. Ele tenta soltar e percebe que a outra mão também esta presa, juntamente com os pés, “Mas que p....” Não conseguiu falar, não sai voz de sua boca. Completamente aflito, tenta se concentrar e observa que está novamente no hospital. Um hospital estranho, mas é um hospital. Aos poucos, tentando raciocinar e entender o que está acontecendo, Felipe observa que está num leito, e consegue ouvir outros pacientes e enfermeiros ao seu redor. “Por que eu estou aqui? O que aconteceu?” Podendo apenas mexer a cabeça que não está presa a nada, olha para o lado e vê Isabela conversando animadamente com seu pai. “De onde eles se conhecem?” Enquanto tenta entender, aparece uma enfermeira aplicando a medicação que o faz dormir novamente e apagar mais uma vez suas memórias.

Todo fim de semana José ia ao hospital psiquiátrico ver como estava a evolução do quadro de seu filho, Felipe, internado há 5 anos, após um surto em que acreditava ser dono de uma barbearia que estava sendo perseguido pelos supostos clientes que na verdade eram a própria família. No pior ataque, assassinou a sangue frio os avós e a mãe, cortando-lhes as gargantas com uma navalha ao estilo Sweeney Todd, o barbeiro canibal. A cena que viu ali foi de um verdadeiro filme de horror. Sangue pela casa, corpos espalhados, móveis revirados e seu filho, outrora um rapaz doce e adorável, coberto de sangue, catatônico, segurando a navalha, sem dar sinais de estar com a mente presente.

A polícia e a ambulância foram chamadas, constatando o obvio, Felipe assassinou os avós num ataque de fúria esquizofrênica, mas ninguém sabia dizer o que foi o gatilho. Internado, desde então não havia voltado a si dos surtos, permanecendo num hospital de custódia, enquanto seu pai, José ia visita-lo na esperança de haver melhora e conseguir enfim entender o que aconteceu naquele fatídico dia... Enquanto chorava a involução do seu filho, Isabela consolava-o. Afinal, precisava apoiar o marido e fazê-lo sentir-se seguro ao seu lado...

No hospital, enquanto mantinha seus últimos minutos de lucidez Felipe lembrou-se da voz de Isabela: “não deixe te pegarem... eles estão aqui... fuja...” enquanto ele via seus avós assassinados por ela, que entregava-lhe a navalha e lhe jurava amor eterno, enquanto em outro cômodo, chorava e gritava sendo acalentada por José, que não entendia por que sua nora estava assim tão desesperada...Ao vê-la assim tão indefesa, em seus braços, beijou-a saciando um desejo escondido, e não percebia que Felipe vislumbrava a cena pela fresta da porta entreaberta, deixando-o em estado catatônico até ser internado e drogado a mando de Isabela que sempre ia ao hospital garantir que jamais teria alta.

Solitary Ground
Enviado por Solitary Ground em 08/08/2023
Reeditado em 11/08/2023
Código do texto: T7856074
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