SOB OS ESCOMBROS DA GUERRA - CLTS 25

Quando as sirenes tocam, trazem consigo o caos.

Naquela manhã, Yamal preparava a refeição do filho Salam. Tinham pouca coisa na despensa, então cozinhou alguns legumes misturando-os ao arroz, isto manteria o garoto satisfeito até a noite e como nos dias anteriores, para o jantar, esquentariam aquilo que sobrou.

O menino de nove anos perdeu a mãe muito cedo, ativista pela causa da libertação, foi morta num confronto com o exército de ocupação enquanto protestava contra a construção do muro que segregaria seu povo. Naquela época, o pai perdeu a visão do olho esquerdo ao ser espancado quase até a morte. Salam estava com os tios, e assim ficou por algum tempo.

A gaiola, como chamavam o prédio de apartamentos decadentes onde moravam, não possuía segurança, então sob bombardeio, deviam abandoná-la em busca de abrigo melhor. Pai e filho corriam desesperados sob a iminente destruição. Não deu tempo. Uma forte explosão reverberou fazendo a parede tremer. Salam apertou o pequeno amuleto que mantinha no bolso da calça. Tudo escureceu.

O menino despertou após a tarde dar lugar a uma noite enlutada. A gaiola tornou-se um emaranhado de escombros. Tijolos misturavam-se a resto de concreto barato criando formas sinistras iluminadas pelos clarões dos mísseis. Em vão tentou se erguer descobrindo que parte do teto encontrava-se sobre suas pernas. Não conseguia se mover.

A dor forte percorreu seu corpo antes dormente fazendo-o gemer em agonia. Como toda criança inocente daquela parte miserável da terra, seu choro não foi ouvido. Enquanto em desespero chamava pelo pai, apertava o pequeno objeto. Esgotado pelo esforço, sentia seu corpo leve, aos poucos adormeceu.

A noite continuou agitada. Morteiros rebeldes riscavam os céus sendo em grande parte abatidos pelo moderno sistema de defesa inimigo. Outros desviavam se perdendo longe dos alvos enquanto a cidade ruía sob a mira certeira dos invasores.

Salam despertou com o gosto de poeira na boca, queria estar em seu quarto, voltar para aquela sua rotina árdua porém feliz ao lado de quem o amava, mas o pesadelo era real. A tragédia novamente espreitava seu destino.

De onde estava, podia se ouvir o som das explosões, o confronto parecia bem perto. Com o corpo parcialmente soterrado, esforçou-se tentando distinguir por entre as frestas do concreto, de onde vinham os clarões do bombardeio. Se ele ouvia sons vindos de fora, também poderiam ouvir seus pedidos de socorro.

Ele chamou pelo pai. Gritou até perder a voz. Teve raiva dos invasores, teve raiva da resistência, teve raiva do pai. Estava só, o pai também o abandonou. Teve raiva de Deus.

Enfiou a mão no bolso. Seu companheiro estava ali, apertou, sabia que ele jamais o abandonaria.

O tempo passava lento. Em meio ao pranto as vezes não resistia, dormia, desmaiava. Debaixo dos entulhos, agora conseguia distinguir o brilho do sol.

Os bombardeios cessaram. Lamentos distantes imploravam ajuda. O som dos estampidos indicavam múltiplas trocas de tiros.

Salam desejava a morte de todos os invasores. Queria crescer, entrar para resistência, ajudar a libertar seu povo, mas as esperanças esvaiam-se enquanto a fome aumentava.

Chamou pelo pai sem esperar por respostas. Orou para o Deus do Profeta. Implorou a qualquer Deus que se dispusesse a ouvi-lo.

Os tiros continuavam.

Tentou mover-se, soltar-se esquivando-se por entre os restos de seu antigo lar chegando até a luz. Era inútil. Apertou seu amuleto e desistiu.

Naquela situação não havia muito o que fazer, seus pensamentos eram limitados, ainda conhecia pouco do mundo, queria ter a chance de aprender mais.

Pensava no pai, já não tinha tanta raiva. Pensava nas tardes em que se divertiam brincando de revolucionários. Da janela do quinto andar de onde moravam, eram franco atiradores. Sua arma preferida era o cabo de vassoura, seu rifle com mira telescópica. O pai usava uma escova de cabelo automática com mira laser. Quem localiza-se e abatesse o maior número de invasores seria o vencedor. Yamal nunca vencia.

Um dia feliz foi quando após a vitória de dez a zero ganhou um belo prêmio. Um soldadinho de plástico verde em posição de tiro, um partisan da segunda guerra mundial, desde então aquela célula revolucionária passou a ter três integrantes. Mesmo assim Yamal continuou perdendo.

Salam pensou com carinho no pai, apertou seu amuleto, seu soldadinho herói da resistência em outras batalhas. Chorou.

Com a primeira tarde sob as pedras, seu corpo acostumou com a dor, bastava não se mover que sentia apenas um torpor. O problema já não era tanto a fome, ela o visitava sempre. Agora tinha sede, e esta era diferente. O tempo frio e seco se somava ao pó da destruição, parecendo uma mão apertando sua garganta. Sempre que tentava gritar, pedir ajuda, mais seca e dolorida eram suas palavras.

Os morteiros, os tiros, as explosões não tinham fim.

- Salam, Salam você está bem? Pode me ouvir.

O sol já tinha se posto, vez ou outra reflexos luminosos marcavam o céu como relâmpagos em noite de tempestade.

- Filho, você está bem?

Meio sonolento pela privação, o menino parecia ouvir seu pai. Já havia desistido, não respondeu.

- Salam, você precisa ser forte. Tudo vai ficar bem. Me responda, você está bem?

- Tenho sede. Foi o que conseguiu dizer.

- A ajuda está chegando, até lá tenha fé, você precisa lutar.

- Tenho sede, pai.

- Você consegue se mover? Yamal perguntou.

- Estou preso. Tem alguma coisa em cima das minhas pernas. Dói muito.

- E as mãos, filho? Consegue retirar um pouco dos entulhos?

- Acho que não, é pesado. Quero água.

- Salam, não desista. Preste atenção. Tente ver o que tem a sua volta. Além das pernas você está ferido em outro lugar? Passe a mão pelo corpo. Aperte suas costelas. Passe a mão a seu redor.

Durante intermináveis minutos fez-se silêncio. O menino tentou obedecer, tateou a poeira em busca de algo que poderia lhe ajudar.

Ele chamou pelo pai, por muito tempo não houve resposta. Ele ouvia os tiros bem próximos.

Estampidos secos e pausados seguidos por uma salva longa que parecia ricochetear nas paredes ocas que ainda se encontravam de pé.

Não havia esperanças, o destino parecia cruel. Salam depositou toda sua fé em seu pai, desejou tanto vê-lo retirar os restos do prédio de cima de si, mas isto não ia acontecer.

- Salam, filho. Achou alguma coisa? Uma barra de ferro? Madeira ou pedra solta?

- Pai, você voltou. Me tira logo daqui.

- Não consigo. De onde estou é muito difícil fazer alguma coisa. Você tem que ser forte. A ajuda está a caminho.

- Aqui não tem nada. Só Terra e pedaços da parede misturada com barro.

- Muito bom filho. Barro, pode ser um cano, água da caixa. Você consegue tirar um pedaço da camisa. Consegue coloca-la sobre esta água até ficar molhada?

Yamal não podia salvar o filho, mas tentaria ajudá-lo até o fim. Aquele pedaço de tecido molhado significaria postergar a desidratação.

Do lado de fora, sobre os destroços da antiga cidade uma batalha desigual estava sendo travada.

As forças de ocupação marcharam sobre os domínios da resistência, prédios tombavam ceifando as vidas de inocentes. Corpos mutilados se acumulavam nas ruas. Os hospitais eram bombardeados sob alegação de estarem nas mãos dos insurgentes. O genocídio era flagrante, aquela gente miserável seria exterminada.

Porém havia resistência.

Loucos desesperados se jogavam contra os tanques, barricadas eram formadas nas vielas. Rebeldes sabotadores se infiltraram entre os inimigos.

O prédio onde Yamal e Salam residiam foi o primeiro a ruir, aquele setor era ponto estratégico para a aniquilação que se seguiria, mas ali a ocupação não prosperava.

Por detrás dos entulhos um atirador solitário disparava certeiro. Cada bala, um invasor abatido. Em vão dezenas de tiros tentavam alvejá-lo, quando acreditavam que ele estava morto, outra bala e outro soldado por terra. De um a um o pelotão ia diminuindo, granadas e morteiro não surtiam efeito. Tragado pela terra, o atirador ressurgia, ora pelos francos ou mesmo de frente.

Apesar dos modernos equipamentos, aquele soldado solitário guardava ali seu bem mais precioso. Das pilhas de concreto amontoado, seus disparos eram fatais. A soberba dos invasores causava mais baixas em suas próprias fileiras. Os boatos sobre um atirador misterioso se espalharam trazendo mais dois pelotões, agora era questão de honra. O cerco ameaçava se fechar, flanqueavam sua posição e eram alvejados pelas costas. A hipótese de mais de um insurgente foi descartada, tinham como certa a existência de túneis por baixo da cidade. Esta foi a mais lógica das explicações.

Por mais que chamasse pelo pai, Salam não tinha respostas. Estava tranquilo, apesar da fome já não sentia dores, na maior parte do tempo permanecia desacordado, quando despertava ouvido o som da batalha, mantinha-se firme, sabia que alguém zelava por ele, sabia que o pai também não o abandonaria. Seu pai e seu soldadinho, ambos zelavam por sua segurança.

No final do terceiro dia, pressionados pela opinião pública, foi declarada uma trégua. A beira da extinção, o povo daquela terra começou a recolher seus mortos.

Salam já quase sem vida, se viu arrancado daquilo que um dia foi seu lar, com o coração cheio de esperanças apertava firme o pequeno brinquedo no bolso até sua mão quase sangrar e nos braços dos voluntários, sua sobrevivência foi tida como milagre.

Dos escombros também recolheram Yamal, seu corpo destroçado pela guerra, quase não podia ser reconhecido. Do atirador solitário ninguém nunca mais ouviu falar.

Hoje, Salam ainda brinca com o soldadinho de plástico, agora também herói de mais esta batalha. Apesar da esperança destruída, dos destroços daquela nação, ele sabe que um dia a paz ressurgirá.

Brinquedos amaldiçoados

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 23/11/2023
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