DILEMA ENTRE IRMÃOS

I

O vento uivava suavemente, quase como um sussurro, balançando de modo discreto as folhas das árvores frutíferas daquela quadra da imensa propriedade. O homem, cuja a face era marcada sem cerimônias pelos sinais impiedosos do tempo, permanecia sentado no banco de madeira fixando o olhar perdido para o vazio em trevas à sua frente.

As duas mãos em concha se apoiavam no cabo envernizado da bengala. Era como se esperasse por algo. Uma demanda que dava como certa de ser atendida. A brisa que se mostrara fresca durante todo o tempo em que ali permanecera, de súbito, ganhara contornos mais cálidos, eriçando os pelos espaçados em sua nuca.

Um cheiro acre empesteou o ar, tornando o simples ato de respirar numa prova de resistência. Ele apertou com mais força a madeira, ao passo que as batidas em seu peito lhe remetiam à ideia de que estava vivo. Um farfalhar nos arbustos às suas costas confirmava a suspeita de que já não havia mais motivos para cerimônias. A presença de ambos era mutuamente percebida. Um rosnado longo e pesado de um lado, um suspiro de resignação de outro.

Por um ínfimo instante, a parca iluminação que vinha do círculo amarelo no céu teve sua presença maculada pelos contornos escuros de algo que não deveria pertencer a esse plano, mas, que ainda assim, se mostrava presente. Não tardou para que tudo estivesse terminado.

II

O homem diante do púlpito era magro e exibia uma fragilidade que transbordava de sua presença. Nenhum fio de cabelo ornava a sua cabeça, um contraste com as sobrancelhas espessas e escuras que tornavam o seu olhar desconfortavelmente penetrante. Diante de seus olhos estavam os últimos desejos de alguém cujo poder só era ofuscado pela própria riqueza.

− E assim os ativos e participações a nível global permanecem de acordo com os desígnios do conselho administrativo, ao passo que os fundos e propriedades privadas seguirão a indicação conforme o seguinte e…

− Deixe de besteiras, Mathias, estamos aqui para saber acerca do maior bem do nosso pai − interrompeu, Julian.

− Deixe de bobagem você, irmão − subiu o tom de modo ríspido, Karen. Você sabe muito bem que sou a primogênita, logo, o direito à herança é meu e somente meu.

− Ela está certa, meu sobrinho. Você sabe que certos tópicos da herança não cabem discussão e …

− Não me venha com essas especificações técnicas, Mathias. Três minutos, apenas três minutos tornam Karen mais velha do que eu. E, além do mais, ela nunca esteve presente. Nunca se interessou pelos assuntos do nosso pai. Enquanto ela estava solta pelo mundo em festas e badalações eu estava aqui, cuidando para que nada fugisse do controle. Coordenando cada passo para que tudo desse certo no final.

− Não importa, meu filho. Cada um de nós terá exatamente aquilo que nos cabe, não se esqueça disso.

− Ora, se assim for você teria bem menos do que recebe, não é mesmo? Afinal, você não é nossa mãe de sangue, certo?

− Não seja rude, Julian. Eu criei vocês dois como meus, desde o primeiro minuto de suas vidas. Sua mãe se foi no parto e eu estive aqui desde então.

− Como eu disse, especificações técnicas, mamãe. Distorções da realidade. Detalhes que não traduzem o que de fato deveria ser. Assim como está escrito que essa destrambelhada é a merecedora de herança, também está determinado que tenho direito a conclamar um dilema.

− Agora você é quem está revestido de bobagens, meu sobrinho. Embora tecnicamente o dilema seja algo pleno de direito, não passa de uma sandice. Não há a menor chance de você ser bem-sucedido nessa empreitada.

− Se você não teve coragem na sua vez, Mathias, não me venha dizer como devo ou não agir. Você poderia ter tido tudo, bastava ter um mínimo de brio para lutar por algo em que acredita.

O testamenteiro, irmão do falecido, engoliu em seco as palavras que tomaram forma em sua garganta. No fundo ele sabia que nenhuma oratória poderia contradizer aquilo que acabara de ouvir do petulante sobrinho.

− Mathias, se ele quer fazer valer o direito ao dilema, nada podemos fazer. É direito dele − concluiu a madrasta, enquanto Karen, a gêmea, emitia risos de deboche.

− Pois bem. Hoje a lua plena vai brilhar no céu e eu estarei lá na casa de meu pai, vasculhando cada parte daquele bosque. Eu vou matar a fera. Não haverá canto naquela imensa propriedade em que ela poderá se esconder da minha fúria.

− Sua fúria?!? − Desdenhou Karen − a besta vai trucidar você vivo, meu pobre irmão. Não se esqueça de me incluir no seu próprio testamento.

Os gêmeos ostentavam quase cinquenta anos, mas Karen exibia uma jovialidade contrastante à rigidez da aparência do irmão. Julian sabia que precisaria bem mais do que de palavras para chegar perto de cumprir o que se propusera a fazer.

III

As horas passaram bem mais rápido do que seu coração desejava. A lua sobre sua cabeça era uma sentença de que não haveria volta. Julian carregava nos braços a mesma espingarda calibre doze que seu pai fazia uso nos safaris na África. No entanto, a munição ali presente passava longe da mediocridade do chumbo. No fundo, Julian sempre soube que um dia estaria naquela situação. E ele se preparara. Cada cartucho que trazia era composto da mais pura prata. Misticismo letal, falava para si mesmo, enquanto se embrenhava por entre as árvores do imenso bosque da propriedade da família.

A noite se mostrava quieta, perturbadoramente silenciosa, como se cada bicho ou inseto da mata soubesse que deveria se guardar. A criatura que caminhava por entre as vielas verdes violava a ordem natural da existência. O demônio aprisionava em seu interior uma ínfima nesga de humanidade. Algo insignificante para mostrar alguma vontade própria, mas presente o suficiente para testemunhar cada atrocidade praticada.

Um farfalhar quebrou a monotonia e impulsionou um envergar de gatilho. A explosão estilhaçou o inofensivo tronco de uma árvore.

− Apareça, criatura maldita! Saia de sua toca e venha me encarar.

Algo imenso saltou de um lugar indeterminado e se postou diante de Julian. O movimento inusitado fez com que ele se desse conta de que estava sendo monitorado durante todo o tempo e, se fosse da vontade da fera, sua cabeça já não estaria no lugar.

A besta era imensa. Sobre as patas inferiores, como estava, passava fácil de dois metros de altura. Os braços longos faziam com que as garras curvas raspassem no relvado em movimentos longos e repetitivos. As fileiras alvas e aguçadas do sorriso escancarado contrastavam com a escuridão.

Seja forte e corajoso, Julian. Ele dizia para si mesmo, enquanto encarava seu destino nos olhos amarelos da morte. Sem que pudesse controlar, imagens de sua infância ao lado da irmã lhe tomavam a mente. Basta enterrar uma bala entre os olhos do demônio e tudo será seu, Julian. Repetia como um mantra interno.

A criatura insinuou um movimento, um leve ato, porém, decisivo o suficiente para replicar em Julian uma resposta. A prata cruzou o ar. Em sua cabeça, a mira se mostrara certeira, ele atirara inúmeras vezes de forma eficaz daquela distância, mas ele não levara em consideração o corpo menos denso do metal e tampouco os movimentos da fera, algo bem diferente de um alvo fixo.

O projétil estilhaçara a omoplata da fera que urrou de dor ao sentir o metal maldito queimar seu sangue. Tomada pelo ódio, ela saltou sobre a presa. Julian foi jogado ao chão e sentiu a dor de mil lanças atravessarem seu corpo quando a mandíbula voraz da besta cravou-se com ímpeto eu seu peito, ombro e antebraço. A espingarda já estava fora de alcance, mas, por algum motivo alheio à própria dor, Julian sorria. Ele olhava para a lua no céu e sorria, porque a maldita fera estava finalmente ao seu alcance. Com a mão que estava livre, ele alcançou a lâmina de prata na cintura e, com um movimento decidido, cravou o objeto lateralmente na garganta do demônio.

A prata era letal e agia rapidamente. O sangue negro e uma fumaça fétida era expelida do ferimento aberto na garganta da criatura. Julian se arrastou para longe dela e, vitorioso, assistia ao processo reverso de que tanto ouvira falar, mas que nunca presenciara.

A brisa que, de súbito, voltara a soprar, tratava de levar para longe os pelos que caíam da fera derrotada. Ossos se quebravam para, em seguida, se unirem novamente num novo propósito. A dor testemunhada não era lamentada. E, mais rápido do que sempre imaginara, os contornos de Karen se tornaram nítidos.

A mulher segurava inutilmente o ferimento com ambas as mãos e tentava falar, mas apenas sangue era projetado de suas investidas.

− Não fale nada, irmã. Eu disse que mataria a fera. Você nunca foi digna para defender o legado de papai. Você pode ser a mais velha, mas agora está morta e a herança, o espírito da fera, estará comigo. Eu venci.

Sem remorso, Julian arrancou a lâmina do pescoço da irmã para, em seguida, enterrá-la em seu coração, colocando um fim na vida de Karen e, consequentemente, ao dilema entre irmãos.

Com o último suspiro da irmã e com o luar incidindo sobre seu corpo, Julian começou a sentir os dedos sinuosos do demônio da lua cheia se esgueirando por sua alma. Ele gritou, mas o que saiu de sua garganta passava longe de notas humanas.

− Julian.

Em meio à transformação, ele ouviu uma voz conhecida chamando seu nome e se virou, quando foi recebido por um projétil de prata no mesmo ponto ferido, e que havia começado a se curar. Ele tombou com as costas no relvado e sentiu uma dor ainda mais lancinante do que a experimentada instantes antes com os dentes da fera cravados em seu corpo. Isso porque o veneno da prata maculava sua alma, isso se ainda possuísse uma.

− Não se preocupe, meu filho, agora não tardará. Antes de você descansar, quero que saiba o porquê de tudo isso. Seu pai sempre foi uma pessoa horrível, um ser humano desprezível, ainda mais quando revestido pelo alter ego que você e sua irmã tanto prezam. Eu tinha uma vida, tinha alguém a quem amava e que me amava também, antes do seu pai perder a esposa no parto e nossas famílias fazerem o acordo de casamento. Como sua mãe poderia sobreviver ao dar a luz a filhos de um monstro? Não a culpo de morrer. Mas que culpa eu tenho para ser colocada nessa situação?

− Veja − esse aqui é Vincent − ele é o dono do meu coração ao longo de toda a vida. Um homem de idade avançada e segurando uma bengala apareceu ao lado da mulher que falava. Esse homem aqui, Julian, foi quem esperou o maldito do seu pai que vagava em forma de fera naquela noite. Ele sim teve coragem para esperar o momento certo de um ataque que para o seu pai seria fácil e banal, mas que acabou com a lâmina de prata de uma bengala cravada em seu coração. A mesma arma que vai acabar com a sua vida e me livrar de uma vez por todas do demônio e de sua prole, me deixando viver o resto da vida em paz ao lado de quem amo e com o conforto que mereço, afinal.

− Do que você está rindo, Julian? Do que acha graça? − Arguiu a madrasta.

Sem esperar por uma resposta, Vincent cravou a ponta afiada de sua bengala no coração do homem caído que espirrava sangue enquanto gargalhava.

− Agora seremos somente nós, meu querido Vincent. Você acabou com a raça daquele miserável do Mathias?

− Ninguém nunca mais vai ouvir falar dele. Para todos os efeitos, ele sumiu no mundo com a parte da herança que lhe dizia respeito.

− Agora seremos só nós. Mas, não estou me sentindo bem…

− O que houve, querida? O que está sentindo? O que...meu Deus!

O que o casal ignorara por completo em seu plano passava pelo fato de que a danação do demônio da lua cheia sempre encontrará uma maneira de prevalecer. Ainda que não tivesse gerado seus próprios filhos com o demônio, a mulher havia se tornado uma só com o maldito por incontáveis vezes. A essência da fera estava nela e, com a morte dos gêmeos, ela seria a herdeira legítima do legado do inferno.

A fome e a sede do demônio são infindáveis, como Vincent logo descobriria.