FILHOS DE URIHI - clts 26

“A terra-floresta só pode morrer se for destruída pelos brancos. Então,

os riachos sumirão, a terra ficará friável, as árvores secarão e as pedras

das montanhas racharão com o calor. Os espíritos xapirë, que moram

nas serras e ficam brincando na floresta acabarão fugindo.”

Davi Kopenawa - Líder xamã yanomami

A mãe da morte era apenas uma grande batalha perdida no passado distante, histórias contadas aos jovens em noites de lua clara. As lutas se foram beirando ao esquecimento, porém as cicatrizes acabaram aceitas como normais, alguns já se esqueciam até que um dia elas existiram. Tudo voltava ao começo.

Ihiru estava em seu lugar preferido. Das margens do grande rio, observava admirado o movimento das canoas que flutuavam acima das copas das árvores permeando as enormes torres da aldeia.

Sobre a areia branca, alheio ao desejo do pai, sonhava ser parte da equipe de desenvolvimento técnico, queria explorar as múltiplas aplicações da energia cósmica presenteada à seu povo em épocas remotas. Sempre foi fascinado pelos misteriosos cristais da vida e suas propriedades de coletar, armazenar e emitir energia, proporcionando que as embarcações pudessem transitar pelos ares. Também com ajuda dos cristais, foi possível erguer as torres criando tão magnífico progresso ao longo dos anos. Ele sabia que ainda haviam centenas de aplicações, algumas que ninguém ainda ousou pensar.

Agora estava prestes a se tornar um homem, deixaria os sonhos adolescentes tornando-se parte de um todo. Pelo seu corpo as linhas de energia, adquiridas durante a evolução, se manifestavam. Primeiro foi a azul condutora da força, agora a vermelha do intelecto tatuava seu corpo de dentro para fora, antes que a amarela da alma preenchesse o resto do circuito, ele deveria cumprir seu papel.

Após alguns meses, tudo estava pronto, no dia seguinte partiria numa jornada onde a cada geração, bravos seguiam em busca da fonte de poder capaz de recarregar as gemas cristalinas. Ele temia falhar, a última vez que isto aconteceu foi nos tempos de seus avós e todo seu povo passou por um período difícil, foram muitas concessões em meio à escassez e doenças que já nem deveriam existir.

Para a tarefa, iriam se juntar a ele o valente Mohomi e a bela Wapichi, dependeria deles levar sua nação a mais uma década de prosperidade.

Caminhando pelo corredor principal da torre coberta pelo domo cerimonial, buscava com o canto dos olhos a segurança de seus pares. Ao seu lado, imponente, o pai, chefe do conselho das nações e alguns dos mais notáveis representantes de seu povo.

Aquela construção simbolizava o perfeito equilíbrio entre arquitetura e meio ambiente, suas paredes translúcidas regulavam temperatura e iluminação deixando sempre o clima agradável. Diversas plantas enraizavam-se em nichos escalando-a até o topo, ao redor, por entre outros prédios de igual beleza, frondosas árvores serviam de morada a diversas criaturas que em algazarra pareciam comemorar a vida.

Mohomi vinha orgulhoso pela esquerda, acenava para a multidão seu o corpo bronzeado contrastava com as cores vivas das linhas de energia e estas combinavam perfeitamente com três longas plumas que pendiam da faixa usada para segurar seus cabelos.

Ihiru ao entrar no salão, tinha olhos apenas para a beleza de Wapichi, nos meses de preparação que antecederam aquela cerimônia se tornaram muito próximos, seu sorriso lhe dava coragem sempre que duvidava de suas aptidões, por ela aceitou a empreitada abandonando seus sonhos acadêmicos para no tempo certo assumir o assento de seu pai e que antes pertenceu ao pai dele e a sua linhagem desde o renascimento centenas de anos antes.

Prontos a recebê-los, no centro do grande salão adornado com figuras da fauna silvestre, o chefe espiritual da nação os esperava. Como rezava a tradição, toda história documentada ali seria transmitida. Por mais que fosse conhecida, era um belo espetáculo.

"-Quando Napê, o invasor, se tornou forte cobiçando todos os cantos da Terra, o espírito de Urihi, a grande floresta, emitiu seu chamado e muitos o atenderam. Urihi reconhecia seus protetores e agora ele iria proteger seu povo”.

“-Quando Napê invadiu a grande mata trazendo o fogo do céu, a morte consumiu o mundo, seu grito fez o chão tremer”.

“-Em desespero, o espírito da grande floresta abriu seu coração”.

Enquanto o velho pajé falava, imagens tridimensionais bailavam próximo à cúpula do domo deixando a plateia extasiada.

“-Uma grande fenda se abriu no solo diante daqueles que atenderam o chamado, e eles caminharam em pares, alguns levaram sementes, outros tangiam animais. As feras tornaram-se dóceis, complacentes seguiam em paz”.

“-Nossa gente caminhou serena enquanto atrás de si a terra se fechava”.

“-Não era o fim. Em plena escuridão nosso povo vagou, Urihi abraçou nossa gente, mas a escuridão não perdurou. Os espíritos da terra nos deram os cristais da vida e estes trouxeram a luz e calor”.

“-Com os cristais, nosso povo sobreviveu por gerações nas entranhas da terra, aprendendo que somos um só, homem e natureza, indivíduo e floresta, mas a morte se cansou, então renascemos, recomeçamos voltando à superfície”.

“-Com o tempo, temos que reafirmar nossos laços com o espírito da floresta, provar nosso valor, mostrar que podemos nos ajudar. Então quando os cristais se enfraquecem, enfrentamos nossos temores, vencemos nossos fantasmas para reunirmos a Urihi”.

As figuras tridimensionais pareciam se conectar com cada um dos espectadores. Mais que vistos, eram sentidos. Reverberavam com cada linha de vida fundida aos eleitos que da terra ressurgiram vencendo a própria morte.

A história contava que num passado distante, um grande espírito do mal tentou dominar o mundo, em sua sanha de poder consumiu todos os recursos queimando tudo por onde passava. O povo da floresta atendeu o chamado de Urihi, encontraram refúgio nas entranhas da terra e por gerações viveram em túneis, amplas cavernas naturais que mergulhavam fundo no solo. Num ambiente que deveria ser hostil, prosperaram graças a um achado misterioso.

Os cristais coloridos proviam os túneis com luz e calor. Os lagos límpidos, ricos em plantas exalavam um ar suave. Nas paredes da caverna ervas desconhecidas brotavam. Algumas daquelas pedras translúcidas pareciam acumular e transmitir as energias do universo. Por todo lado havia vida.

Uma vez fora das cavernas, o estudo das pedras proporcionou um grande avanço científico além das correlações entre a energia por eles emanadas e as linhas vitais adquiridas após anos de evolução sob pressão, linhas estas que selavam o compromisso entre os homens e o espírito salvador, sendo a conexão com tudo aquilo que existe ou já existiu.

Na sua meninice, Ihiru passava horas em frente a holografias de estudos tentando entender tais implicações, nunca imaginaria que seu destino era ser bravo.

Porém nem tudo é eterno, um dia os cristais se apagam, enfraquecem. Talvez seja esta a forma que Urihi encontrou para recordar que tudo pode ter fim, menos as lembranças. Agora a cada ciclo, um grupo destemido deve partir em busca de Napê. Derrotando-o, trariam de volta a energia da força, do intelecto e da alma. Se um falhasse, todos falhariam pois sem equilíbrio o todo se desfaz. Outra oportunidade, apenas no próximo ciclo.

O pajé aproximou-se solene, um auxiliar trazia a cesta de taboca posicionando-se entre os bravos e o xamã que dela tirou três colares de pequenas plumas atadas por fibras trançadas que terminavam num pingente de pedra semipreciosa transparente. Ofertou a cada um dos jovens que se abaixaram em sinal de respeito. Continuando, apanhou três pequenos invólucros contendo o pó de epena, uma substância preparada com casca de várias árvores orientando-os que quando estivessem em perigo, deveriam aspira-lo para que sua consciência se juntasse aos espíritos trazendo iluminação.

Deveriam partir após a cerimônia, como o sol estava a pino, teriam muita luz natural antes de descansar.

Uma comitiva familiar seguiu os jovens até os limites da aldeia onde se despediram com entusiasmo. Indo um pouco mais além, as crianças, em algazarra acompanharam os heróis em suas canoas acima das árvores. Não demorou para se verem distantes de qualquer outro humano. Estavam nos braços da grande floresta.

Iniciada aquela misteriosa jornada, os dias se passaram com os heróis em devaneios. Vez por outra Ihiru fazia algumas anotações em seu diário de viagem. Mohomi chamou para si a responsabilidade de liderar a expedição. Wapichi fingia segui-lo, mas nem se importava, parecia existir entre ela e Ihiru uma frágil ligação que fazia o jovem enrubescer a face e baixar os olhos. Ela se divertia com sua timidez.

Vencidos todos os limites da grande floresta, cruzando o deserto de areias mortas, vagando por entre esqueletos de ferro retorcido, chegaram a uma grande depressão no solo. Sabiam estar próximos ao destino. Sua canoa enfraquecia, não se mantinha estável. Quanto mais perto da borda, menos poder ela tinha, deviam descer.

Frente a um enorme precipício com as bordas chamuscadas denunciando que algo muito grave aconteceu ali em tempos passados, os bravos deveriam cumprir sua tarefa. Algumas horas foram perdidas caminhando ao largo do abismo. Ihiru acreditava estar de frente a uma enorme cratera circular.

Seu objetivo estava no fundo daquele abismo, tinham que descobrir como descer pelo paredão. Sua tecnologia avançada não lhes permitia nenhuma vantagem naquele momento. Urihi desejava avaliar os bravos mediante seus próprios esforços. Mesmo se esforçando, o fim daquela gigantesca cratera não podia ser identificado.

Um pouco mais adiante, Mohomi divisou uma espécie de obelisco, os aventureiros se apressaram. Mais próximos, se colocaram diante de um enorme pórtico, um grande arco de rocha esculpida com figuras de corpos mutilados. Wapichi sentiu um arrepio. Sinal de mau presságio. Ao cruzar o portal, seguiram por pequenos degraus escavados no paredão, qualquer distração levaria a uma vertiginosa queda.

A descida se revelou morosa. Os esforços produziam efeitos diferentes em cada um daqueles bravos.

Ihiru sentia dificuldade em se concentrar, seu corpo parecia quente, sua visão turva.

Wapichi teve uma crise de náuseas, tudo parecia girar, a vertigem queria tomba-la.

Mesmo não querendo demonstrar, Mohomi tinha alguns espasmos, a dor muscular ficava evidente, suas forças se esvaiam.

No fim dos degraus escavados na pedra, os três se encontravam exaustos. Caminhavam com dificuldades por entre destroços cauterizados.

Deveriam contatar os espíritos de seus ancestrais pois sentiam-se perdidos.

Abrindo o pequeno recipiente, Ihiru aspirou a epena. Seu corpo estremeceu, o vigor retornou precedido de um largo sorriso. Os amigos vendo sua recuperação, imitaram sua ação. Estavam os três felizes com entusiasmo renovado, Mohomi esticava o braço que parecia projetar-se desproporcionalmente a seu tamanho. Caminharam animados até um aglomerado de rochas chamuscadas que dividia a trilha em três direções. Os anciões avisaram que no momento certo deveriam cada um escolher seu próprio caminho.

Agora eram caminhantes solitários seguindo por meandros misteriosos, cada um com sua sina.

O jovem estudioso abandonaria suas pesquisas para liderar sua nação. Ele não tinha este objetivo, apoiava-se nas rochas para seguir em frente reavaliando seu passado.

Veios de um material dourado reluziam nas pedras. O estranho brilho o fascinava enquanto teorizava seu destino. Antes que percebesse, se viu num anfiteatro rochoso. Acima dele o sol queimava alheio a existência humana. Sentados a sua frente, gerações de seus antepassados que sabiamente guiaram seu povo vencendo as diversas dificuldades.

Os olhares inquisidores fustigavam sua existência. O peso da responsabilidade o fez prostar-se diante a plateia exigente.

Não era seu desejo tornar-se um líder, o fardo de ter que salvar sua geração foi lhe imposto pela vontade do pai, decepciona-lo seria uma vergonha. Aceitou o desafio por sentir-se bem ao lado de Wapichi. Queria a ciência e não a liderança. O vazio tomava conta de seu ser.

O bravo Mohomi parecia o gigante capaz de derrubar qualquer inimigo, poderia sozinho vencer o desafio e salvar seu povo. Seus companheiros apenas serviam como bagagem, um atraso na empreitada. As linhas douradas nas rochas brilhavam ressoando com as de sua pele. Por fim, chegou no anfiteatro, Ihiru estava de joelhos, um fracassado que passou nos testes graças à ajuda de Wapichi. Sem ela, aquele inútil não chegaria tão longe. Esmagaria o peso desnecessário, voltaria para junto de seu povo pleiteando a chefia da nação.

A jovem guerreira teimava em sorrir, o veio de minério na rocha a encantava. Fantasiava seu regresso vitorioso de mãos dadas aos amigos.

Wapichi em desespero tentou alertar Ihiru. Sua visão turvou-se ao perceber a intenção de Mohomi. Ela estava diante de seu pior desafio. Graças a distância e ao esgotamento falharia em proteger aquele que aos poucos ganhava espaço em seu coração.

Ihiru permanecia estático, de joelho enquanto Mohomi à suas costas erguia uma grande pedra pronto a desferir o golpe fatal. Wapichi tentava correr mas suas pernas não obedecia, seu grito mudo trancado na garganta cobraria para sempre sua falha em momento tão decisivo.

Envolto em sua melancolia, incapaz de ouvir seu coração, Ihiru que desistiu de seus sonhos para realizar o sonho do pai se via fracassando em tudo que se propunha realizar. Sob os olhares daqueles que antes dele foram os gigantes de sua nação, ele sentiu se apequenar. Inútil, seria deixado à margem da história de seu povo.

Uma lágrima furtiva rolou por sua face. Cerrou os punhos socando forte o solo estéril. Era um homem da ciência, não almejava ser líder. O seu desejo ardia em seu peito. Voltaria a sua terra decidido a ser o senhor de seu destino.

Bem próximo de sua vítima, faltava pouco para que Mohomi destruísse o último obstáculo a suas pretensões. Entre ele e o posto mais alto da nação, apenas o patético protegido filho do chefe.

Ao erguer o braço traiçoeiro seus olhos contemplavam o azul infinito do céu. Não haviam nuvens, apenas a mansidão do universo. O grande guerreiro, orgulho de sua gente sempre reto nas ações teimava manchar de sangue sua vitória.

Estática, observando à distância Wapichi impossibilitada de agir, desenhava em sua mente o pior cenário. Seus companheiros de viagem perdiam-se em meio à um crime vil. Por mais que tentasse, sua voz estava muda. Não conseguia intervir deixando que Ihiru perecesse nas mãos daquele que dias antes era seu grande amigo.

Não. Ela jamais deixaria isto acontecer. Reuniu toda sua energia saltando em direção aos amigos. Seu grito ecoou naquele labirinto de pedras.

O homem possui muitas fraquezas. O desejo de corresponder expectativas, a inveja e o medo de não conseguir proteger a quem se ama pode ser algum deles. Cada um enfrenta seus monstros a sua própria maneira, todos têm sua própria luta. Naquele dia de céu sem nuvens, Napê e Urihi tiveram uma nova contenda. Cada um daqueles peões se mostrou capaz de vencer seu próprio desafio.

Enquanto se afastavam da enorme cratera, local da última grande explosão, os efeitos letais da radiação diminuíam. No pescoço daqueles bravos guerreiros, os pingentes reluziam plenamente recarregados.

Tema. Amazofuturismo

Ihiru (personagem) - significa criança, menino

Wapichi (personagem) - derivei de Wapichana um dos povos indígenas do Brasil

Mohomi (personagem) - gavião real

Urihi - a grande floresta, tudo aquilo que abriga a vida

Napê - inimigo, invasor, grilheiro, homem branco

Epena - pó alucinógeno feito de casca de árvores usado pelos xamãs em cerimônias de cura capaz de criar vínculos com o mundo espiritual.

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 03/03/2024
Reeditado em 07/03/2024
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