BOI DA CARA PRETA – CLTS 26

O uivo demorado do doberman do lado de fora me acorda. De imediato, entendo que alguém atravessou a janela. A intuição e o medo me pedem para manter os olhos cerrados, como se o intruso estivesse impedido de me atacar enquanto eu permanecer com eles fechados. Esforço-me para controlar a respiração para o outro não perceber que me encontro desperto. De súbito, o cão se cala, e ouço o assovio de uma melodia infantil bem baixinho a poucos metros de minha cama.

— Tem alguém aqui? — Não passa de uma simples retórica do medo, pois, no fundo, sei quem está lá, parado, contemplando o meu fingimento.

O outro me ignora e começa a cantar a música sinistra tão familiar. "Boi... boi... boi...". Engulo a saliva e imploro mentalmente ao diabo para conduzir a assombração de volta ao inferno.

"Boi da cara preta...".

Como o demônio se faz de surdo às minhas preces, busco refúgio na razão. “É a culpa supersticiosa que está fabricando este monstro” — minto para mim. “Não é um ente sobrenatural, mas um pesadelo advindo do profundo remorso. Uma materialização do arrependimento da minha transgressão”. Quase me alivio com esses pensamentos, no entanto, o canto em ritmo lentíssimo segue me perseguindo.

"Pega esse menino que tem medo de careta. Boi, boi, boi...".

Uma gargalhada se embaralha com a música. Risos. "Cara preta...". Risos. "Boi, boi". A cantiga e o assovio melodioso continuam ecoando pelo quarto. Tapo os ouvidos, mas o barulho segue mais alto e mais estridente. De uma hora para outra, tudo cessa, e o silêncio profundo traz-me um pavor muito maior, pois agora me é impossível calcular a distância que o espectro se encontra de mim.

— Afasta-te, réprobo infame! — digo em linguagem pedante, aprendida nos tempos de colégio de padre.

Não tem revide à provocação. A ausência do menor som que fosse continua. A noite calada perdura por horas. Se me concentrasse, talvez conseguisse ouvir a pulsação do sangue passando em minhas veias. Dominado pela angústia, procuro adivinhar qual estratagema o fantasma inclemente fará para deixar-me ainda mais assustado. Imagino que o condenado berrará alguma maldição ou agouro contra a minha existência. Talvez me pegue com garras imundas e me arraste para o submundo. Ou quem sabe seja piedoso e me arranque as vísceras com golpes de punhal na altura do estômago, levando-me a vida de uma única vez.

Porém, nada em absoluto acontece por um longo tempo, e o espírito continua a torturar-me com o silêncio soturno, fazendo meu medo fabricar imagens cada vez mais horríveis em meio à escuridão. Resto-me absorto em meu pânico crescente, até sentir a coisa se aproximando e parando de pé ao meu lado direito. Cerro as pálpebras com força, enquanto pressinto o opressor se curvar sobre mim e colocar o rosto macabro a pouquíssimos milímetros do meu. Os pelos de meus braços se arrepiam. As palmas de minhas mãos transpiram. A pressão parece aumentar. A proximidade com o espírito me causa formigamento na face, temendo e ansiando pelo toque funesto.

Quero dizer algo, extravasar o pavor, contudo, agora tão próximo dele, receio que ao abrir a boca o maligno salte para minha garganta e se aloje dentro de mim. Os minutos seguem, e nem eu e nem ele esboçamos qualquer novo movimento. Sou tomado por uma enorme desesperança e passo a crer que me encontro em uma batalha impossível de ser vencida. A qualquer momento será necessário me mexer. Não, não posso desistir. Logo, o galo levantará a aurora, e a luz do sol varrerá para longe os espíritos trevosos.

Mas essa esperança é só outra forma dele me atormentar, pois, feito criança pequena, o mal se põe a engatinhar pela cama. O colchão se afunda primeiro na altura dos meus pés, depois da coxa, da cintura, até que a aberração se empoleira inteira sobre o meu corpo. Sinto o peso de um homem de muitos quilos, ajoelhado em cima do meu estômago. Mesmo com um metro e noventa de altura e estrutura de atleta, o ar ameaça me faltar. É preciso um esforço sobre-humano para encher e esvaziar os pulmões, e impedir que a minha cama se transforme em jazigo perpétuo.

Da coisa sobre mim sobe um odor pestilento de carne putrefata que invade as minhas narinas. Recordo-me desse cheiro repulsivo. Sei de onde ele vem. Sem conseguir pensar em saída, preparo-me para o sufocamento. O outro, porém, debruça-se sobre mim, distribuindo o peso por todo o meu corpo. Nessa hora, sinto o hálito úmido da assombração se aproximar da minha orelha. Junto ao ar, sai algo pegajoso pela boca da aparição que, vagarosamente, começa a adentrar pela fossa circular de meu ouvido. De início, acredito ser uma língua melosa, mas logo percebo tratar-se de um verme de corpo cilíndrico, muito pequeno. Antes que o pudesse impedir, o bicho escorrega, certeiro, para o meu interior.

Tento me revirar, mas a criatura em cima de mim me impede de realizar grandes movimentações. Alheio a esses esforços vãos, o parasita avança, rastejando sob uma gosma produzida por ele. Giro desesperadamente a cabeça de um ombro a outro. Mas o verme segue ziguezagueando obstinado até chegar à ponta do canal lacrimal. Sacolejo-me ainda mais forte, sem sucesso algum, pois, ignorando a minha angústia de hospedeiro, o bicho desliza para o globo ocular, e passa a mordiscá-lo aos poucos, como se devorasse um cadáver pelo interior. Sufocado, enojado, aflito, agoniado, não me aguento, instintivamente, abro os olhos, a boca e...

... Grito. Mais forte. Grito! Mais alto. Berro!!!

Por apenas uma fração de segundo, enxergo o desencarnado de feição familiar, pois, pela janela aberta em meu desespero, o mal entra em mim e me possui, deixando-me petrificado. Faço um esforço para mexer algum membro, a cabeça ou ao menos as pálpebras, mas nenhum comando é obedecido. Tornei-me uma visita indesejada em minha própria carcaça. Após o que me parece ter sido poucos minutos, meus músculos começam a se contrair e meu corpo é tomado de terríveis convulsões. Sinto meus olhos se revirarem para dentro, ficando à mostra apenas o branco vazio. Minhas mãos são levantadas e levadas para trás no alto. As unhas encardidas e mal cortadas tocam na cabeceira de mogno. Em seguida, elas descem arranhando a madeira cheia de farpas, rasgando-se, algumas caem, outras restam penduradas nas pontas de meus dedos feridos. Após isso, meus dentes prendem minha língua e a apertam com força, vejo sangue escorrer, e sei que qualquer movimento mais forte pode arrancá-la. Mas isso não acontece. O maldito apenas se deleita com meu sofrimento.

Após a tortura, uma voz gutural que, ao mesmo tempo, se parece e se diferencia da minha, brota do interior da minha garganta:

— Pega esse menino! — risada. — Pega, boi! Que tem medo... Careta — não sou eu que o diz, mas o outro.

De repente, do meu corpo sai um urro rouco e alto, cortado por um gigantesco estrondo, o qual parece abrir todas as trancas da residência, como se tivessem sido chutadas de uma única vez. Do lado de fora, o doberman se solta e arrasta suas correntes para dentro do quarto. O cão fica parado no umbral da porta, latindo e rosnando raivoso, tal qual Cérbero na entrada do Hades. O eu-possesso o fita, soltando alguns estalidos e ruídos indefinidos. Com gestos mais mecânicos do que humanos, a coisa em mim apoia os dois braços no colchão e nos ergue de pé em cima da cama. Tomado de fúria e coragem, o cão salta na altura da minha jugular. O estranho com minhas mãos, porém, o agarra com facilidade pela coleira, leva-o na altura do rosto e fala em tom infantil e debochado:

— Pega, o menino, boi. Pega o José que tem medo... Pega o Miguel – e gargalha de novo.

O cachorro reconhece a voz infernal, mas não se intimida. Mostra-nos dentes e late ainda mais agressivo. Quanto mais furioso o cão fica, mais aquilo o provoca, copiando desafiador cada gesto da fera. Os dois se encaram, salivam um para o outro e ficam bastante tempo nessa disputa, até o cão se cansar e o obsessor o soltar. O doberman cai manso, vencido e meio abobalhado.

Ainda prisioneiro dentro de mim, assisto passivo minhas pernas caminharem na direção do cão, que agora está tomado por uma espécie de transe. Mais perto, consigo sentir minhas mãos cruzando o ar gélido do ambiente e tocar o pelo do animal. Depois, o meu corpo se dobra e ficamos bem na altura do bicho.

— Vem, cara preta! É o Miguel! — diz ele.

O cão acata o comando e se achega. A proximidade me permite enxergar a minha imagem na íris do bicho. Meus olhos voltam ao normal, fazendo o antes branco homogêneo ser manchado pelo castanho familiar. Ali, nos vendo, me vem a recordação de que, há pouco, nós éramos dois. Não como um ser fragmentado, mas duas unidades independentes, separadas pelo ciúme e pela mágoa. A lembrança me deixa mais amedrontado. Queria poder refletir sobre a revelação, mas um vento frio percorre o corredor e bate a porta de um quarto contíguo, despertando a curiosidade do intruso dentro de mim.

Ele nos conduz pelo corredor até o local e se coloca parado de frente ao recinto fechado. De minha parte, preparo-me para me encontrar com algo muito pior do que qualquer coisa vivenciada nesta noite sombria. Ficamos assim por poucos instantes, pois logo o verme que me invadira começa a escorrer pelo nariz. Contra a minha vontade, meu indicador e meu dedão formam uma pinça, que captura o parasita e o leva à boca. Enquanto o mastigo, sinto o bicho de gosto agridoce se multiplicando a cada dentada. As partes trituradas do verme vão se transformando em outras de mesmo tamanho. Os parasitas se avolumam até o ponto de minhas mandíbulas não mais aguentarem.

Tudo é então expelido, vomitado, incluindo o atormentador vingativo. Compreendo rapidamente que o meu domínio sobre o corpo durará pouquíssimo tempo. É um ligeiro gesto de misericórdia antes de uma eternidade de escuridão. Meu destino já está selado. Com a canhota trêmula de dores, giro a maçaneta. Vejo a luz amarelada do abajur ainda acesa. O ambiente é semelhante ao que estava deitado anteriormente. À direita, uma mesinha de cabeceira com uma fotografia de dois rapazes. Pego-a, viro e leio na parte de trás: “José e Miguel, novembro/2004”.

Um rangido de corda me chama a atenção. Adiar não é mais uma possibilidade. É chegada a hora de enfrentar o meu delito. No entanto, me recuso com as poucas forças que me restam. Não quero ser obrigado a encarar a verdade. Mas logo sinto a alma infernal parada em minhas costas, pronta para tomar o corpo mais uma vez. Então, desisto. Não posso passar por tudo aquilo de novo. Peço coragem a algum deus que esteja me assistindo e rogo por perdão e piedade.

Sem mais pensar, me viro e vejo do outro lado, pendurado pelo pescoço, um rosto idêntico ao visto por mim há pouco nos olhos do cão. É a minha face arroxeada que está lá. Cambaleante, o eu-vivo se aproxima e toca o eu-morto, fazendo-o despencar no assoalho. Nesse instante, percebo ainda mais intenso o já íntimo cheiro da morte em decomposição. Sinto, também, de novo, os vermes se alimentando de minha carne. Mais numerosos e bem mais famintos. Do chão, envolto na amarra suicida, ponho a vista sobre o meu gêmeo de pé, me encarando, aterrorizado, dentro do corpo que eu havia usurpado para mim.

A troca de almas parece ter levado embora o ódio, o amargor e as memórias de Miguel. Sem nada entender, ele se joga sobre o meu cadáver. Pega-me em seus braços, passa a mão pelo meu rosto e devotamente fecha-me os olhos sem o brilho da vida. Em seguida, beija-me e repete a cantiga entoada por mamãe quando ambos éramos apenas bebês.

— Boi, boi, boi... Boi da cara Preta. Pega esse menino que tem medo de careta.

Rangel Luiz
Enviado por Rangel Luiz em 03/03/2024
Reeditado em 11/03/2024
Código do texto: T8011995
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