Paraíso CLTS26

Dizem que a curvatura da terra para quem está ao nível do mar é perceptível a quase 5 quilômetros mar adentro. É o ponto onde exatamente percebemos a grande linha do horizonte, onde os barcos por séculos evitavam por medo de caírem no grande abismo.

.

Minha vida passei indo e vindo nesse mar. Teve época que pesquei com o barco do meu pai, em outra, ainda rapazinho, tive meu próprio barco; depois, se eu quisesse pescar tinha que alugar de outros amigos. Nunca exerci outro ofício: sempre pescador, ou pelo menos foi o que fui. Depois da ferroada da arraia perdi a força na minha perna esquerda e fui obrigado a diminuir o ritmo até quase parar. Passei de pescador a contemplador do horizonte, vendo os outros pescadores desaparecerem lá na curva da terra.

.

Um dia, os barcos que voltaram trouxeram a notícia que um dos pescadores caiu no mar e desapareceu. O primeiro que eu me lembre. Foi o meu primo Leandro de Darso. Buscas incessantes foram feitas, eu mesmo fui ao mar mas sem resultado. Leandro desapareceu deixando esposa e cinco filhos ainda pequenos. Nem tínhamos nos recuperado da primeira perda e nos sobreveio uma tragédia ainda maior. Um barco inteiro. 7 homens, pescadores experientes, sendo três irmãos, Cesar de Dinha, Gil Major e Preto; o velho pai dos três, Major e mais três outros amigos, Miguel de Dara, Adriano Pequeno e Eduardo Cabelo. Pescadores profissionais, vítimas das águas do mar bravio. Nem corpos e nem o barco foram encontrados.

.

O medo nesse dia tomou conta da nossa vila. Mas não tínhamos outra coisa a ser feita a não ser entrar nos barcos e ir ganhar o nosso pão. Eu ficava observando a saída, ainda de madrugada, dos meus companheiros e a chegada que podia ser à noite, ou dois ou até três dias depois, a depender da pescaria. Quanto mais demoravam, maior era a nossa apreensão.

.

Nessas esperas, eu ouvia meus amigos comentando que descobriram o que poderia ter naufragado o barco dos nossos camaradas. Eles encontraram uma grande pedra capaz de afundar até uma grande embarcação. Eles apontaram mais ou menos a direção, mas era tão distante que não dava para enxergá-la. Como surgiu essa montanha submersa, assim de repente, ou como ninguém havia a visto antes? Eu acredito que não termos percebido era praticamente impossível, já que gerações de pescadores haviam lançado rede por aquele mar inteiro e nunca ninguém havia comentado sobre a montanha debaixo d’água.

.

Mesmo sabendo do perigo que representava para as embarcações e evitando passarem próximo à grande pedra, mais um barco foi e não voltou. Já era o segundo, e contanto com a primeira vítima, já se somavam 12 pessoas. O mais lamentável de tudo é que não havia nenhum corpo para fazer o funeral. Como isso era possível?! Nem os barcos foram encontrados. O temor em nossa vila foi tremendo. Pescadores experiente cogitando irem à capital procurarem qualquer outra função; barcos se amontoavam na praia sem que houvesse quem os guiassem. Mas a necessidade bateu na nossa porta e não havia o que fazer, o mar era o que havia sido destinado àqueles homens. Retomaram as atividades antes mesmo de cumprirem o luto de sete dias.

Eu, como sempre, apenas observava tudo. O meu barco, havia colocado a aluguel e só ficava acompanhando o Sereia do Mar indo e vindo. Olhava-o até o horizonte. E vi um dia! Eu vi um pontinho que nunca havia visto antes. Um ponto pequeno, mas perceptível. Esperei ansioso pela volta dos meus amigos e era só o que eles comentavam: uma bela ilha havia “nascido” na quebra do horizonte. Mas como uma ilha nasce do dia para a noite? A resposta que eu tive foi que parecia um paraíso, e que não estavam vendo a hora de voltarem lá. Os peixes andavam em cardumes. Coqueiros dançavam ao vento e a areia branquinha formando uma bela praia completava a paisagem encantadora.

.

Eu sou um simples pescador; não sou dotado de conhecimentos geológico, mas sei que para o surgimento de uma ilha é necessário que duas placas tectónicas se choquem e a força delas empurra uma porção de “terra” para a superfície. Ou podem ser frutos de uma erupção vulcânica e em último caso, fruto do desprendimento de uma porção de terra do continente, mas não era possível a aplicação de nenhum dos casos para justificar o surgimento de tal ilha.

.

Os homens mal descarregavam os peixes e já se lançavam ao mar rumo à ilha. As mulheres pediam aos maridos para que ficassem. Mas era como se um tipo de febre. Estavam tomados pela vontade insana de pescar todos os peixes da ilha. E foram. Novamente uma excelente pescaria mesmo sendo menor que a primeira e assim foi seguindo até quase não haver mais o que pescar. Inclusive, segundo relatos, a ilha já não estava mais tão atrativa. Talvez fosse a mudança da estação, ou alguma corrente de ar tenha influenciado para a decadência de “Paraíso”, era assim que todos estavam chamando. Da praia, eu apenas a observava.

.

Meses depois, ao passarem próximo da ilha Paraíso, mais uma má notícia veio à terra. Dessa vez, uma das crianças que estava acompanhando seu pai caiu no mar e desaparecerá exatamente como todos os anteriores. A comoção foi enorme. A família o procurou, mas nada foi encontrado. Nos dias seguintes ao desaparecimento, aconteceu algo que surpreendeu a todos no vilarejo. A ilha Paraíso voltou à vida. Diziam que nunca viram coisa igual, havia mais peixes do que nunca, até a cor da água estava diferente... Todos estavam extasiados com o renascimento e os lucros futuros que seriam obtidos, a morte do pequeno Moisés foi rapidamente esquecida pela euforia das redes cheias.

.

Vejamos como o ser humano é racional mesmo na irracionalidade. Um dia, um dos anciãos da vila comentou algo que parecia absurdo. Ele disse que a ilha Paraiso se alimentava de sangue humano. O sangue deixava a ilha feliz. Todos nós ouvimos aquilo. Alguns esboçaram uma linha do tempo e perceberam que os melhores tempos de pesca coincidiam com as mortes, e os últimos dias tinham sido como nunca, justamente devido à morte do pequeno Moisés.

.

Os pescadores da vila então fizeram testes. Lançaram ao mar cachorros, gatos, coelhos, e até cavalos e vacas, mas na manhã seguinte estava toda a oferenda regurgitada na praia. Era nítida a fome da ilha, "Ela quer sangue humano", falou definitivamente o ancião. E decidiram que dariam o que a ilha queria. Foram à cidade. Trouxeram meia dúzia de moradores de rua e, sob o pretexto de participarem da festa da vila, os embebedaram e os colocaram nos barcos. Pensaram que seis pessoas seriam suficientes para alimentá-la por tempo suficiente e assim, nenhum pescador morreria mais. Colocaram os mendigos no barco os jogaram ao mar. Na manhã seguinte estavam lá na praia os seis corpos. Mortos. Novamente pareciam terem sido vomitados. Era claramente um sinal. A ilha havia rejeitado o “presente” e ainda mais, todos podiam ser incriminados pelas mortes das seis pessoas. Como justificar às autoridades aqueles corpos com marcas de cordas nas mãos, pés e pescoço? Até o soldado mais recruta perceberia que aquilo era suspeito. O ancião decidiu enterrar os corpos num terreno longe da vila e encerrar o assunto. No entanto, a pergunta que não queria calar: "O que fazer para saciar a "fome" da ilha?"

.

O ancião convocou outra assembleia. Depois de muita discursão, ele tomou a palavra. De forma persuasiva perguntou a cada um o que estavam dispostos a fazer para garantir a prosperidade da vila. Perguntou quem estava disposto a se sacrificar ou sacrificar o próprio sangue para o bem da comunidade. Alguns não entenderam o que o ancião estava falando, foi quando ele explicou que seria necessário o sacrifício humano para que a prosperidade voltasse sobre todos. Alguém se levantou e relembrou o fato que acabara de ocorrer, a ilha não quer mais sacrifícios humanos. Foi então que o ancião reforçou que a ilha não queria o sacrifício de impuros, queria o sangue dos moradores da vila. E novamente perguntou quem estava disposto a se sacrificar pelo bem da comunidade. Quem não quisesse, se sentisse à vontade para ir embora da vila.

.

A maioria das pessoas permaneceu sentada. Talvez não tivessem entendido o que havia de ser acordado tacitamente, mas duas famílias se levantaram e disseram que isso era contra aquela loucura. Que não havia prova algumas da relação entre as mortes e as boas pescaria, era tudo superstição do ancião. Os que discordaram saíram da reunião imediatamente. Parecia justo que aqueles que não quisessem participar daquelas ações se retirassem e ficasse de fora. As duas casas foram as de Joca da Loca e Mané da Cana, meu velho pai. Ao todo somávamos 13 pessoas.

.

Naquela mesma noite, após a reunião, as nossas casas foram cercadas e invadidas. O ancião colocou boa parte da vila contra as nossas famílias e disse que traidores com a gente deveriam ser oferecidos em sacrifícios à ilha. Aos gritos, fomos amarrados e carregados numa procissão silenciosa para os barcos que já estavam a espera na praia. Era a primeira vez que o sacrifício seria feito de forma consciente. Toda a vila sabia o que estava prestes a ser feito. Até o mar parecia saber. Foram preparados 2 barcos, cada família em um, além de inúmeros outros barcos que estavam acompanhando em direção à ilha. Eram aproximadamente 120 pessoas curiosas para ver o sacrifício.

.

Os barcos iam lentamente, não apenas por ser noite e a baixa visibilidade atrapalhar a navegação, mas também por causa das ondas que estavam bastante fortes, sacudindo os barcos de um lado para o outro.

.

Próximo à ilha, lembro-me de o mar parecer um leão faminto. O vento rugia e agitava os barcos como se fossem de papel. O vento parecia gargalhar cada vez mais alto à medida que nos aproximávamos. Mesmo escuro lembro-me dos coqueiros que dançavam de forma sombria com suas folhas parecendo bater palmas. Tudo dava medo naquele momento.

.

O ancião falou algumas palavras, e pegou a primeira vítima, o velho Joca, que chorava aos gritos amarrado como um porco sabendo que ia para o abate; na hora de jogá-lo, veio uma onda tão forte que desestabilizou o ancião, que caiu primeiro na água.

.

Em vão foram as tentativas para salvá-lo; a ilha estava com fome. Os seus gritos de dor e desespero não saem da minha mente até hoje. Eu vi raízes despedaçando o velho lentamente, como se estivesse se deliciando. Quebrando seus ossos. Os demais pescadores, como que hipnotizado, demoraram a perceber que a ilha estava desejando a todos. Se desesperaram. Pularam na água na esperança de se salvar. Só que era um pulo direto para o braço da morte. Peixes de todos os tamanhos, tentáculos e raízes os abriam ao meio. Eram despedaçados antes mesmo de pularem na água. O ronco do vento e das ondas era ensurdecedor junto com os gritos de agonia. Em minutos, as embarcações que sobraram foram jogadas à ilha e se despedaçaram. Os restos eram devorados pelas ondas. Hoje, parece que vejo tudo em câmara lenta bem na minha frente.

.

Não sei por qual motivo eu sobrevivi. Instantes antes de uma onda enorme quebrar o barco ao meio e devorar minha família, eu consegui me soltar e, tentei a sorte caindo no mar. Só me lembro de ter acordado na praia ainda de madrugada.

.

Passei a morar com meus primos em outra comunidade aqui próximo. Já esta vila nunca mais foi a mesma. Está do jeito que você pode ver. Um cenário de abandono e desolação. Mas a ilha ainda está ali, bem lá no horizonte. Dá para ver só a pontinha. Não desapareceu totalmente. Eu digo para mim mesmo que ela está hibernando, só a espera da próxima vítima.

.

Depois daquela noite, a gente da vila não teve mais coragem de ir lá... Quem ficou em terra naquele dia foi para a parte sul do litoral e recomeçaram por lá. Ninguém mais ousou ao menos tocar no assunto. Eu faço questão de ficar aqui sentado quase o dia todo só contemplando o horizonte e observando aquele monstro que um dia chamaram de ilha Paraíso.

Eixo temático: ILHA.

Pedro Cara de Leão
Enviado por Pedro Cara de Leão em 03/03/2024
Reeditado em 15/03/2024
Código do texto: T8012077
Classificação de conteúdo: seguro