- A CADA HISTÓRIA SEM ESTRELAS -

CAPÍTULO 1

A CASA DA RUA OITO

1

Como uma boa história pode ser contada?

A narrativa de uma boa história pode começar com um sussurro de uma tragédia, uma sombra escura

pairando sobre o horizonte, pronta para se espalhar como tinta fresca em uma tela em branco. Nesse momento,

as páginas se abrem para revelar o cenário de um funeral, onde as lágrimas se misturam com a culpa e o arre-

pendimento, formando um coquetel amargo de emoções humanas. E é nesse terreno fértil de dor e remorso que

nossa história começa a florescer. Uma casa recém-construída, uma família dilacerada pelas cicatrizes do pas-

sado. Fantasmas pairam no ar como sombras indeléveis, enquanto os protagonistas lutam para escapar do pe-

nhasco de suas próprias memórias.

No âmago dessa narrativa sinistra está a culpa, um espectro que se ergue das sombras para assombrar

aqueles que ousam enfrentá-la. É um peso que se agarra aos ossos, uma sombra que se recusa a ser dispersa

pelo vento. Não são apenas palavras que dão vida a essa história, mas sim os suspiros sufocados e os olhares

perdidos que revelam a verdadeira profundidade do abismo interior de cada personagem. Narrar essa história é

como descer por um túnel escuro e tortuoso, onde cada curva esconde uma revelação dolorosa e cada passo

adiante traz o risco de queda. É uma jornada rumo ao desconhecido, onde os destroços do passado se encontram

com os fantasmas do presente, e a única saída é enfrentar os demônios que habitam dentro de nós mesmos.

A história da casa na rua oito não começaria com os sons habituais de uma propriedade antiga, com

rangidos e sussurros de fantasmas do passado. Não. Esta é uma narrativa diferente, sobre uma casa novinha em

folha, erguida em Monte Branco, na zona norte de São Paulo. Localizada em um bairro afastado da cidade, onde

o prefeito Hugo Borges prometia a conclusão de uma nova linha de trem. Mas, para os céticos, essa promessa

estava enraizada na suspeita de corrupção que permeava as entranhas da política local. Nos corredores do poder,

onde os bolsos estavam mais cheios do que a linha do trem estava próxima de ser concluída, as especulações

eram tantas quanto os segredos ocultos sob o concreto fresco da casa na rua oito.

A casa tinha três andares, construída sob colunas fortes, vigas que sustentariam não só o peso do concreto

e dos tijolos, mas o peso da alma daquela residência. A arquitetura era impecável, o alinhamento das paredes,

tudo muito bem desenhado. A área da casa ocupava um terreno de entorno de 500 metros de diâmetro, haviam

quatro quartos, duas suítes principais e dois quartos menores. Uma das suítes ficava no primeiros andar, essa

era razoavelmente menor, entretanto talvez a mais bem projetada em relação as outras, já que tinha duas janelas

com ventilação favorável e iluminação suficiente para mantê-la afastada do mofo, os dois quartos no segundo

andar eram do mesmo tamanho, um ao lado do outro e pareciam semelhantemente iguais, projetados para talvez

visitas ou filhos, ou até mesmo hospedes casuais, a suíte principal ficava no terceiro andar, essa diferente das

outras era maior, com uma sacada para a rua, o que lhe dava certamente um charme, as portas eram de vidro

deslizante, e na sacada havia uma escultura, meio sombria de uma mulher segurando um vaso, cabisbaixa e

aparentemente triste. Tinha sido esculpida por Joaquim Delart, um dos poucos escultores da cidade, com um

dom, ao qual conseguira transmitir a essência da humanidade em sua arte. Mas Joaquim, enquanto esculpira,

sentiu-se pela primeira vez atraído a criar algo diferente, e aquela estatua, de certa forma, o dava medo, e porque

por mais incrível que pareça, ele sabia que algo ali era diferente de todas as suas criações. A casa também

contava com uma área de lazer que ficara na cobertura, sobre uma forro de vitrais transparentes, um lugar com

uma ótima vista para a cidade. Era um espaço amplo, e bem aberto, tinha uma churrasqueira, uma bancada feita

de mármore e diversas prateleiras, perfeitas para empilhar bebidas e alguns tipos de vidraçarias, tais como copos

ou taças. E quem sabe, até montar uma rede, e passar horas ali deitado se balançado, e tomando sol. Já a lavan-

deria, ficara atrás da casa e era um tanto menor que os outros cômodos, mas ainda assim tinha sua perfeição

arquitetônica, com detalhes nas paredes e os pisos feitos de vinílico de madeira bem clarinha. De resto, haviam

cinco banheiros na casa, um em cada quarto e um banheiro mais reservado que ficara próximo do corredor da

lavanderia.

As portas de todos os quartos haviam sido esculpidas a mão por uma madeiraria especializada no centro

de São Paulo, Sant´Madeiras para construção, cujo dono um homem razoavelmente cortes providenciara sua

melhor madeira, angelim, sob medida, com maçanetas ornamentadas e bem características, quase como num

estilo vitoriano. Essas portas foram feitas unicamente para aquela casa, sem semelhança com qualquer outra.

Caro, talvez não fosse uma palavra para descrever a pequena fortuna que tinha sido investida só naquelas portas.

Mas é como dizem; a porta de um quarto é como capa de um livro, desenhe-a bem, e o resto só serão detalhes.

Entretanto, o que mais fascinava na casa era sua sala de estar, concebida para ser o epicentro daquela

morada enigmática. As três janelas, estrategicamente posicionadas, ofereciam vistas distintas das áreas circun-

dantes. Uma delas, voltada para o portão principal, capturava a entrada imponente da residência, enquanto a

segunda, oposta a ela, revelava o exuberante quintal nos fundos, onde as árvores se erguiam como guardiãs

silenciosas, e o pequeno gazebo de madeira adornado com orquídeas exóticas. A terceira janela, a última teste-

munha da sala, derramava luz sobre a garagem espaçosa, capaz de acomodar facilmente quatro ou cinco veícu-

los.

Contudo, o verdadeiro destaque da sala era sua majestosa escadaria em espiral, esculpida em mármore

negro, cujos degraus pareciam absorver a luz e lançar sombras dançantes pelas paredes. No centro do cômodo,

pendia um lustre imponente, uma obra-prima de cristais lapidados e pequenas lamparinas, cujo brilho refletido

nas paredes criava uma atmosfera ao mesmo tempo acolhedora e sinistra

A essa altura, a casa já tinha assumido forma e estrutura, como um esqueleto de uma criança se desen-

volvendo dentro do ventre de sua mãe. Havia muito dinheiro sendo investido. A cozinha por outro lado era um

pouco menor em relação a sala, tinha um balcão feito a base de tijolos rústicos e uma mesa redonda com um

tampo de granito. Mas a cozinha, era o lugar aonde menos batia luz, por conta da posição que fora construída

sua janela. De frente as arvores que haviam no bosque na parte leste da casa e que por capricho não foram

retirados. Já que a prefeitura os impediu.

O que faz uma casa se tornar um lar, não são os detalhes de sua construção, mas o cuidado e o conforto.

Essa era a mesma frase que Carlos Suelinton, o dono da construtora fazia questão de colocar nas placas fincadas,

próximo a entrada de todas as casas que construirá. Exagerado, ele não se importava com quem fosse morar lá,

somente com o quanto de dinheiro que lucraria. O mesmo pensamento que todo empresário tem; preciso lucrar,

preciso ganhar dinheiro.

A chegada de março marcou não apenas o calendário, mas também o despertar de algo oculto naquela

casa. Cada batida de martelo, cada azulejo cuidadosamente colocado, ecoava como um sussurro nos corredores

vazios, um presságio sinistro de que algo além da compreensão humana se desdobrava ali. Era como se a própria

estrutura da casa ganhasse vida, cada canto e cada centímetro impregnados de uma consciência latente, ansiosa

por se manifestar.

Nas primeiras semanas do mês, o sobrenatural começou a se insinuar de maneira sutil e perturbadora.

Acidentes inexplicáveis, trincas surgindo nas janelas sem qualquer causa aparente, e relatos dos vizinhos sobre

luzes misteriosas emanando da casa durante a noite. Mesmo sem eletricidade, a residência parecia pulsar com

uma energia própria, como se estivesse despertando de um longo sono. Às vezes, após a meia-noite, uma lumi-

nosidade sobrenatural irradiava dos seus aposentos, como se a casa estivesse proclamando sua existência ao

mundo: – Eu estou aqui... Eu despertei...

Ninguém acreditou, ou pelo menos, não se importaram com o que acontecia naquela casa à noite, e tudo

passou despercebido. Mas os sinais eram claros, algo despertara, sombrio e perverso, assumindo o próprio con-

trole.

O mistério envolvendo as luzes inicialmente levou alguns a cogitar a possibilidade de invasores intrusos,

uma hipótese que se encaixava perfeitamente no enredo de eventos perturbadores. No entanto, essa explicação

começou a parecer insuficiente diante de questionamentos incômodos: por que alguém se aventuraria a invadir

uma casa em construção durante as primeiras horas da madrugada, quando nada de valor poderia ser encontrado?

Ademais, todo o equipamento de construção era retirado do local ao final do dia de trabalho, eliminando qual-

quer motivo óbvio para uma invasão.

Diante desse cenário, medidas de segurança foram tomadas, os portões foram reforçados com uma intrin-

cada cortina de arames afiados, cobrindo cada centímetro da propriedade. À medida que os dias se desdobravam,

os misteriosos lampejos de luz deixaram de ser avistados, alimentando a crença de que os incidentes poderiam

ter sido meros atos de vandalismo. Contudo, com o passar do tempo, a casa parecia adquirir uma consciência

própria, uma inteligência sutil que aprendia com cada evento inexplicável.

O clima na obra tornou-se sombrio, como se o próprio ambiente estivesse conspirando contra os traba-

lhadores. Muitos deles, especialmente os mais supersticiosos, sentiam uma energia pesada e sinistra permeando

o local. Alguns abandonaram seus postos, incapazes de lidar com a sensação perturbadora que pairava no ar. A

equipe, então, reduziu-se pela metade, mas a pressão para concluir a construção dentro do prazo permanecia

implacável.

Os acidentes começaram a se intensificar, como se algo invisível estivesse tramando contra eles. Um

pedreiro caiu de uma escada, convencido de ter vislumbrado uma presença aterrorizante dentro da casa, algo

que o deixou tão atordoado que nunca mais retornou ao trabalho. Outro operário escorregou enquanto instalava

os pisos, sua boca se chocando violentamente contra o concreto, resultando em uma hemorragia que misturou-

se à textura cinzenta do cimento fresco.

A escalada de tragédias culminou com o pintor Roberto, cujo destino cruel pareceu ser traçado pela pró-

pria estrutura da casa. Enquanto se dedicava à pintura das paredes, ele foi envolvido por uma melodia misteriosa,

uma música suave e hipnótica ecoando de dentro da parede recém-pintada. A canção, repleta de uma aura inex-

plicável, sussurrava promessas inquietantes em seus ouvidos. Atordoado e curioso, Roberto aproximou-se, ape-

nas para ser saudado por um grito gutural, uma manifestação sobrenatural que o jogou para trás, fazendo-o

despencar do andaime e fraturar ambas as pernas.

Mesmo diante desses eventos perturbadores, Brayan, o mestre de obras, resistiu ao chamado do sobrena-

tural, atribuindo os incidentes a meros acasos. Ainda assim, a paralisação temporária das obras refletiu o temor

que permeava o ambiente. Mas o tempo era um inimigo implacável, e logo a construção retomou seu ritmo

frenético, ignorando os sinais sombrios que o destino lhe oferecia.

2

David Silva de Carvalho, era só mais um pedreiro, contratado em período integral, um homem de meia

idade, calvo, com uma cicatriz no braço esquerdo. Seus colegas não lhe davam tanta atenção, aliás, ele preferia

assim, manter distância de qualquer tipo de relação de amizade no serviço. Ele sempre acordara sempre as 07h00

em ponto, tomava um bom café da manhã reforçado e vinha trabalhar, com seu macacão azul, as botas e seu

capacete amarelo. Era proibido trabalhar sem os EPIs, então David, mantinha a rotina de todo dia chegar no

serviço uniformizado. David tinha uma carteira de cigarro no bolso, que sempre que havia tempo, fumava um

ou dois cigarros, trabalhar ali não era fácil, então ele tinha que fumar, precisava...

Certo dia, enquanto terminava de cimentar uma das paredes da sala, David sentiu um calafrio, algo estra-

nho, que nunca tinha sentido antes, seus braços e pernas se arrepiaram, e por um breve momento, as paredes

pareceram escorrer sangue, espeço e gosmento, caindo devagar pelo teto e cobrindo todo a parede, até que uma

mão apareceu, transpassando o sangue, quase como se quisesse agarra-lo, uma mão feminina, uma mão muito

semelhando com a dela.

– Queridoooooooo...

E o vento soprou aquela palavra pela sala, até diminuir e desaparecer.

David se assustou e caiu no chão, seus olhos refletiram o vermelho do sangue, mas como num piscar de

olhos tudo desapareceu, fora tão rápido que naquele mesmo instante, ainda paralisado de medo, ele levantou,

aspirou o ar até o fundo dos pulmões e continuou como se nada tivesse acontecido.

Aquele dia, a casa encontrara finalmente uma refeição apropriada, alguém explorável o suficiente para se

interessar. E a ânsia inesgotável pelo intimo daquele homem se tornou sua obsessão. David chegou em casa

naquele dia com uma enxaqueca, uma ligeira dor no canto superior direito da cabeça, que lhe incomodara desde

o momento que saiu da casa da rua oito. Seus braços doíam, estava exausto e cansado de mais um dia árduo de

trabalho. Pequenos espasmos desciam por sua coxa e chegavam rasgando até a ponta dos seus pés, o fazendo

formigar.

Ele sentou na cabeceira da cama, reparou o quarto vazio, cintilante e de um ar ermo. A velha cama de

casal agora parecia até maior do que de costume e o quarto, por menor que fosse, sentia ter o tamanho de um

campo de futebol, porém, sem jogares e sem animo, sem vida. Uma sensação cruel e aterradora de solidão. Ele

não costumava se manter acordado dentro daquele quarto vazio por muito tempo. Haviam lembranças, peque-

nos pedacinhos de lembranças que ele evitava lembrar. E esses pequenos pedacinhos, estavam ali, por todo o

quarto, no lençol, no perfume, no guarda roupa ranhado, nas roupas, até mesmo no travesseiro.

Como será o poder de uma lembrança? David se perguntava todos os dias.

E a saudade o arrematou. Saudade de se sentir acolhido, saudade de um abraço quente, saudade do abraço

dela. Sim! Saudade da sua mulher. Do seu beijo, do seu carinho, do seu zelo. As lembranças agora confusas, se

suspendiam sobre sua mente, quase como um teatro, encenando os melhores momentos. Mas também aqueles

que ele tanto pretendia não se lembrar.

O suor, rastejava pela sua testa, descendo pelos sulcos da pele até a ponta do pescoço.

– Ela não vai saber, ela nunca vai saber, ela está morta, ela sempre esteve morta aí dentro.

E uma mão o tocou, acariciando sua perna. Uma mão delicada, com unhas vermelho-claro e uma tatu-

agem que vinha do pulso até o começo dos dedos, a tatuagem de uma serpente abrindo a boca.

– Ela não vai saber, ela nunca soube não é mesmo.

– Venha...

– Deite-se comigo mais uma vez.

– Pare, pare por favor, eu não quero mais me lembrar disso.

E olhando na direção da cama, ele se sentiu culpado.

Seu pai, João Silva de Carvalho, falecera a cerca de trinta anos, de um derrame. Um homem bruto do

interior, que quando estava bêbado, gostava de dizer a seu filho, na época um garotinho de 10 anos, que todo

homem na vida precisa de uma esposa e uma puta, a esposa cozinha, lhe dá amor, lava suas cuecas e limpa sua

casa, mas é a puta que lhe da prazer, e a puta que faz você se sentir vivo e sempre que dizia aquilo, João piscava

para David. Piscava, como se disse; filho, eu estou traindo sua mãe com uma puta, e você um dia trairá a sua

com uma também. A maldição da família carvalho, traição e culpa.

Ao lado da cabeceira da cômoda havia um criado mudo, lotado de medicamentos, antidepressivos e tudo

que David precisasse tomar. Ele providenciou que tivesse tudo a mão, para não precisar se preocupar em

comprar depois. A dipirona como sempre, era um dos medicamentos que mais havia na primeira gaveta, dipirona

e camisinhas, algumas até recém utilizadas que ele tinha preguiça de jogar fora.

David tateou a gaveta com os dedos, tocando a testa com a outra mão e pegou uma cartela de dipirona.

Sem nenhum liquido próximo, David destacou dois comprimidos da cartela e os engoliu, rapidamente e sem

esforço, e eles desceram como agulhas em sua garganta, por um breve momento pensou que ia precisar de um

pouco de água, mas em seguida eles desceram.

Seus músculos e mente pediam descanso, e naquela noite ele não jantou, apenas se recolheu na cama e

deitou. Com a cabeça na direção do relógio; 11h25, observou ele de relance e virou para o outro lado da cama,

o lado que menos se sentia confortável, o lado aonde Gabriele deveria estar e ele a envolvendo com seus braços,

ainda assim, ela não estava lá e a cama enorme, parecia cada vez maior. Os tintilares do relógio perturbavam

sua concentração, cada tique, sintonizado perfeitamente com sua mente, e ele demorou, mais do que o habitual

para dormir.

– Querido, porque você não estava lá por mim... – Uma voz murmurou em sua mente no vazio.

É tão estranho pensarmos que ao fechar os olhos a noite, entramos em uma outra dimensão, diferente da

nossa realidade, pálida e as vezes irracional. Mas uma dimensão de sonhos, tudo que é real pode se perder

facilmente, ou até mesmo se achar, não dava para saber, sonhos são pequenos universos que viajamos constan-

temente e nem percebemos. Uma linha horizontal que guia e se molda com a captura de tudo que conhecemos

ao oposto do que é logico.

David adormeceu ligeiramente, e conforme seus olhos se fecharam, ele abriu caminho para algo que havia

lhe seguido. Algo que entraria ali sem ser convidado. Sem ser notado.

Estava frio. As nuvens se embolavam junto a garoa, como se as estrelas vazassem do céu em pequenas

gotas de cristais, junto a uma malha de pássaros que voavam sem ritmo, todos em zigue-zague, mergulhando e

remergulhando até o mais alto que pudessem ir. O silencio perturbava David. E não só o silencio, mas o lugar

aonde ele estava. O único lugar que fugira nesses últimos anos; o cemitério. E ele sabia que aquele lugar era

familiar... Ele sabia. Já havia vindo ali a três anos, e mesmo que quisesse, ele jamais esquecera. O cemitério

aonde enterrara sua falecida esposa.

– Puta que pariu! Porque me fazer sonhar com essa porra de cemitério deus. – Ele gritou, olhando para

a estatua de Jesus pregado na cruz, um pouco a frente.

Imóvel, ele observou as lapides, entretanto todas estavam sem nome. Era difícil explicar a sensação que

ele sentia naquela hora, mas se pudesse estar no lugar dele, seria de um pesar muito grande. Ele carregava uma

culpa, uma mancha que nunca conseguiu esconder de si mesmo nesses últimos anos.

– Querido, porque... – Alguém o chamou chorando. E a voz foi levada para o céu pelo vento.

Ele começou a andar, as lapides sem nome se repetiam, todas apagadas pelo caminho.

– Porque estou aqui? – Se perguntou, atônito. Mas, talvez no intimo ele soubesse. Soubesse que estava lá

porque se sentia culpado.

O cemitério se estendia por quilômetros e mesmo que quisesse não conseguira encontrar o fim e nem o

começo dele, nenhuma saída, apenas aquelas lapides, que se enfileiravam juntas, cada uma perfeitamente ali-

nhada à outra e iguais. Tão iguais, que não era possível fazer distinções.

Um pouco mais a frente, já descoordenado e a essa altura certo que aquilo não poderia ser real, ele viu

um senhor de idade, vestido com um palito preto, cavando uma cova. O velho alto e esguio, tinha uma barba

longa e suja, e também um chapéu, daqueles clássicos, arredondado.

– Ei! Sabe me dizer aonde estou? – Ele perguntou. Mas o senhor não o ouviu.

Então ele repetiu mais alto e em bom tom, pigarreando e forçando a garganta.

– Com licença! Pode me dizer que lugar é esse?

Sem expressão, o senhor ergueu a coluna e virou a cabeça devagar na direção dele. Seus olhos inchados

e vermelhos moveram-se da mesma forma que seu corpo, como se estivesse ali cavando aquela cova a muito

tempo. Ele apontou para a lapide à frente da cova aberta, segurando a pá na outra mão e sorriu sem mostrar os

dentes, de uma forma macabra, e então o rosto daquele senhor passou a ficar cada vez mais pálido.

Aproximando-se devagar ele arregalou os olhos e observou. David abriu a boca, mas não conseguiu falar,

estava em choque. A razão o escapava por entre os dedos, tal como sua percepção da realidade.

David Silva de Carvalho, amado e nunca esquecido por seus amigos e familiares. Era a menção feita na

lapide.

– Mas que merda é essa. – David pigarreou, fechando a boca com a mão direita.

Seria difícil imaginar uma cova para si mesmo, e doí de se imaginar que um dia todos estaremos lá, com

a terra sobre nossos rostos, com os vermes comendo nosso corpo o mais devagar possível e apodrecendo como

uma uva passa. O ultimo lugar de descanso. Mas no caso daquele homem, o ultimo lugar para um tormento

eterno. Será que vai doer, estar lá um dia. Ele se perguntava, com o coração acelerado. Será que vai doer ser

devorado por aqueles vermes famintos. As ideias se embaralhavam em sua mente como um jogo de cartas. Mas

o coringa logo chegaria. À espreita, numa resposta involuntária a todos aqueles pensamentos aleatórios sobre a

morte.

Uma mão tocou seu ombro direito, dedos gelados e ásperos o acariciaram delicadamente.

O senhor alto de terno sujo fincou a pá na terra e fechou os braços, expressando impaciência.

– Querido... E a voz soou mais perto, como se sussurrasse ao lado da sua orelha.

David se virou. E ela estava lá presa em câmera lenta. Sua falecida esposa, necrosada, com pedaços de

carne podre caindo e cheirando a formol, seus olhos esbranquiçados e profundos o observavam, como duas

pedras da lua, cheias de sulcos profundos e vermes escapando pelo canto dos olhos, com o vestido manchado

de sangue. Sangue... Ele pensou, e seu pensamento o levou ao desespero. Lagrimas quentes escorreram de seu

rosto.

Gabriele. Ele a chamou.

Húmida e com os braços sujos de lama. Ela aproximou o braço despelado e quase que deteriorado na

direção do seu rosto. O peito de David se enforcou e ficou sem ar. A garoa caia devagar, e os pássaros o obser-

vavam do céu, voando e o desejando como um simples pedaço de rosbife fresco. Esperando para comer. David,

nunca foi um homem temente a deus, e talvez não devesse ser naquela hora, mesmo porque ali, no escuro

daquele cemitério, deus não o ouviria, mesmo que orasse o mais alto que conseguisse, deus nunca o ouviria e

talvez deus o tivesse abandonado. Abandonado porque ele a abandonou.

– Meu deusssss! E a voz ficou presa dentro da garganta.

Como se deus não quisesse que ele pronunciasse o nome dele, não ali, não naquele momento. E talvez

nunca mais.

– Queridooooooo...

Ondas de choque espasmódica tomaram conta de seu rosto, quando ela o tocou. E o rosado das suas

bochechas desapareceram, perdendo a cor.

– Você nunca esteve lá pra mim não foi querido... você só se importava em chegar em casa e COMER

MINHA BUCETA, você lembra quantas vezes eu precisei de você, mas você só precisava da minha BUCETA,

ela te fazia feliz não eu. Minha doce BUCETA rosinha, que você passava a língua e adorava comer.

E as lagrimas aumentaram, desassociando-se devagar de seus olhos febris pela lateral da sua face, caindo

no chão, uma após a outra, como a maré agitada de um mar em ressaca. Seu rosto espantado expressara a mais

pura sensação de pânico, como se desejasse que aquelas palavras não fossem verdade

David segurou o ar em seus pulmões, e respondeu, num olhar de arrependimento.

– Não meu amor, eu te amava. Eu sempre te amei.

E o escuro, e a noite, tomaram conta das paredes daquela realidade.

– Não querido! Você sempre quis COMER, comer igual a um PORCO, comer a minha BOCETINHA de

porca, até que não fosse suficiente comer e você COMEU outras, eu sempre soube, você sempre GOSTAVA DE

COMER. Por isso se casou comigo, por isso você me ansiava, e quando eu precisei da MALDITA DA SUA

PRESENÇA, você estava COMENDO, comendo outra BUCETINHA. Oh! Querido, você acha que eu não sabia

da sua fome, das vezes que você saiu para comer. Agora e tudo mais claro. A minha BUCETINHA MOLHADI-

NHA E APERTADA nunca foi suficiente para você não é. Nunca é suficiente para um homem uma BUCETA só.

Vocês sempre querem comer, e comer e comer. Alimentar seus egos, e seus paus PEQUENOS.

Os olhos de Gabriele se iluminaram como dois faróis, suficiente para cegar David naquele instante, e

ele escorregou numa reação quase que involuntária, caindo dentro daquela cova, dentro do escuro, e foi caindo,

até não ver mais nada, até não sentir mais nada, até não ver mais a luz.

E então, ele acordou. Suando e desnorteado, começou a chorar, e chorou quase que o resto da noite inteira.

Os pesadelos continuaram depois daquele dia, se repetindo simultaneamente dia após dia. E sempre ter-

minará com ele caindo dentro daquela cova escura. Terminava ali. No escuro. No vazio. Aqueles pesadelos se

infestaram em sua mente, como um câncer infesta o corpo e o destrói. Logo, cada martelada que dava na cons-

trução da casa da rua oito, o levara a uma espécie de espectro da sua memória, algo como a batida de um prego,

fincado em seu próprio caixão. E a imagem de seu corpo naquela cova sombreava sua mente já entorpecida.

Enxergava a si mesmo coberto de terra até o pescoço, com duas moedas cobrindo os olhos, como na mitologia

grega, as moedas eram um pagamento a Caronte, o barqueiro que conduzia as almas através do rio que dividia

o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. E ele estava lá, segurando a pá, esperando seu pagamento. Enquanto

sua falecida esposa, o cobrira de terra. E o pagamento era caro, mas caro do que pudesse suportar.

Aos poucos e no decorrer da última semana de março, David começou a perder o controle e o domínio

da realidade.

Os dias e as horas começaram a passar cada vez mais devagar, e ele passou a ouvi-la frequentemente. Sua

esposa morta, sussurrando em seu ouvido, enchendo-o de culpa e mais remorso. E mesmo que tentasse não

pensar, ou não dormir, ou não se lembrar, ela estava lá, ao seu lado, com o barqueiro esperando impaciente.

Encarando-o, com a pá nas mãos e as moedas.

Como o luto e a morte, David negou, insinuava estar louco, e procurou ajuda, mas não adiantou em nada.

Como o luto e a morte, David teve raiva, e se perguntou o porque deus o havia lhe abandonado – e se existisse

um deus, ele não era bom. Como o luto e a morte, David barganhou, como se talvez pudesse fazer algo para

mudar seu destino, implorou inúmeras vezes, talvez vezes demais, entretanto o vazio não lhe respondeu. Como

o luto e a morte, David entrou na mais profunda depressão, sentia-se afogando, sem esperança, caindo cada vez

mais à dentro daquela cova. Como o luto e a morte, David se entregou, e agora a casa tinha conseguido aquilo

que ela mais queira, sua aceitação.

3

Gabriele era uma doce mulher de 29 anos, baixinha, com cabelos castanho-claro longos, que sempre

esvoaçavam quando o vento batia em seu rosto. Uma mulher de pouca história, filha de um casal de obreiros,

tinha feito matemática na faculdade, mas não chegou a lesionar. Pelo contrário, trabalhava em um mercadinho

perto de casa como atendente. Ganhava pouco mais que um salário mínimo, o suficiente para sustentar a casa.

Conheceu David, numa noite em que sua amiga Jaqueline a levou em uma festa do outro lado da cidade, na

parte oeste. Gabriele, não costumava beber álcool, mas depois de Jaqueline insistir a noite inteira, ela virou uma

taça de licor 43. David, apareceu naquela hora – Cuidado, que isso é forte! David avisou, com um copo de

whisky e energético na mão. Gabriele o observou de cima a baixo, e respondeu – Cara, eu tomei uma taça, e

você tá tomando whisky. Sorriu, levantando a taça vazia. Ela viu aquele homem alto e parrudo, e de repente uma

atração a seduziu.

David franziu a testa e reverberou, num sorriso trocado. – É, você está certa. Mais, um copinho desses

não é nada pra mim!

Gabriele se aproximou do rapaz e brindou – Eu não bebo, mas hoje, é uma exceção. Então me mostra

quanto você aguenta!

O olhar do rapaz penetrou entre o vestido de Gabriele, e um pensamento fugiu ao seu controle, fazendo-

o ficar excitado.

– É garota e você mora aonde?

– Isso é clichê, ela respondeu. Porque não pergunta outra coisa, tipo, se sou solteira.

David recuou – Bem eu achei que fosse solteira. Sem aliança.

Ela novamente o encarou e depois encheu a taça com mais um shot de licor 43.

– Eu sou solteira, só estava te provocando.

– Me provocando. – Ele respondeu com um olhar baixo.

– É! Te provocando, você não gosta de ser provocado...

E aquela conversa fluiu durante a noite, até pararem na cama de David. Gabriele, não era uma mulher

fácil, pelo menos era isso que achava, mas algo naquele homem a atraia sexualmente, de uma forma ignorante.

Antes do final da noite, Gabriele já estava em cima do rapaz, cavalgando sobre ele e gemendo, como uma

guerreira. O suor melado dos dois se contraia. A ânsia e o tesão flutuavam, fazendo-os chegar num grau de

prazer incrível. David a agarrou, fechando seus braços sob seu pescoço e a fudeu forte, sussurrando baixinho

em seu ouvido – você vai ser minha. Vai ser minha pu... Mas não terminou a palavra. Então ele puxou seus

cabelos e tampou sua boca. Enfiando e colocando tudo que podia dentro dela. Varias vezes. Gabriele tentava

gemer, mas não conseguia com aquela mão enorme e bruta tampando sua boca. David a lambeu, sentindo o suor

e o sabor de seu corpo, acariciou seus seios e os chupou, como se precisasse ser alimentado. Estava quente, e

cada vez que David a penetrava, Gabriele urrava de prazer, como uma loba uivando para lua. Seus olhos se

reviravam de cima a baixo. Até que ele a segurou, levantando-a e a jogou na parede, Gabriele atravessou as

pernas, enrolando-as em suas costas. Devagar, ele mordeu seu pescoço e depois sua orelha, e o tesão se estendeu,

quase que a noite inteira. Na cozinha sobre a pia, na sala de estar em cima do sofá, nas escadas, até terminarem

no banheiro. Aonde ambos gozaram gostoso, num ápice de orgasmo eufórico.

– Parece que você aguenta mesmo! Gabriele respirou, enquanto ambos se abraçavam debaixo do chu-

veiro.

Uma noite aleatória, uns drinks e uma transa, e ambos se apaixonaram. Dois anos se passaram, e agora,

Gabriele já estava morando junto com David, dividindo despesas, e procurando um novo serviço, já que pedira

demissão do mercadinho, para ir morar com seu marido. A rescisão do mercadinho lhe garantiu estabilidade por

um tempo, mas ainda assim, ela precisava trabalhar, e ficar em casa desempregada, não era algo saudável na

sua percepção. – Preciso trabalhar.

David nessa época fazia bicos em algumas construções, mas nada fixo, ainda assim, sustentar duas pes-

soas era difícil. Mas ele não se importava. Ele sabia que tinha o dever de sair e buscar dinheiro pra casa, somente

isso. A princípio, quando os boletos começaram a chegar, ambos tiveram um pouco de medo e receio que aquilo

não desse certo. David tinha seu jeito e Gabriele o dela. Mas os dois se entendiam, então já era um começo. E

alguns meses depois, Gabriele conseguiu um serviço em uma escola a alguns quarteiros da onde moravam. Nada

grande, iria ser auxiliar na diretoria. Um salário mínimo e alguns benefícios. Gabriele viu aquilo como uma

oportunidade. Ela não pensava muito grande, e talvez nunca almejou um cargo compatível com sua formação.

Entretanto, ter conseguido um emprego, já lhe garantiriam uma folga maior em relação as contas de casa.

Conforme o tempo passava, e os anos acelerados iam e vinham, Gabriele passou a ver David com outros

olhos. Ela costumava sair as vezes na sua folga, quando começava a se sentir para baixo e triste, e normalmente

inventava a mesma desculpa, que ia encontrar algumas amigas. Mas, ela usava aquele curto espaço de tempo,

para caminhar no parque, caminhar e pensar em seu casamento, em seus futuros filhos, pensava nas contas e

nos boletos que se acumulavam, pensava no que sentia por David. Gabriele pensara em muitas coisas. Coisas

que as vezes não precisava pensar tanto, porém havia algo que ela pensava constantemente e não eram boletos

e nem filhos, e por mais que negasse a si mesma, ela já sabia que havia algo de errado em seu casamento a muito

tempo. Traição, talvez, mas ela não teve coragem de insistir em procurar provas. E numa tarde de setembro,

enquanto passeava pelo parque, um bandido a abordou, tinha pouco mais que um metro e setenta, de capuz preto

e um blusão escuro, como aqueles que os motoqueiros usam quando vão dirigir na chuva. Ele puxou sua bolsa

com força pelas costas e apontou a arma na sua direção. Gabriele não teve nem tempo de reagir, o homem

encapuzado, puxou sua bolsa e disparou a queima roupa, tudo muito rápido, a bala entrou em seu tórax e perfu-

rou seu coração. Gabriele caiu. Ainda consciente e deitada no chão, a única coisa que passou pela sua cabeça,

antes de morrer, era que deixaria seu marido sozinho, que deixaria seu amor sozinho. Ela não queria isso. Seus

olhos voltaram-se ao céu, e ela observou as nuvens e as arvores, o som da natureza e as folhas caindo ao seu

redor. Uma lagrima caiu de seu rosto se desmanchando até o final da bochecha. Tudo então escureceu, e seus

olhos se congelaram. Gabriele permaneceu na posição que caíra após o disparo por cinco horas, o sangue formou

uma poça vermelho-carmesim ao seu redor e logo se coagulou escurecendo. Aquela parte do parque era meio

solitária, e normalmente tinha pouca movimentação durante a semana. Quem encontrou o corpo foi um grupo

de crianças que brincavam por ali e acabaram tropeçando no cadáver dela. A polícia chegou em seguida e depois

os legistas.

O que veio depois, foi apenas dor, culpa e luto...

David teve de ir ao necrotério reconhecer o corpo da sua mulher. E ela estava lá, era ela mesma, deitada

numa mesa de ferro, com os olhos fechados e branca, tão branca como se todo sangue dela tivesse sido retirado.

A ficha não tinha caído ainda. E quanto ligaram para informar o ocorrido, David ainda gritou, falando que aquilo

era impossível. Não sua mulher. Deviam ter errado. Deveria ser outra pessoa. Mas não sua querida Gabriele.

O coração dele se contorceu ao vê-la, e ele segurou a mão fria da sua esposa morta chorando, e logo em

seguida virou o rosto na direção do legista e confirmou; é, é ela mesma.

Poucas pessoas compareceram ao enterro dela. Gabriele não era uma mulher de muitos amigos naquela

época, tinha parado de falar com sua melhor amiga Jaqueline e sua família se resumirá no seu pai que estava

internado com câncer, sua mãe e seus tios, mas para David isso não importava, ele não saiu do lado do caixão

de sua falecida esposa, até o momento em que fora enterrada.

4

– Amor, porque você não termina isso logo...

E algo em sua mente agora perturbada, sabia que terminar, não tinha haver com ele, mas sim com a casa.

Naquela semana David bebeu, quase todos os dias, e faltou umas três vezes na obra. Sentado no sofá de

casa, bebendo o whisky mais barato que tinha condições de comprar, as vozes de sua esposa morta arranhavam

sua mente, e era como se ela estivesse ao seu lado, sussurrando cada vez mais alto. Ele pegou um revólver que

tinha guardado dentro de uma cômoda no seu quarto. Tenso. Ele olhou para a cama, cabisbaixo e com um olhar

frio, lembrando que aquele fora o lugar aonde deitara com sua esposa pela última vez. E Ela estava ali, ele

sabia, do seu lado, acariciando seus cabelos, e sussurrando cada vez mais alto, cada vez mais claro;

– VOCÊ PRECISA TERMINAR ISSO... termine logo, daqui a pouco você vai poder comer MINHA BU-

CETA, não é isso que você quer querido. ENTÃO TERMINE ISSO LOGO. TERMINEEEEE.

David aceitara enfim. Precisava fazer aquilo parar, precisava parar aquelas vozes, nem que isso tirasse

sua vida. Louco? – Não, ele pensou, ou talvez. Ele não sabia mais o que pensar. Só queria que as vozes

parassem. Só queria poder parar de ouvir sua falecida mulher sussurrando no seu ouvido. E sempre que fechava

os olhos, ela estava lá, ao lado da lapide, podre, manchada de sangue e com o rosto derretendo enquanto os

vermes a comiam bem devagar.

Ele ligou para Brayan, pedindo alguns dias para colocar a cabeça no lugar. Mas Brayan foi curto e grosso;

Mano, você já faltou três vezes e ainda veio trabalhar bêbado, não quero você aqui, procura outro emprego.

Aquilo foi o gatilho, e com o celular ainda na mão, David a viu, sua linda e doce Gabriele diante de seus

olhos, com o mesmo vestido esverdeado que a conhecerá anos atrás. Só que desta vez, ela estava diferente, viva

talvez, e por um momento aquilo foi o mais próximo de uma sensação de saudade que ele pode ter dela. Ela o

observou sorrindo, um sorriso lindo e calmo, e então ela ergueu a mão na direção da cômoda.

David passou a mão na cabeça, sentou na cama, respirou o mais fundo que pode e pegou o resolver

dentro da cômoda, um dos únicos bens que seu pai lhe deixará. Gabriele abriu um sorriso ainda maior, e isso foi

o suficiente para David se levantar. Com um cigarro na mão que acabara de acender e o resolver na outra.

Gabriele só precisou de quatro palavras;

– É a hora amor...

O fascínio é que David tinha perdido algo ali, talvez o mais importante para o ser humano. A esperança.

Quando chegou na casa da rua oito, David observou Brayan de longe com seu caderno de anotações. Ele

estava parado no jardim, instruindo todos de forma arrogante. Brayan estava desesperado para terminar aquela

obra. O chão da cozinha faltará azulejos, assim como a pintura das paredes também não havia sido finalizada,

e do lado de fora, parte do forro do telhado nem tinha sido colocado ainda. Um acumulo de três meses de atraso

por conta das coisas estranhas que vinham acontecendo desde então. A única forma de descontar suas frustações

era acelerando seus funcionários, fazendo-os realizar turnos duplos e carregar o dobro de peso em menos tempo

possível.

Com um olhar frio e vazio ele cruzou o quintal. Brayan o viu de longe. Mas, não reparou o que segurava

na mão direita.

– Não devia ter vindo, já coloquei outro em seu lugar. – Falou áspero, voltando os olhos novamente para

o caderno.

A voz de Gabriele pulsava em sua mente, chegando a doer, como uma enxaqueca forte.

– Faca isso querido, então poderemos ficar juntos, faça, faça logo, atire, não o deixe desviar, só atire, eu

sei que você quer minha BUCETINHA, você pode tê-la, só atire agora

David se aproximou, uns cinco metros talvez, Brayan viu quando ele levantou o revólver na sua direção

e antes pudesse falar qualquer coisa. David disparou.

Sem receito, sem medo e sem hesitação. Ele segurou o gatilho e o apertou com força, a bala explodiu

rápida na direção de Brayan, humildemente devagar ele acompanhou cada uma das cenas, como fotos polaroid

se repetindo. A bala voou na direção do mestre de obras e o acertou no olho esquerdo. Na sequência, um segundo

tiro, este meio que involuntário acertou o pescoço de Brayan, e ele caiu. Morrera na hora que a bala entrou em

seu crânio e explodiu transpassando-o. Respingos de sangue voaram até David, e então Brayan começou a

sangrar pelos orifícios das balas, era tanto sangue que David vomitou vendo a forma que ficou o rosto daquele

homem. Pedaços do crânio de Brayan estavam espalhados pelo jardim, assim como seu olho tinha saltado fora

e caído no chão.

O que mais o deixava espantado, era que ele sabia muito bem o que estava fazendo, e as consequências

que viriam depois, ainda assim, cada quadro das cenas seguintes prosseguiu. Até seus olhos fixarem-se no corpo

de Brayan.

E então sua sanidade voltou.

E consigo, novamente a culpa.

Era quase impossível medir o grau de impotência que sentira.

Culpa, por Gabriele, e agora culpa por Brayan.

David apontou a arma na direção da própria cabeça, faltava pouco para tudo acabar ele pensou, faltava

muito pouco, ele só precisava fazer agora mais uma coisa e enfim as vozes iriam parar. Ele fechou os olhos...

Gabriele estava lá no escuro o esperando. Ela e o barqueiro, ambos esperando para poderem fechar o caixão e

o levarem.

– Não tenha medo querido. Venha. Agora ficaremos juntos, para sempreeeee.

E ele atirou...

David, ouviu o gatilho estalando, ouviu o grito dos homens que trabalhavam ali em pânico e algo como

paz passou por sua mente antes que a bala destroçasse sua cabeça. Foi então que ele ouviu, o som do vento, da

cortina da casa se abrindo levemente, das janelas batendo e dos pássaros. Sim, aqueles mesmos pássaros do

cemitério, aqueles que aguardavam a chegada da comida. Pássaros negros, pairando sobre a residência, numa

altitude próxima do ultimo andar da casa, todos de olho em David, todos famintos. Mas, além de tudo, David

viu sua esposa... desmanchando-se como uma estatua feita de argila, e o barqueiro virou apenas ossos e uma pá

enferrujada. A mesma pá que havia próximo dali no jardim da casa. David só percebeu aquilo, quando puxou o

gatilho. Quando por livre e espontânea vontade tirou a própria vida. E então ele viu a casa sorrir, e ela abriu a

boca, mostrando uma galeria quase infinita de dentes brancos e afiados, alguns grande e outros bem pequenos,

feitos para mastigar, morder e rasgar, até não sobrar mais nada.

David caiu finalmente em sua cova, mas AQUILO NÃO ERA UMA COVA, E SIM UMA BOCA.

E assim, a casa da rua oito havia saboreado sua primeira refeição. Um banquete impecável.

Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 21/03/2024
Código do texto: T8024940
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.