O Cavalinho Azul Parte - I - O Pintor -

Quando o interfone tocou a elegante senhora estava sentada em um luxuoso sofá do início do século XX, e, ao se levantar, Romão, o gato sagrado da Birmânia, rolou com agilidade por suas pernas e espreguiçou contrariado sobre um felpudo tapete branco.

Ao acionar o aparelho a mulher ouviu a voz metálica do porteiro:

_ Dona Helena, há um rapaz na portaria dizendo que tem uma encomenda para a senhora. Trata-se de Cassiano. Devo mandá-lo entrar?

_Cassiano???

_Sim! Disse que é pintor e a Senhora havia encomendado...

_ Claro! Claro! Por favor, Lucas, peça alguém para acompanhá-lo.

***

Cassiano de Albuquerque era um artista de rua que, autodidata, ganhava a vida como pintor. O rosto era ossudo com olhos estreitos e ariscos. Suas telas chamavam atenção pela vivacidade das cores, brilho e riqueza de detalhes.

Talentoso, sua técnica tinha como diferencial fazer com que, por algum tempo, o cheiro do que retratava ficasse impregnado na obra. Por diversas vezes foi convidado por profissionais renomados a montar um atelier. Sempre recusou. Não era ambicioso, e também não queria dividir sua técnica, pois acabaria sendo mal interpretado. Certa vez teve de profanar o túmulo de uma mulher esfaqueada e morta há mais de trinta anos e pegar um pouquinho do que restou. O resultado foi surpreendente: o marido, principal suspeito, enlouqueceu, e passou a falar com o quadro até ser encontrado pendente em uma árvore.

***

A mulher o aguardava ansiosa, já havia adquirido algumas dezenas de obras com o mesmo propósito, porém, nenhuma era perfeita o bastante para lhe fazer imaginar-se dentro dela. Sempre quando uma nova tela chegava, passava horas observando-a. Porém, por mais que se concentrasse, o carrossel mantinha-se estático. Pagou quantias exorbitantes a pintores famosos de várias nacionalidades. Entretanto, os quadros sempre acabavam empilhados no sótão.

Helena conheceu Cassiano em uma feira, e ficou fascinada por uma de suas obras intitulada: "O Pomar do Sô Artur". A tela era enorme com uma variedade incrível de árvores; bastava olhar para sentir o aroma dos cajus, mangas e jacas que impregnavam as narinas das crianças, que assustadas pelo lado de fora da cerca de arame farpado, olhavam atentamente para o pomar. Mas, não era para as frutas. Entre a exuberante vegetação algo invisível as amedrontavam. O cheiro forte do suor em meio ao aroma adocicado de flor de laranjeira, não deixava dúvida de que o Sô Artur estava ali, atrás de um daqueles troncos aguardando com raiva o primeiro a entrar.

O quadro foi vendido por uma quantia irrisória e o artista já estava indo embora quando ela o chamou:

_Um minutinho, por favor! Você trabalha por encomenda?

Cassiano ao virar-se, disse com convicção:

_ Basta que me diga como a madame vai querer que farei o possível, e, dependendo do caso, até o impossível para que fique satisfeita.

À princípio Helena havia achado o moço estranho (feio). Alto e bastante magro tinha o rosto sardento emoldurado por uma cabeleira de corte irregular. Trajava ainda uma imensa camisa vermelha, que tremulando pela a ação do vento, o fazia parecer um mastro destinado a alguma bandeira terrorista. Mas, quando sorriu, exibindo dentes alvos e perfeitos, teve uma nova impressão. Foi então que disse com sinceridade:

_ Achei seu trabalho digno dos mais sinceros elogios. Incrível como você conseguiu colocar o dono do pomar sendo percebido apenas pela expressão das crianças. Um excelente trabalho que deveria valer uma fortuna.

_Fico feliz que tenha entendido, poucos tem essa sensibilidade. Meus quadros não são caros, é um dom que Deus, ou quem sabe o demônio, me deu para que se faça justiça.

_Justiça???

_ Minha obra pode trazer o bem ou o mal.

_ Interessante. Disse a mulher levando o dedo indicador aos óculos para ajeitá-los sobre o nariz:

_ Vou citar como exemplo esse último: faz alguns anos que li em um pedaço de jornal datado de quase sessenta anos, sobre um menino morto com um tiro no peito. O crime aconteceu em uma propriedade rural. Tive uma sensação estranha, e depois de alguns dias sem aquilo me sair da cabeça fui ao local. Fica em uma pequena cidade, a uns quarenta quilômetros. Entrei. Havia uma cruz tosca embaixo de um sapotizeiro. O local estava abandonado, Deus sabe a quanto tempo. E, sepultadas por um matagal, havia muitas frutíferas secas, sem nenhuma chance de rebrota. Eu já estava saindo quando uma rajada de vento fez partir uma daquelas árvores mortas, e, para a minha surpresa, dentro dela encontrei uma sacola plástica contendo uma camisa bastante surrada. Ainda cheirava a suor. Resumindo, foi o que me trouxe a imagem que passei para a tela.

_E... você se sente bem em fazer esse trabalho? Perguntou Helena, agora com um certo fascínio. Não que acreditasse no que acabara de ouvir, mas pela envolvente narrativa criada em relação à obra.

_ O prazer e alucinante; o cheiro da tinta após preparada tem um efeito mágico. Sinto-me um instrumento guiado por forças, ora para o bem, ora para o mal.

Helena após franzir o cenho deixou-se ser conduzida a uma barraca. O rapaz pediu dois pasteis, um jarro de caldo de cana e copos descartáveis, depois se encostaram no balcão e começaram a conversar.

_ Diga-me, por favor, o que a Senhora precisa?

_ Quero um carrossel que tenha a ilusão de movimento com um cavalinho azul em evidência e, em seu dorso uma menina com longos cabelos esvoaçantes. Ah! A expressão de felicidade no rosto da criança tem de contagiar a todos.

_ Vou precisar saber o motivo. Disse o rapaz estreitando ainda mais os olhos inquietos.

Entre risos e lágrimas, Helena contou a sua história. Cassiano ouviu atento a cada detalhe e, ao final, ao ser perguntado sobre algum tipo de adiantamento, disse que para começar precisava apenas de uma mecha de cabelos.

Quase três anos se passaram até que finalmente regressou.

_Ficou lindo! Disse a radiante senhora assim que a tela foi desembrulhada.

_ Difícil foi achar o antigo carrossel. Parte dele estava em um ferro velho a centenas de quilômetros. Observe como o cavalinho azul tem um brilho diferente. Para ficar em evidência, como a Senhora pediu, precisei misturar também um pouco do material que raspei de um brinquedo novo. Preste atenção nos cabelos da menina e em seu sorriso repleto de felicidade enquanto cavalga.

Helena ao observar cada detalhe tentou avaliar o intenso trabalho de pesquisa. Com certeza ele procurou antigos proprietários e funcionários que, porventura, ainda estivessem vivos. O realejo que estava tão bem representado no canto esquerdo da tela era, sem dúvida, a maior prova. Satisfeita, sem perguntar o preço, preencheu o cheque e o entregou com a face iluminada por um sorriso.

_A Senhora é muito generosa, disse o rapaz. Eu jamais cobraria esse valor, sabe disso. Mas será uma bela ajuda para que eu possa continuar a minha missão. Meu próximo trabalho será fora do país. Boa sorte, adeus...

Bastou Cassiano sair para que Helena colocasse o quadro na parede. Sentou-se, e, hipnotizada sem tirar os olhos da tela, nem percebeu quando Romão: o gato sagrado da Birmânia, pulou e se aninhou em seu colo. Houve um momento de torpor e, de repente, o carrossel começou a girar. No início devagar, mas a velocidade foi aumentando, aumentando, aumentando...

DESAPARECEU.

E deu lugar a uma garotinha sentada em um vão de escada.

Continua...

Luiz Cláudio Santos
Enviado por Luiz Cláudio Santos em 23/03/2024
Reeditado em 30/03/2024
Código do texto: T8025894
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