CARTA DE UM VELHO EX-PRESIDIÁRIO - CLTS 27

Escrevo está carta a você meu velho amigo de luta, porque minha mente não é mais a mesma, e logo chegará o dia que não saberei nem mais quem sou. E aproveitando o pouco entendimento que ainda me resta, vou lhe contar meu último dia no cárcere, e tudo que pensei antes de conseguir a libertação.

Lembro que acordei sobressaltado e ofegante de madrugada naquela cela, meus dois companheiros dormiam profundamente, tive três sonhos enigmáticos naquela semana, que ocuparam a minha mente naquelas noites, não posso dizer o que havia sonhado, escapa da memória, porque a velhice não é feita de glórias. Fiquei apreensivo e perdi o sono. “Que mensagens tão estranhas!”

Tentei não dar importância, era o dia da minha execução e do meus colegas, eu estaria morto no fim da tarde, que relevância poderia haver naquilo.

Estava deitado no chão gélido e imundo, sentei, minhas costas doíam, como se eu tivesse levado uma surra; ouvi um burburinho e gritos ao longe na cidade, não dava pra entender o que diziam, pouco depois que o galo cantou, um homem passou na rua, gritando e chorando: “Não, não, não…”Devia ter acontecido alguma desavença ridícula, o homem que passou na rua deve ter matado alguém, uma briga certamente, quanta agitação para um dia de feriado. Não sei quantas vidas tirei assim, um rastro de sangue deixado pra trás, que não poderia ser apagado, o horror nos olhos das minhas vítimas eram um aviso de que pagaria por todo aquele pecado, minha alma e espírito estavam comigo sentenciados.

Naquela escuridão, eu podia ouvir um rato que lambia e cheirava o prato da minha refeição do dia anterior, até aquele roedor parecia estar num dia melhor que o meu. Os dois homens encarcerados comigo tinham no som da respiração uma angustiava sufocante . As trevas aguçavam meus outros sentidos, todo cheiro era fétido, todo som era estridente, tinha nos lábios um gosto de prego chumbado, um frio petrificador fazia toda minha carne tremer sem parar. Pensei em fazer uma oração, a falta de fé não deixou, até os demônios têm fé e um “Ninguém” como eu cheio de dúvidas.

Era uma noite sem luar, pela pequena janela gradeada entrava o som exterior, lá fora o vento livre assobiava, “que saudade de receber uma leve brisa no rosto”; na cadeia nenhuma movimentação dos carcereiros, não poderia haver solidão maior, um isolamento com companhia, nada mais irônico. No princípio pensei em me enforcar lá dentro, pra não dar o gosto aqueles canalhas de tirarem a minha vida, faltou coragem, então segui vivendo sem saber pra quê.

Antes de amanhecer, ouvi mais gritos sem sentido, a balbúrdia parou e foi virando um falso silêncio. Quando os primeiros raios de sol, lentamente fizeram as coisas virarem penumbra, ouvi uma agitação dentro da prisão, parecia que estavam trazendo outro prisioneiro para viver naquela masmorra. Ouvi quando o novo prisioneiro foi jogado na sua nova moradia, mas, em momento algum ele reclamou; ficou quieto a manhã toda. “O, homem que passou correndo e gritando? Talvez! Não sei dizer.”

“Pra morrer basta estar vivo.” Fiquei tanto tempo ocupado tentando sobreviver nos últimos trinta e três anos que nunca vi importância em preocupar com a morte, e muitas vezes senti vontade de ir ao seu encontro. Naquele momento, que o meu fim era certo, vinham essas memórias que não serviam pra nada. “Buscar a felicidade e nada, é a mesma coisa.”

Minha vida no crime começou cedo com pequenos delitos, e nunca mais fui o mesmo, quando para salvar minha mãe cortei a garganta do cachorro que dizia ser meu pai, tirando sua vida, o sangue nas minhas mãos ainda posso ver, fugi e nunca mais voltei, não soube o que aconteceu com ela e meus irmãos.

A claridade já permitia ver tudo, meus comparsas acordaram quando a primeira refeição do dia chegou, fiquei surpreso ao ver leite, pães e frutas frescas, comemos, nossos diálogos eram pequenos monólogos monossílabos, não havia muito o que conversar, a loucura era a regra naquele cubículo, ouvimos movimentação dos guardas, parecia que viam buscar algum dos prisioneiros, ainda era muito cedo para alguma execução, “alguém deve ter sido levado, para ser torturado em um novo interrogatório.”

Vivi morando pelas ruas por um bom tempo, não ficava em lugar nenhum, vagando pelo mundo, todo dia era uma busca de algo pra comer ou ficar entorpecido. Virei líder de uma gangue, depois de vencer uma luta contra seu antigo chefe, eu estava entre eles a algum tempo e o nosso desentendimento foi fatal, na luta estrangulei o desgraçado até a morte, os outros daquele dia em diante estavam sobre minhas ordens. Planejamos um assalto que foi bem-sucedido, tivemos algum divertimento que não durou para sempre, fomos presos, era minha primeira vez…

Meus comparsas que estavam enjaulados comigo, eram muito diferentes, encostado de pé na parede o “Gigante”, estava quieto e pensativo, tinha uma força descomunal, um Sansão de sobrancelhas grossas e um rosto duro como granito, sem dúvidas o assassino mais cruel com quem tive a oportunidade de trabalhar, nunca vi demonstrar arrependimento ou misericórdia, mas sua lealdade canina com o nosso bando, depois de ter salvo sua vida em uma luta de gangues. O outro salteador tinha o apelido de “Espeto”, tinha uma magreza repugnante, uma cara que se assemelhava a um focinho de rato, pequeno como o Rei Davi quando enfrentou o gigante Golias, era o melhor gatuno que conheci, entrava e saia de qualquer lugar sem ser notado, muito eficiente em suas empreitadas, estava sentado no chão e tentava se concentrar em suas orações, ele não estava preparado pra enfrentar o seu destino naquele dia.

Antes da segunda refeição do dia, ouvimos mais rumores na prisão, traziam novamente um detento, não dava para saber se era o que foi levado para tortura e interrogatório, ou um novo residente.

Eu sempre ficava sentado próximo a porta, para ouvir melhor o que acontecia do lado de fora, homens em outras celas jogavam dados, outros discutiam assuntos diversos, reclamavam da comida, dos guardas, do governo… alguns enlouquecidos falavam coisas sem sentido, escutar o que acontecia lá fora mantinha minha mente com um certo grau de sanidade.

Nunca tive um relacionamento amoroso estável, minha vida de fora da lei nunca permitiu, muitas paixões e nada desse tal de amor que todos dizem, sempre errante, um dia tudo mudou e resolvi me juntar aos revoltosos que lutavam contra um governo ilegítimo e tirano, fazendo parte da rebelião meu nome ficou conhecido no país, e minha cabeça estava na mira de caçadores de recompensa.

Quando o almoço chegou ficamos boquiabertos, nos foi servido um banquete digno de reis. “Canalhas, depois de meses comendo praticamente lavagem para porcos, nos humilham ainda mais.”

Pensei em largar a vida do crime, fazer as coisas que todos fazem, ter família, e quem sabe trabalhar como um carpinteiro sem importância, não consegui ver valor nestas coisas simples, e trilhei a estrada torta dos insensatos.

No grupo de revoltosos nossas incursões eram baseadas em táticas de guerrilha, que vinham incomodando e desestabilizando a moral das autoridades, porém nossa causa se tornou perdida quando fomos traídos por um dos “nossos amigos”, mesmo preso tive minha vingança, e com a ajuda dos meus contatos, mandei executarem o traidor.

Com a farta refeição do almoço e o calor que fazia no começo da tarde, ficamos em um estado de torpor; no meio da segunda parte do dia, ouvimos um alvoroço que parecia vir da praça, uma multidão gritava coisas que eu não entendia muito bem e não faziam muito sentido, algo fora do normal acontecia na cidade. “Os rebeldes tomaram o poder?”

Estava cada vez mais perto do momento da execução, eu olhava pela pequena janela da cela e depois retornava a ficar perto da pesada porta, lá fora o alvoroço tinha momentos de agitação e depois uma inquietante calmaria.

Lembro que tive medo, então veio nas lembranças que na infância eu gostava de desenhar cavalos com carvão, no chão e nas paredes, mamãe não gostava muito, esses desenhos eram uma parte de mim, imaginava poder correr livre pelos campos, com o vento batendo no rosto, ser livre era extasiante, certa vez tive um grande corcel mestiço que nomeei de “Soberano”, era mais fiel que um cão, e salvou minha vida umas duas vezes, quando fui preso pelos soldados ele foi levado. “A liberdade é o propulsor da insanidade.”

Tive medo, muito medo, depois de viver enfrentando a morte, fiquei como uma criança na madrugada, sozinho, com um medo irracional, ficaria cara a cara com as trevas do desconhecido. Era hora de partir, sem família ou alguém que chorasse por mim.

Senti uma secura interna, quando ouvi rumores dentro da prisão, ainda não era a “hora”, e uma agitação tomava conta de quem eu ouvia do lado de fora, meus companheiros estavam apreensivos, tinham no olhar um espectro sem sombras, eu compartilhava da mesma falta de coragem. Ouvíamos passos, vindo em direção da cela, cada vez mais próximos, fui ficando em acelerado frenesi, quando enfim ouvimos a chave abrir a fechadura, a pesada porta de ferro rangeu e se moveu, entraram por ela três militares armados, o oficial que estava no comando, tinha o semblante muito sério e fez a pergunta que revelou o mistério:

— Qual de vocês três é Barrabás?

Respondi:

— Eu sou…

***

TEMA: PRISÃO

Telly S M
Enviado por Telly S M em 08/05/2024
Código do texto: T8058944
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